Cartografias transatlânticas da música popular nas américas
A música popular é frequentemente analisada a partir de “gêneros musicais” nacionais. A historiografia...
O termo fonografia, que se refere à técnica de gravação de sons em suportes materiais, acabou por agregar a designação geral para registros de uma parte específica desses sons a música. O desenvolvimento da fonografia permitiu a criação, por meio de suportes materiais variados e de seus respectivos aparelhos reprodutores, de alternativas decisivas à natureza localizada e eventual da música.
A fonografia digital surgiu nas décadas finais do século XX, expressando o ponto alto de um conjunto de avanços tecnológicos postos em marcha nos 120 anos anteriores na produção de música gravada, que tiveram como etapas anteriores as gravações mecânicas (ou acústicas) e as elétricas. A partir de meados dos anos 1920, com o advento das gravações elétricas, as inovações que se sucederam consolidaram conquistas como a do long playing (LP), da high fidelity e do som estereofônico que orientaram, em grande medida, as formas contemporâneas de produção e de recepção musical.
Há quem afirme, no entanto, que a justaposição dos termos "fonografia" e "digital" não faria sentido. Rothenbuhler e Peters sustentam que a "fonografia" seria um conceito adequado apenas para designar suportes analógicos de música gravada. Para os autores, o advento do suporte digital alterou a fonografia em sua essência, pois somente os discos ou as fitas magnéticas retêm o registro das frequências sonoras no material tal como vibraram originalmente, produzindo a grafia do som. Com o surgimento dos CDs, as ondas sonoras passaram a ser codificadas em dados e decodificadas pelo aparelho reprodutor, a frequência sonora deixando de estar efetivamente inscrita no suporte.
Para além do debate suscitado em torno dos conceitos, a fonografia digital expandiu-se enormemente, tendo se tornado hegemônica, nos primeiros vinte anos do século XXI, em termos de produção e sobretudo de circulação de música gravada.
Compõe a fonografia digital toda música gravada, produzida, processada e transmitida por sistemas digitais. O processo de registro, reprodução, difusão e recepção musical é realizado a partir da interação de sistemas numéricos binários combinados, em substituição ao sistema analógico, fundado na transmissão de dados por ondas moduladas. O digital conquistou status de linguagem técnica universal e, como objeto das tecnologias informacionais (TI), tem se expandido e transformado, progressiva e continuamente, várias dimensões da vida social.
Mais do que a substituição e a automação de processos, as TIs inauguraram complexos processos socioculturais nos modos de produzir e usufruir da música gravada. A experiência musical nesse âmbito — seja aquela própria aos artistas, seja a dos ouvintes — antes mediada por aparelhos e suportes específicos e por reduzido número de empresas produtoras e gestoras, em certa medida deles se desprende, vinculando-se a outros aparatos de mediação mais ágeis, como aquela promovida pelos telefones celulares, e a diversos sistemas de gestão de produção e difusão dos home studios às plataformas de distribuição potencializando a exposição aos conteúdos musicais gravados. As tecnologias digitais trouxeram para tais experiências um tipo de "compressão espaço-tempo", subtraindo etapas do processo e tornando mais acessível a produção, a circulação e a fruição musicais.
Desde a instituição da fonografia como negócio, no início do século XX, as gravações musicais, inscritas em partituras, cilindros e discos, demonstraram grande facilidade de circulação, transpondo fronteiras geográficas, políticas e culturais. Por meio de dispositivos técnicos variados, progressivamente acessíveis, sua reprodução foi possível nos quatro cantos do mundo.
Michael Denning apresenta um sofisticado mapa da circulação mundial de música gravada a partir do surgimento das gravações elétricas, analisando o que chamou de boom fonográfico dos anos 1920. Por essa via, somos informados das trocas transatlânticas de música gravada em seus primórdios, como resultado da iniciativa de gravadoras pioneiras instituídas na Europa e nos Estados Unidos (Victor, British Gramophone, Odeon, Columbia e Pathé) para ampliar seu raio de atuação a partir das então crescentes facilidades de produção de discos e gramofones, registrando a vernacular music das culturas situadas em torno dos portos coloniais. Deles escoou, dentre outros produtos da realidade colonial, inédita e substanciosa produção de música gravada em discos de 78 rpm.
Naquele momento inicial, registros musicais eram feitos em estúdios improvisados em algumas cidades portuárias e enviados à Europa ou aos Estados Unidos para a produção dos discos que retornavam, como produtos de exportação, aos mesmos portos originais. Destacam-se, em termos transatlânticos, as experiências de gravações feitas, entre 1925 e 1930, em Lagos, Havana, Lisboa, Buenos Aires, New Orleans, Accra (Gana), Rio de Janeiro, Joanesburgo, Porto de Espanha (Trinidad/Tobago), New York e Cidade do México.
É importante notar, por um lado, a materialidade característica dessas trocas. Pelas rotas abertas por navios à vapor e pelas linhas férreas, seguiam artistas, instrumentos musicais, aparatos de gravação, partituras, cilindros e discos, fonógrafos e gramofones. Por outro lado, formas, gêneros e estilos musicais específicos se encontravam com outros, permitindo que fusões, sínteses e hibridismos de toda sorte fossem criados, sobretudo nos caminhos trilhados pela cultura e pela diáspora africana jazz, blues, tango, son, samba, palm-wine, marabi, fado, mariachi, calipso, dentre outros.
Em linhas gerais, os padrões desse impulso primevo de circulação mundial da música gravada perduraram até a chegada do digital, tendo se sofisticado constantemente, promovendo e consolidando, tanto em âmbito local como mundial, expressões musicais como o jazz, o blues, o rock, a bossa nova, o reggae, o hip hop, o funk e tantas outras surgidas do encontro de referências culturais transatlânticas, registradas em discos compactos, LPs e fitas K7. A trajetória de Fela Kuti, pioneiro do afrobeat nos anos 1970, é um exemplo primoroso desse processo. Na década seguinte, sob a insígnia da world music, a circulação musical transatlântica ganhou energia, fortalecendo nichos de produção e difusão musical que atualizavam a vernacular music em novas bases técnicas e culturais. A música africana destacou-se nesse processo, dando projeção internacional a artistas como Cesária Évora (Cabo Verde), Youssou N'Dour (Senegal), Mory Kanté (Guiné), dentre outros.
O compact disc, criado pelas empresas Philips e Sony em 1982, surgiu como apenas mais uma inovação tecnológica proposta pelas grandes gravadoras, até então proprietárias tanto dos suportes musicais quanto dos aparelhos encarregados de reproduzi-los. Num primeiro momento, elas promoveram a digitalização dos catálogos fonográficos sem alterar a forma tradicional de comercialização dos discos, alcançando grande incremento nas vendas e lucros no final da década de 1990, com destaque para os discos de coletânea. Ainda em meados dessa mesma década, tais empresas realizaram, em âmbito mundial, significativa reengenharia em seu modo de produção tendo como base o uso das tecnologias digitais.
A virada do século trouxe consigo a ruptura definitiva da exclusividade no manejo dos softwares de gravação e difusão musical, a consequente universalização de tal manejo conduzindo os negócios fonográficos a uma crise profunda. Segundo as gravadoras e as associações de direitos autorais, a chamada pirataria, amplamente praticada e difundida naquele momento, compreendia tanto o comércio não institucional de cópias de discos como o livre compartilhamento de milhares de álbuns e faixas fonográficas em redes digitais, operando por plataformas como a Napster e por um amplo conjunto de agentes individuais, em sites e blogs.
O tráfego musical expandido nas redes virtuais foi amplamente favorecido pelo uso padronizado de um novo tipo de arquivo digital sonoro, o MP3, formato que se caracteriza pela compressão da informação sonora, desprezando registros de frequências consideradas inaudíveis ao ouvido humano. Arquivos digitais com menor volume de informação eram transmitidos com mais facilidade e rapidez, algo potencializado pela expansão da infraestrutura de mediação conferida pela internet de banda larga.
Desse processo originaram-se práticas socioculturais inéditas, que aproximaram ouvintes e músicos dos artefatos e conteúdos digitais de música gravada. As gravadoras independentes se renovaram, proliferavam home studios nos quais milhares de gravações se realizavam e ganhavam as infovias. Artistas passaram a gerenciar suas próprias carreiras e, por meio de páginas personalizadas na internet, articulavam a divulgação de agenda de shows que também ganharam novo impulso com a venda, via download, de álbuns e singles. Em alguns segmentos também era possível observar a venda, nas apresentações ao vivo, de CDs produzidos informalmente ("queimados"). Neste processo, a interação artista-público foi se sofisticando em torno de comunidades ligadas a estilos ou a práticas musicais específicas. No Brasil, a movimentação em torno do gênero tecnobrega, no norte do país, e do funk (carioca e, posteriormente, também paulista) expressaram particularidades desse movimento. O mesmo se pode dizer do hip hop, que se espraiou dos Estados Unidos para a Europa e a América Latina nos anos 1980, chegou à África na década seguinte e continua crescendo progressivamente nesse continente a partir da virada do século, como rap africano (Bamba, 2007).
Soma-se a este panorama, o crescente uso de recursos e instrumentos musicais eletrônicos sintetizadores, samplers, mixers, potentes alto-falantes, dentre muitos outros queforam rapidamente incorporados às expressões musicais regionais, do dub e do reggae jamaicano dos anos 1970, ao afrobeat, hip hop funk carioca e reggaeton, em sound systems, trios-elétricos e bailes de todo tipo. Os DJs tornaram-se criadores de obras elaboradas a partir da combinação entre acervos digitais e analógicos de música gravada com tais recursos eletrônicos. Pedro Coquenão (Portugal, ritmos africanos), Toy Selecta (México, cumbia/hip hop) e Cancha Via Circuito (Argentina, cumbia) são alguns dentre muitos artistas que produzem tais sínteses musicais. Em termos financeiros, entre 1999 e 2014, o faturamento da indústria fonográfica apresentou queda de 39,9 %, (International Federation of the Phonographic Industry, IFPI, 2017), o que exprime as consequências dessas transformações. Somente aos poucos as grandes empresas do setor foram se aproximando do mercado digital de música gravada. A primeira estratégia nesse sentido replicava a venda direta de fonogramas no varejo, que passou a ser feita via download. Essa forma de comercialização permitia a aquisição definitiva dos fonogramas digitais pelo consumidor e mostrou-se rentável sobretudo no mercado dos Estados Unidos, por meio de sistemas como a iTunes Store e de parcerias com empresas de telefonia móvel.
Desde 2015, a indústria fonográfica vem se recuperando pela via do mercado digital. Os modelos então vigentes foram cedendo espaço ao streaming operado pelas plataformas empresariais de compartilhamento — modo de acesso digital aos conteúdos musicais gravados sem necessidade de download. Altera-se portanto a forma como a música é disponibilizada, deslocando a posse do fonograma para o acesso praticamente ilimitado ao conteúdo musical online, por meio de assinaturas pagas ou patrocinado por anúncios publicitários. A qualidade do som oferecido varia de acordo com o tipo de adesão feita pelo ouvinte.
Outra materialidade passa a conduzir o acesso à fruição musical, desde o fonograma originalmente gravado até as estruturas de rede, os decodificadores e os amplificadores presentes nos computadores, tablets, telefones celulares, fones de ouvido e demais acessórios. Mediante a aceitação das respectivas normas contratuais, todo artista pode apresentar sua obra nas plataformas digitais. O desafio para suas carreiras artísticas continua sendo o de alcançar visibilidade e aceitação, exigências que sempre vigoraram no universo musical. A expansão dos sistemas digitais, em termos transatlânticos, encontra seu limite nas desigualdades sociais digitais vigentes, o que tem dificultado a expansão dos negócios e das práticas culturais próprias à fonografia digital a certas regiões, como o continente africano, por exemplo. Nele, o acesso à internet depende de conexões feitas via sistemas de telefonia móvel e de aparatos tecnológicos que lhe são próprios, tendo em vista o custo mais elevado das redes de conexão fixas. Dados estimados em 2018 pela União Internacional de Telecomunicações, órgão da ONU, mostram que, naquele ano, metade da população mundial já usufruía de condições de conexão. Nos países desenvolvidos, cerca de 80 % dos habitantes já acessavam a internet. No continente africano, por outro lado, a população online correspondia a apenas um quarto dos indivíduos. O crescimento tem sido bastante lento, considerando que em 2005, 98 % dos africanos ainda não acessavam a internet (International Telecommunication Union, ITU, 2018). Em que pese a grande desigualdade socioeconômica do continente, em alguns países a expansão tem avançado a passos mais largos pela iniciativa das corporações de comunicação, o que inclui as plataformas de música gravada. Nigéria e África do Sul tem estado à frente deste processo (IFPI, 2017). Evidencia-se a discrepância entre as enormes facilidades trazidas pelo digital para a produção e a circulação musicais, a histórica riqueza da cultura musical africana, sua definidora presença na música produzida em âmbito transatlântico e a manutenção de rígidos limites para o desenvolvimento dos mercados musicais locais. Por outro lado, nesse entrave revela-se igualmente a materialidade fundante do digital, as condições concretas sem as quais a fonografia digital não poderia existir. Situação oposta à da África verifica-se em outras bordas do Atlântico. Países como Estados Unidos, Canadá e Brasil se mantêm há décadas entre os dez maiores mercados de música gravada. Com o streaming, a América Latina tem apresentado as maiores taxas mundiais de crescimento; Chile, México e Colômbia despontam como forças desse impulso de adequação ao sistema. Transbordando os limites do business, sem jamais dele se desprender efetivamente, a fonografia digital acelerou e potencializou a deslocalização e a desterritorialização da música gravada e de suas práticas, mantendo ininterrupta a execução de trilhas sonoras das e nas muitas diásporas do mundo transatlântico. De Fela Kuti e seu peculiar encontro com o jazz, ao hip hop/rap africano e ao kuduro eletrônico do Buraka Som Sistema, reelaboram-se elementos culturais ancestrais deslocalizados pela diáspora. Salvos na "nuvem", acervos de música digitalizada têm sido organizados, alimentados e disponibilizados por universidades, institutos de pesquisa e/ou ligados a movimentos culturais, preservando a memória e incrementando as possibilidades de escuta, pesquisa e conhecimento musical. A ampliação de tais aparatos e recursos digitais têm expandido a experiência musical, revivescendo e incorporando temas ligados à identidade cultural, como nos mostra Herman Grey ao analisar a retomada do movimento Afrofuturismo, que aproxima música e tecnologia a questões pungentes sobre a negritude e a cultura afro-americana. Nesses tempos em que a fonografia é sinônimo de fonografia digital, nos inquieta saber de que modo a barreira das desigualdades sociais digitais conseguirá romper-se e qual será seu impacto para a produção e a difusão da música transatlântica.