Cartografias transatlânticas da música popular nas américas
A música popular é frequentemente analisada a partir de “gêneros musicais” nacionais. A historiografia...
A transnacionalidade está na essência da configuração da canção popular na América Latina. A base da formação de sonoridades, instrumentações e gêneros que, ao longo do tempo, acabaram se consolidando no continente e sendo tomados como expressões das culturais nacionais, está nos intensos cruzamentos transatlânticos de referências das culturas originárias do continente—do universo cultural europeu imposto a partir da colonização, das culturas africanas aportadas com a escravidão, das trocas constantes e intermitentes entre as diversas partes do continente.
Se as trocas e transferências estão na base da formação cultural do continente, a história da invenção das nações latino-americanas no século XIX está diretamente associada à construção de culturas "nacionais", o que significava estabelecer limites e fronteiras que distinguissem aquilo que seria "típico" de cada nova nação em construção. Nesse processo foi se configurando, a partir de uma série de filtros e da definição de padrões, regras e formatos, o que seria a música "nacional" de cada país.
Se no século XIX lentamente a canção passou por esse movimento de "nacionalização", no século XX, o desenvolvimento da indústria cultural e a crescente circulação massificada possibilitada pela reprodução mecânica, abriram espaço para a conformação de um mercado musical internacionalizado. Os gêneros musicais, agora já fortemente identificados com as culturas nacionais, passaram a circular e a serem consumidos intensamente em diferentes partes do mundo. Após o fim da Segunda Guerra Mundial, com a imposição do cenário de Guerra Fria e a radicalização da polarização ideológica, a América Latina virou palco de disputas políticas e a indústria cultural, já consolidada, teve papel central.
Por um lado, gêneros como o bolero mexicano, a rumba cubana ou o samba brasileiro, já tomados como "típicos" de cada país, chancelados pelos Estados Unidos e sua indústria de entretenimento, se tornaram trilha sonora no cinema, tomaram os rádios de todo o continente e permitiram às grandes companhias multinacionais venderem milhares de discos. A canção produzida em diferentes partes do continente era digerida pela indústria cultural internacional e ganhava fôlego para romper fronteiras e se destacar em cenários como os Estados Unidos e a Europa.
Por outro lado, essa forte política de dominação cultural, imposta pelo poder das multinacionais nos meios de comunicação e de circulação da cultura de massas, que filtrava e chancelava aquele universo cultural que interessava politicamente colocar em circulação, provocou reações nos diversos países latino-americanos. Isso resultou num intenso processo de reafirmação daquilo que era entendido como "cultura popular", num movimento de resistência à mundialização da cultura que vinha se impondo.
Diante do avanço da modernização, da urbanização e da massificação do consumo, setores da intelectualidade em vários países latino-americanos reagiram defendendo a necessidade de revalorização dos elementos que seriam característicos da nacionalidade. A expressão desse "nacional" se encontraria no "popular", na cultura "autóctone" genericamente compreendida sob o rótulo de "folclore". Ao longo das décadas de 1940 e 1950, as artes se tornaram um campo de batalha simbólica e o "folclore" foi entendido como o lugar da resistência diante da dominação do imperialismo estrangeiro. Vários países latino-americanos viveram processos de intenso crescimento da pesquisa e divulgação do folclore, a ponto de se falar em um "boom" folclórico na virada da década de 1950 para a de 1960.
Inicialmente, a atividade folclorista estava muito ligada à perspectiva de "resgate" e "preservação" de uma cultura popular anônima, que estaria em vias de extinção devido ao avanço da modernização e da dominação da indústria cultural massiva. O folclorista era visto como uma espécie de "salvador", dotado da missão de não permitir que a cultura "original" do país se perdesse. No entanto, especialmente a partir da década de 1950, os debates no campo da atividade folclórica avançaram e novas perspectivas começaram a se apresentar. Em contraposição a esse folclorismo mais conservador, crescia a visão de que o folclore não podia ser visto como algo agonizante, peça de museu que precisava ser salva da extinção. O papel do folclorista passava a ser manter viva a "alma do povo", fazendo do folclore a base para a criação de novas obras. De material intocável, a produção folclórica passava a ser fonte para a constituição de obras autorais que, ao incorporar a informação folclórica e cruzá-la com outras referências, se transformariam em verdadeiras expressões da nacionalidade. No campo da música popular, os gêneros, ritmos e instrumentos da canção folclórica tradicional e anônima passavam a ser a matriz de um universo da canção massiva que ganhou lugar de destaque na indústria cultural.
Entre as décadas de 1950 e 1960, as rádios latino-americanas (e também de outras partes do mundo) foram tomadas por intérpretes folclóricos e grupos de projeção folclórica e suas obras se tornaram grandes sucessos de público. Esses artistas assumiram posturas muito diversas em relação ao entendimento do que seria a produção "folclórica", o que resultou na consolidação de diferentes vertentes do folclorismo. No interior dessa intensa atividade, dois nomes acabaram por adquirir especial destaque por serem pioneiros de uma vertente que buscou fazer da canção folclórica um espaço para a veiculação de conteúdos explicitamente políticos e engajados: Atahualpa Yupanqui e Violeta Parra.
O músico, compositor, intérprete, poeta, escritor e folclorista argentino Héctor Roberto Chavero (1908-1992), que adotou o nome artístico de Atahualpa Yupanqui, foi uma figura central no processo de politização da canção de matriz folclórica. Desde a década de 1930, Yupanqui viajou pela Argentina e por outros países latino-americanos, coletando material popular que serviu de base para o desenvolvimento de seu trabalho autoral.
O folclorista teve forte envolvimento com a política a partir da década de 1940, sendo filiado ao Partido Comunista Argentino, o que resultou em intensa perseguição e o levou diversas vezes para a prisão. Sua militância atingiu sua obra, transformando-o em pioneiro da produção de uma canção engajada baseada em material folclórico.
"El arriero", composta em 1944, é considerada uma das primeiras aparições da crítica social na canção folclórica, elemento que seria a marca central da nueva canción a partir da década de 1960. O personagem da letra da canção é um trabalhador rural que conduz os rebanhos, e os famosos versos "las penas son de nosotros, las vaquitas son ajenas" denunciavam de maneira original a exploração desse trabalhador, apontando para o abismo existente entre o homem simples do campo e o grande proprietário rural.
Em 1949, com o agravamento das tensões políticas na Argentina, Atahualpa deixou o país. Por meio de um esquema organizado pelo Partido Comunista, o músico conseguiu cruzar a fronteira com o Uruguai e partir para a França. Após uma passagem por Paris, Atahualpa deu início a uma viagem pelos países do bloco comunista, visitando Tchecoslováquia, Hungria, Bulgária e Romênia, onde realizou apresentações musicais, proferiu palestras sobre folclore latino-americano e participou de eventos artísticos e políticos. De volta à França, Yupanqui conseguiu grande espaço nos circuitos culturais locais, se apresentando com destaque e dividindo a cena com grandes nomes da canção francesa, como a cantora Edith Piaf.
Além disso, em Paris, o folclorista argentino registrou vários fonogramas para Le Chant du Monde, gravadora francesa fundada em 1938, intimamente ligada ao Partido Comunista Francês e famosa por manter um impressionante catálogo de "música do mundo".
O sucesso conseguido por Yupanqui no exterior contribuiu para sua afirmação como figura destacada da produção folclórica latino-americana, lhe garantindo lugar destacado no universo de referências da canção política do continente.
Ao lado de Yupanqui, outra referência central da atividade folclórica na América Latina da década de 1950 foi a compositora, intérprete, artista plástica e folclorista chilena Violeta Parra (1917-1967). Neste período, ela percorreu inúmeras localidades de seu país num minucioso trabalho de coleta de canções anônimas que compunham o repertório popular tradicional chileno, reunindo material que foi a base para que desenvolvesse seu trabalho autoral como compositora.
Em 1955, Violeta Parra viajou pela primeira vez à Europa, convidada a participar do V Festival Mundial da Juventude e dos Estudantes, ocorrido na cidade de Varsóvia, Polônia. A folclorista fazia, assim, sua primeira incursão pelo mundo comunista, passando também por União Soviética e Tchecoslováquia.
A viagem terminou com uma estada na França, onde a folclorista fez uma série de apresentações em bares e estabeleceu contato com artistas e intelectuais latino-americanos que se encontravam em Paris naquele momento.
Na capital francesa, Violeta gravou seus primeiros discos solo, dois álbuns editados pelo selo Le Chant du Monde nos quais dava voz a temas folclóricos recolhidos ao longo dos anos em que viajou pelo território chileno. A folclorista encontrava, assim, em meio a um cenário de valorização da cultura vinda de fora da Europa—muitas vezes entendida a partir de categorias como "exótico" e "pitoresco"—um espaço para a canção popular latino-americana.
Durante sua viagem europeia, Violeta ainda passou um período em Londres, onde se apresentou e gravou faixas para um álbum lançado pela gravadora Odeon, além de mostrar seu repertório em programas de televisão e em emissões radiais da rede BBC, amplificando ainda mais a circulação de sua obra.
Deste modo, com os partidos comunistas criando possibilidades para artistas latino-americanos visitarem e se apresentarem em países do bloco comunista, o pulsante movimento de canção folclórica que se fortalecia em várias partes da América Latina ganhava visibilidade também em circuitos culturais europeus. Um espaço inédito se abriu junto à indústria cultural europeia, o que permitiu a afirmação da produção folclórica latino-americana nos meios políticos, intelectuais e artísticos do velho mundo. Esse movimento de diálogo entre a cultura popular e os circuitos de circulação da cultura de massas levou ao desenvolvimento da canção comercial de matriz folclórica na América Latina. Isso criou as bases para que, nos anos 1960, diante das transformações no cenário político latino-americano, se vivesse um novo período da projeção folclórica, marcado pela politização e pela incorporação da crítica social, origem do projeto que se consagrou sob o rótulo de nueva canción latino-americana.
Em 1959, a Revolução Cubana chamou a atenção de todo o mundo para a América Latina. A instalação, em pleno cenário de Guerra Fria, de um governo socialista na pequena ilha do Caribe, até então entendida como parte do "quintal" dos Estados Unidos, causou um enorme impacto, animando os movimentos de esquerda de diversos países.
A ideia de "revolução" tomou conta de todo o continente americano, que passava a vislumbrar possibilidades concretas de mudanças políticas radicais. Isso teve forte impacto no campo cultural e a ideia de que era necessário investir na conscientização do povo para promover a transformação passou a ser central para grande parte da intelectualidade latino-americana. Muitos artistas identificados com os ideais de esquerda passaram a buscar fazer de sua arte instrumento de transformação social.
A canção popular, por seu caráter massivo e seu potencial de comunicação, passou a ser vista como caminho para a divulgação de ideias políticas para um público mais amplo, o que fez com que ganhassem força, em várias partes da América Latina, movimentos musicais que buscavam, a partir de uma tentativa de renovação estética das tradições nacionais, produzir canções políticas.
Ao longo da primeira metade da década de 1960, esse movimento de canção engajada que se estruturou, inicialmente, no Cone Sul se consagrou sob o rótulo de nueva canción latino-americana. Sua produção tinha como característica marcante um forte engajamento político e a busca da construção de um projeto de integração continental por meio da canção.
O primeiro marco fundamental de constituição do projeto da nueva canción latino-americana foi a articulação do movimento do nuevo cancionero argentino, iniciativa de um grupo de intelectuais na cidade de Mendoza, que, nesse momento, vivia uma grande efervescência cultural. O fato de o movimento ter se organizado fora de Buenos Aires é significativo, pois uma das propostas do grupo era questionar a existência de um eixo articulador da cultura nacional centralizado na capital do país, enfatizando a necessidade de incorporar ao "nacional" a produção cultural das demais províncias.
O movimento, cuja concepção e articulação dependeu, em grande medida, da atuação de Armando Tejada Gómez (1929-1992) e Óscar Matus (1935-1991), teve na cantora tucumana Mercedes Sosa (1935-2009) uma de suas figuras de maior projeção.
O movimento foi lançado oficialmente com um concerto realizado no Círculo de periodistas de Mendoza, em 11 de fevereiro de 1963. Para além da apresentação de números artísticos, a noite de lançamento foi marcada pela primeira leitura pública do Manifiesto del Nuevo Cancionero, redigido por Tejada Gómez e assinado por uma série de artistas e intelectuais. O documento congregava os princípios defendidos pelo grupo, partindo da discussão sobre o panorama da música popular argentina, mas também apontando a necessidade de buscar diálogos que superassem os limites nacionais e pusessem a canção argentina em contato com as demais produções do continente.
Os marcos discográficos iniciais do nuevo cancionero argentino foram as gravações dos álbuns Testimonial del Nuevo Cancionero, que reunia poemas de Armando Tejada Gómez e suas canções em parceria com Óscar Matus, e Canciones con fundamento, em que Mercedes Sosa dava voz a várias parcerias de Matus e Tejada Gómez. Ambos foram editados em 1965 pelo selo independente El grillo, comandado por Matus.
Nessa mesma época, o forte movimento de renovação folclórica uruguaio criou o ambiente para que uma nova geração de compositores e intérpretes propusesse, em diálogo com o que vinha acontecendo em países como a Argentina, a incorporação de novas sonoridades e a conexão do repertório folclórico com o contexto social e político daquele momento.
Ainda que não tenha constituído um movimento organizado e institucionalizado como o argentino, essa geração teve sua produção agrupada sob o rótulo de canción protesta. A fundação dessa nova vertente foi marcada pelo lançamento, pelo selo uruguaio Antar, do álbum de estreia de Los Olimareños, duo composto por Braulio López (1942-) e José Luis Guerra (1943-), e pelo álbum de estreia do compositor e intérprete Daniel Viglietti (1939-2017). Esses artistas, ao lado de Alfredo Zitarrosa, conformaram, nesse momento, o núcleo central da canção engajada uruguaia.
"Canción para mi América", lançada por Viglietti em seu primeiro álbum, pode ser vista como a primeira grande obra da nueva canción latino-americana, ao afirmar o discurso latino-americanista e encontrar intensa circulação pelo continente, sendo regravada já nos anos seguintes pelos irmãos chilenos Isabel e Ángel Parra e pela cantora argentina Mercedes Sosa.
No Chile, um grupo de artistas gestados no âmbito do que foi chamado de neofolklore, (movimento de canção de matriz folclórica fortemente atrelado aos interesses comerciais da grande indústria), acabou por assumir posturas políticas mais explícitas e críticas, se distanciando do tradicionalismo da música típica e formando a base do que foi consagrado sob o rótulo de nueva canción chilena.
O movimento, bastante influenciado pelo que vinha se desenvolvendo no plano da canção folclórica na Argentina e no Uruguai, era diretamente tributário da obra de Violeta Parra. Trilhando caminhos abertos pela folclorista, a nueva canción empreendeu uma ampliação do universo sonoro da canção folclórica chilena, incorporando, inclusive, referências musicais do folclore de outros países latino-americanos.
O surgimento do movimento está diretamente ligado à segunda experiência europeia de Violeta Parra, dessa vez em companhia de seus filhos Isabel Parra (1939-) e Ángel Parra (1943-2017). Viajando novamente para participar do Festival Mundial da Juventude e dos Estudantes, dessa vez realizado na cidade de Helsinque, na Finlândia, em julho de 1962, a família Parra passou por União Soviética, Alemanha e Itália, concluindo a viagem com uma longa temporada em Paris, que se estendeu até 1965. Durante a temporada europeia, a família Parra fez uma série de concertos, apresentações para rádio e televisão, estabelecendo uma profunda convivência com artistas e intelectuais europeus, o que contribuiu para manter a visibilidade da produção cultural latino-americana de matriz folclórica nos circuitos do velho continente.
Ao retornar da viagem, os irmãos Isabel e Ángel, muito impactados pela cena artística parisiense, arrendaram um imóvel em Santiago onde abriram a Peña de los Parra, cuja fundação pode ser tomada como marco inicial do movimento da nueva canción chilena.
A peña passou a ter em seu elenco fixo, além dos próprios irmãos Parra, artistas como Patricio Manns (1937-) e Rolando Alarcón (1929-1973), aos quais logo se juntou Víctor Jara (1932-1973), reunindo, assim, aqueles que constituiriam o núcleo central do movimento da nueva canción, permitindo seu contato com o público e a divulgação de suas canções, que logo foram registradas em disco.
Aos poucos, o movimento foi se ampliando e ganhando a adesão de novos artistas, com destaque para a criação dos conjuntos folclóricos Quilapayún e Inti-Illimani. O ano de 1969 marcou o início de um processo de institucionalização, com a realização do I Festival de la Nueva Canción Chilena, que batizou definitivamente o movimento, divulgou os artistas e permitiu a circulação de suas obras.
Com a consolidação, no final da década de 1960, do nuevo cancionero argentino, da canción protesta uruguaia e da nueva canción chilena, se articulava definitivamente um modelo de canção comprometida, de forte caráter latino-americanista. Seus compositores e intérpretes encontraram caminhos próprios e originais e dialogaram de modos distintos com as tradições musicais nacionais de seus países. Contudo, compartilharam referências, o que permitiu a constituição de um universo musical comum, fortemente politizado, que se consagrou sob o rótulo de nueva canción latino-americana.
Um dos marcos mais significativos da afirmação desse movimento de canção política e de sua projeção em nível continental foi a realização em Havana, entre 29 de julho e 10 de agosto de 1967, do I Encuentro de la Canción Protesta. Naquele momento ocorria em Cuba o evento que oficializava a criação da Organización Latinoamericana de Solidaridad (OLAS), que buscava articular os países periféricos sob a liderança dos cubanos.
O encontro reuniu as delegações de artistas de dezoito países com o objetivo de discutir os caminhos e possibilidades da canção de protesto. Os músicos convidados também apresentaram suas obras em concertos ao ar livre, em teatros, no rádio e na televisão. No âmbito dos debates que se estabeleceram no evento, foram discutidas as maneiras pelas quais a canção poderia ser utilizada como arma de denúncia das desigualdades sociais e das mazelas do povo trabalhador e de conscientização da população para o engajamento na luta revolucionária. Tratou-se também das perspectivas estéticas, refletindo sobre a relação da canção de protesto com o universo folclórico e com a cultura popular e sobre as possibilidades de cruzar essas referências com elementos musicais modernos.
Além disso, o evento ainda afirmou Cuba como o centro aglutinador da experiência revolucionária no continente americano, servindo de plataforma para que o governo socialista da ilha defendesse o seu modelo de revolução diante dos intensos debates que tomavam a esquerda mundial naquele momento. A presença de representantes de diferentes países latino-americanos (argentinos, chilenos, cubanos, haitianos, mexicanos, paraguaios, peruanos e uruguaios), a maior parte deles ligados aos movimentos de nueva canción em seus países, demonstrava a busca por ampliar as conexões no continente de modo a estabelecer uma rede da canção de protesto latino-americana.
Apesar da forte marca latino-americanista, o evento também buscou ampliar os diálogos para além da América Latina por meio da participação de delegações de Austrália, Espanha, França, Grã-Bretanha, Itália, Portugal, o que permitia que a nueva canción se abrisse para aproximações com a canção de protesto de diferentes matrizes e atentasse para novos temas e bandeiras.
Um dos grupos de maior destaque no evento foi a delegação inglesa, composta por Terry Yarnell, John Faulkner, Sandra Kerr (1942-) e o casal Ewan MacColl (1915-1989) e Peggy Seeger (1935-), membros do que ficou conhecido como The London Critics Group. O movimento, liderado pelo casal MacColl e Seeger, organizou, nas décadas de 1960 e 1970, reuniões em que se discutiam as possibilidades de ação da canção política e a inserção da folk music na Inglaterra.
Por meio da presença significativa de artistas de fora da América Latina no evento cubano, a nueva canción estabeleceu uma conexão importante com a protest song do mundo, ganhando lugar, em seus discursos, a questão do anti-imperialismo e da luta contra a dominação estadunidense no continente. Também passaram a fazer parte do repertório dos músicos latino-americanos bandeiras como a descolonização de países da África e da Ásia, a luta pelos direitos civis das minorias e a oposição à Guerra do Vietnã, representada pela presença uma delegação da Frente de Liberação do Vietnã do Sul.
Outra ponte importante estreitada no Encuentro de la Canción Protesta foi com a folk music estadunidense. Nos Estados Unidos, desde o século XIX, a discussão em torno do folclore ganhou força, com diversos pesquisadores percorrendo o país para coletar materiais que expressariam as "origens da nacionalidade". Na década de 1930, com os impactos da crise de proporções inéditas que assolou o país, grupos críticos ligados às ideias de esquerda ganharam força. Junto a esses grupos se articulou um conjunto de artistas que passou a redefinir as perspectivas até então adotadas pela música de matriz folclórica, agora chamada de folk music, buscando coloca-la a serviço do engajamento político.
Grande parte dos músicos ligados à folk music estabeleceram relações com o Partido Comunista e organizações a ele vinculadas, o que fez com que sofressem enorme perseguição na década de 1940, no contexto de radical anticomunismo simbolizado pelas atividades do Comitê de Atividades Antiamericanas, que chegou a intimar para depoimentos artistas importantes da canção de protesto, como Pete Seeger (1919-2014).
Ao longo das décadas de 1950 e 1960, esses artistas de música folk ganharam relevância no cenário musical estadunidense, assumindo lugar de destaque nos movimentos que lutaram contra a Guerra do Vietnã e em nome dos direitos civis. A canção passou a ser vista como peça-chave nas manifestações e protestos que tomaram os Estados Unidos. Foi nesse contexto que o casal Barbara Dane (1927-) e Irwin Silber (1925-2010) ganhou destaque, atuando intensamente em nome da politização da canção folclórica e de seu uso em defesa de causas políticas. Irwin Silber era jornalista e foi diretor executivo da revista People's Song e editor da revista Sing Out!, famosas publicações norte-americanas que divulgaram a folk music e defenderam a atuação política dos músicos.
Barbara Dane, importante cantora de jazz e folk, ganhou grande destaque atuando ao lado de Pete Seeger em eventos contra a Guerra do Vietnã, e foi a primeira artista norte-americana a fazer uma turnê por Cuba depois da revolução, em 1966. Essa militância a levou, ao lado de Silber, a representar os movimentos contestatórios norte-americanos no I Encuentro de la Canción Protesta.
A participação do casal norte-americano no I Encuentro de la Canción Protesta e o contato estabelecido por eles com artistas latino-americanos, teve forte influência na fundação do selo discográfico Paredon Record, em 1970, que ao longo de 12 anos produziu 45 discos e atuou como um importante canal de divulgação da nueva canción latino-americana nos Estados Unidos e no mundo.
No encerramento do I Encuentro de la Canción Protesta decidiu-se pela edição de um disco reunindo canções de vários dos artistas participantes do evento. Também foi proposta a criação de um centro que teria o objetivo de manter ativas as trocas entre as experiências de canção engajada de todo o continente, funcionando como uma base para a nueva canción.
O Centro de la Canción Protesta, criado ainda em 1967 e sediado na Casa de las Américas, assumiu a função de espaço de divulgação da produção de artistas das mais variadas partes do continente e se tornou um espaço importante para a reunião de jovens artistas cubanos, que buscavam renovar a tradição musical da ilha e criar uma nova música conectada com o momento político do país.
Artistas como Pablo Milanés (1943-), Silvio Rodríguez (1946-) e Noel Nicola (1946-2005) se reuniram pela primeira vez no Centro de la Canción Protesta, que não teve longa duração, deixando de existir em meados de 1969. Com o fim da experiência, no entanto, seus participantes foram chamados para participar de um novo projeto que vinha sendo desenvolvido por Alfredo Guevara, figura chave da cultura cubana e diretor do Instituto Cubano de Arte e Industria Cinematográficos (ICAIC).
Guevara, após uma viagem ao Brasil em que tomou contato com as experiências ousadas do cinema do país, se impressionou com as trilhas sonoras desses filmes e decidiu criar, em 1969, o Grupo de Experimentación Sonora (GESI), cujas atividades, ligadas ao ICAIC, tinham como objetivo a elaboração de trilhas sonoras para os filmes cubanos. A liderança do grupo ficou a cargo do maestro Leo Brouwer (1939-).
O GESI foi o espaço de gestação da produção artística que, a partir da década de 1970, passaria a integrar o movimento oficialmente batizado de nueva trova cubana, representando uma nova perspectiva estética dentro do cada vez mais amplo e complexo universo da nueva canción latino-americana. Ao mesmo tempo em que se articulava uma nova vertente de música engajada em Cuba, a nueva canción se espalhava por todo o continente, e movimentos baseados na proposta de modernização da tradição musical nacional, de modo a criar uma canção que servisse de plataforma para discursos políticos, ganharam força em vários países. Na virada da década de 1960 para a década de 1970, a nueva canción se tornou um verdadeiro fenômeno musical na América Latina. Um amplo e complexo circuito de circulação de músicos e obras se estabeleceu, permitindo a veiculação dessa produção para além dos países latino-americanos.
O alto teor político do repertório da nueva canción latino-americana e o engajamento de seus artistas faziam com que o cenário político tivesse impacto direto no desenvolvimento dessa produção artística. O avanço constante do autoritarismo no continente latino-americano, com um multiplicar de golpes militares e a instalação de governos ditatoriais, trazia para esse universo artístico um forte discurso em nome da emancipação e da luta pela liberdade que abriria caminho para a revolução.
Diante do fechamento dos países vizinhos, a eleição do socialista Salvador Allende para presidente do Chile, representando uma coligação de partidos de esquerda denominada Unidade Popular, fez desse país um espaço fundamental de afirmação das esperanças de mudança. Os artistas ligados à nueva canción chilena se engajaram intensamente na campanha pela eleição de Allende e, com sua vitória, mesmo que adotando diferentes posicionamentos ideológicos dentro da esquerda chilena, assumiram lugar de destaque no processo político.
Durante os três anos da experiência do governo da Unidade Popular, o Chile se tornou, ao lado de Cuba, núcleo central da produção de canção engajada e também ponto de encontro de músicos de diversas partes do mundo que buscavam fazer de sua arte instrumento de luta política. Os diálogos entre os dois países foram muito intensos nesse período, envolvendo visitas de Fidel Castro ao Chile e de Salvador Allende a Cuba, além da ampla circulação de artistas entre os dois países.
Nessa primeira metade da década de 1970, as perspectivas estéticas e as bandeiras políticas da nova canción latino-americana se ampliaram e esse intenso movimento de construção de uma rede de circulação de seus artistas foi fortemente atingido pelo recrudescimento do autoritarismo no continente. A década de 1970 foi marcada pela radicalização das experiências ditatoriais no Cone Sul. Se desde a segunda metade da década de 1960 o continente vivia uma escalada autoritária, nos anos 1970 o fechamento foi completo. Em 1973, o golpe militar no Uruguai cristalizava a experiência autoritária que já vinha em curso no país e o golpe militar no Chile punha fim à experiência do governo da Unidade Popular. Em 1976, se concluía o fechamento com o golpe liderado pelo general Jorge Rafael Videla e a instalação de uma nova ditadura na Argentina. Diante desse cenário, os artistas engajados se transformaram em alvos privilegiados dos novos donos do poder. Censura, perseguição, tortura, desaparecimentos, morte e a violência que marcou os novos governos atingiu diretamente os artistas da nueva canción.
Um dos episódios mais marcantes desse processo foi o brutal assassinato do chileno Víctor Jara que, no dia do golpe militar, 11 de setembro de 1973, foi preso e conduzido ao Estádio Nacional, que se converteu em um enorme campo de concentração. Ali, o músico foi barbaramente torturado e morto pelos agentes da repressão, se convertendo em símbolo maior da violência que se abateu sobre os artistas engajados latino-americanos.
Para os músicos que ficaram em seus países, o desafio agora era conseguir sobreviver em meio à violência e seguir desenvolvendo sua obra, mesmo que sob as marcas da censura e da repressão. O objetivo passou a ser encontrar meios para resistir à ditadura e fazer da canção uma arma nessa luta. Para muitos artistas, no entanto, que se tornaram especialmente visados pelos novos regimes, a saída foi o exílio. Grande parte das figuras centrais da nueva canción latino-americana se exilou entre finais da década de 1960 e início da década de 1970.
Cuba, centro revolucionário do continente, e México, país com longa tradição de acolhimento de perseguidos políticos, foram, para muitos, a saída mais próxima para tentar escapar da repressão. Nesses países se articularam movimentos de solidariedade às vítimas das ditaduras no continente, que acabaram por utilizar os artistas e o repertório da nueva canción como instrumento de mobilização.
No México foi editado, em 1974, o álbum México Chile Solidaridad, em que destacados artistas engajados mexicanos se uniram para gravar canções em homenagem ao povo chileno. Já em Cuba foram lançados dois álbuns: Jornada de solidaridad con la lucha del Pueblo de Chile, que reuniu artistas da nueva trova cubana, e Compañero presidente, projeto importante por reunir representantes da nueva canción de várias partes do continente para prestar uma homenagem a Salvador Allende, morto nos conflitos ocorridos durante a tomada do poder pelos militares.
Projetos como esses tiveram papel importante no processo de mobilização de movimentos de resistência às ditaduras e de acolhida às suas vítimas, mas também demonstravam como, nesse período, a nueva canción latino-americana já tinha assumido efetivamente um papel destacado nas lutas políticas do continente.
Se em um primeiro momento os países vizinhos foram rota de fuga, com o tempo, para muitos, o caminho foi buscar refúgio em lugares mais distantes, especialmente em países da Europa que se dispuseram a dar abrigo aos exilados. Em várias partes do mundo se articularam movimentos de solidariedade às vítimas das ditaduras na América Latina. Esses movimentos encontraram na canção um caminho importante para veicular seus discursos políticos, especialmente no sentido de denunciar as atrocidades que vinham sendo cometidas pelos novos governos autoritários instalados no poder.
A experiência do exílio, embora tenha significado um duro golpe para a nueva canción latino-americana, acabou por representar um momento de redimensionamento dos projetos. Se os antigos circuitos da arte engajada se fecharam com a repressão e a censura, novas redes, ainda mais amplas, se estabeleceram por conta da intensa circulação dos artistas a partir da constituição de uma rede musical do exílio. Em vários países foram editados discos coletivos que acabaram por consolidar um universo sonoro entendido, já a essa altura, como típico da nueva canción. Além disso, esses discos veicularam um repertório que assumia uma voz de resistência e pretendia despertar a consciência, tanto entre a comunidade de exilados quanto entre a população dos países de acolhida, para a necessidade de lutar contra as ditaduras. A consciência de que a experiência do exílio não seria tão breve como previsto inicialmente e a necessidade de encontrar meios de sobrevivência e retomar suas carreiras fizeram com que os artistas exilados passassem a buscar caminhos para se inserir nos circuitos artísticos dos países de acolhida. Muitas gravadoras abriram seus estúdios e catálogos para os artistas ligados à nueva canción.
Paris foi um dos núcleos mais importantes de exilados latino-americanos na Europa. Muitos militantes de grupos de esquerda se refugiaram ali e vários artistas de destaque da nueva canción latino-americana, como os chilenos Isabel e Ángel Parra e o uruguaio Daniel Viglietti, se estabeleceram na França. O selo francês Le Chant du Monde, que já tinha uma longa tradição de atenção à produção folclórica latino-americana, mantendo em seus catálogos álbuns de Atahualpa Yupanqui e Violeta Parra, foi um dos espaços que acolheu artistas exilados.
Ainda em Paris, gravadoras menores ligadas a militantes políticos também acolheram artistas latino-americanos, como é o caso do selo independente Expression Spontanée, criado pelo compositor e cantor francês Jean Bériac. O selo gravou e editou álbuns do conjunto Karaxú, fundado no exílio pelo chileno Patricio Manns com o objetivo de fazer propagando do Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR), agrupação que defendia a resistência armada contra a ditadura militar.
Outras cidades europeias também se tornaram núcleos importantes de exilados, como é o caso de Roma. Na Itália, o selo I Dischi Dello Zodiaco, ligado à gravadora Vedette Records, fundada pelo músico Armando Sciascia em 1962, foi o reduto dos artistas latino-americanos, mantendo em seu catálogo discos de nomes da nueva canción, como os chilenos do conjunto Inti-Illimani.
Embora trágica, a experiência do exílio permitiu a inserção de artistas latino-americanos em circuitos musicais do mundo inteiro. Na segunda metade da década de 1970, a produção dos exilados conseguiu atingir altas vendagens nos circuitos europeus, criando amplo interesse na produção musical da América Latina, mas também chamando atenção para os problemas políticos da região e abrindo espaço para denúncias das atrocidades cometidas pelas ditaduras. Deste modo, se por um lado os golpes militares significaram um abrupto fechamento dos canais de circulação da nueva canción que haviam se estabelecido ao longo da década de 1960, por outro, o fato de muitos terem sido obrigados a partir para o exílio fez com que os circuitos de circulação se redimensionassem, permitindo que o movimento alcançasse uma escala de repercussão até então inédita.
Nesse momento de redefinição dos circuitos de circulação da nueva canción, uma importante conexão se estabeleceu com a experiência de canção engajada que vinha se desenvolvendo no Brasil. O contexto de instalação de governos autoritários em vários países latino-americanos permitiu uma aproximação com a realidade brasileira, país que desde 1964 vivia sob um regime ditatorial.
As primeiras experiências de engajamento político no campo da canção popular brasileira se deram na primeira metade da década de 1960, quando propostas de reformas estruturais animaram setores progressistas com a possibilidade de mudanças no país. Nesse momento, artistas ligados ao movimento da bossa nova, que vinha se articulando desde finais da década de 1950, passaram a defender a necessidade de rever os temas das canções, de modo a conectá-las com o cenário político.
Compositores como Sérgio Ricardo (1932-) e Carlos Lyra (1939-), figuras centrais da bossa nova, passaram a criticar as temáticas do movimento, que estariam excessivamente vinculadas aos setores de classe média da zona sul carioca, defendendo a necessidade de trazer novas questões. A canção deveria se politizar, dando origem ao que passou a ser chamado de bossa nova nacionalista.
Este era o ponto de partida de um movimento de canção engajada que, com o golpe militar de 1964, assumiu a linha de frente na resistência contra a ditadura. Ao longo da década de 1960, vários artistas passaram a adensar o movimento, buscando desenvolver uma canção que, embora não abrisse mão das conquistas estéticas da bossa nova, tinha como objetivo se reconectar com o popular por meio da incorporação de gêneros como o samba. A indústria fonográfica, as estações de rádio e especialmente os canais de televisão tiveram papel crucial no fortalecimento desse movimento. Os festivais da canção, que se tornaram um dos principais produtos da indústria cultural brasileira, funcionaram como plataforma de divulgação da canção engajada e foram palco de intensas disputas entre diferentes vertentes que rivalizavam tanto do ponto de vista dos projetos estéticos quanto dos projetos políticos.
Esse universo da música popular brasileira engajada, que acabou se institucionalizando sob o rótulo de música popular brasileira (MPB), se manteve, de certa forma, afastado do processo de articulação da nueva canción latino-americana. Poucos diálogos efetivos se estabeleceram entre os músicos engajados brasileiros e os grandes nomes da canção política dos países vizinhos até meados da década de 1970. Com a intensificação do autoritarismo que tomou o continente, o compartilhamento da experiência de resistência à violência e à repressão dos governos militares irmanou os artistas brasileiros a seus vizinhos, iniciando uma série de conexões. Artistas centrais da MPB, como Elis Regina (1945-1982), Milton Nascimento (1942-) e Chico Buarque (1944-), colaboraram de maneira estreita com artistas argentinos, chilenos e cubanos ao longo da década e incorporaram a seus repertórios canções referenciais da nueva canción.
Na final da década de 1970 e, principalmente, na década de 1980, novas questões se colocaram, provocando uma revisão radical das perspectivas estéticas e ideológicas dos artistas da nueva canción. Nessa nova realidade da América Latina, marcada pela abertura política, os legados deixados pela militância da nueva canción tiveram que encontrar seu espaço junto às disputas de memória que marcaram as experiências de redemocratização, iniciando um novo momento da produção musical do continente.