Maracatus transatlânticos
Grupos típicos de Pernambuco, Brasil, os maracatus expressam através de música, dança e rituais,...
A música popular é frequentemente analisada a partir de "gêneros musicais" nacionais, consagrados a partir de convenções estéticas e socioculturais próprias, via de regra, elaboradas ao longo de várias décadas. Basta lembrarmos dos mais tradicionais gêneros musicais do continente americano, como o samba, o jazz, a rumba, bolero e tango para que nossa memória cultural os relacione aos seus países de "origem": Brasil, Estados Unidos, Cuba, México e Argentina, respectivamente. A historiografia da música, já há algum tempo, vem problematizando esta abordagem pautada pelo recorte nacional, mas na memória social e na cultura de massa, a identificação entre gêneros musicais e certas identidades nacionais ainda é muito forte. Não por acaso, a história destes grandes gêneros se confunde com o processo de modernização e massificação cultural dos países que estão na sua origem.
Seria possível construir uma outra cartografia das músicas populares americanas?
Se a literatura ou as "belas artes" são formas artísticas mais fáceis de serem controladas e inseridas em uma hierarquia sociocultural determinada, exigindo habilidades e recursos específicos de artistas formados, críticos e fruidores, a música sempre esteve mais aberta a uma circulação imprevista e incontrolável de sons, timbres e ritmos. Tanto em seus processos iniciais de formação e consolidação, como gêneros mainstream já consagrados do sistema musical dos seus respectivos países, nenhuma forma ou gênero de dança, música instrumental ou canção esteve isenta de entrecruzamentos e transferências culturais transnacionais e transoceânicas. Muitas vezes, estas trocas ocorrem às margens dos circuitos socioculturais chancelados pelas elites, pelo mercado estabelecido ou por instituições artísticas oficiais. Em quase todas as formações nacionais, nas Américas e na Europa, principalmente ao longo do século XIX, houve uma grande separação entre uma cultura considerada legítima representante dos países, sob o signo da civilização e do progresso, e uma cultura considerada "popular" que esteve prensada entre o recalque puro e simples e a apropriação exótica pelas elites letradas. A música não escapou desta luta cultural que, frequentemente, foi perpassada por preconceitos de classe e de raça.
Esta pluralidade de conexões e hibridismos, multidirecionais e polifônicos, não impede que tentemos mapear estes processos históricos e sugerir parâmetros de análise, ainda que sob o risco de algumas generalizações a serem cotejadas e problematizadas em futuras pesquisas. Este é um dos objetivos desta cartografia, centrada nas trocas musicais entrecruzadas entre Europa, Américas e África, responsável pela formação das principais matrizes musicais do continente americano.
O fenômeno musical que chamamos de "música popular" no contexto cultural do continente americano pode ser pensada em dois formatos históricos básicos: um formato voltado para a dança (nas ruas e nos salões, em grupo ou em pares) e um outro formato para a audição individual ou coletiva, sem apelo direto à dança, que se caracteriza pela combinação entre música e "palavra cantada" (letra, parole, lyrics), interpretada pela voz humana. Historicamente, os dois formatos coexistiram e se afirmaram, mas não seria exagerado dizer que a "canção", exemplo mais acabado do segundo formato que a música popular assumiu, se afirmou no século XX e se mesclou aos muitos gêneros de música instrumental que estavam voltados sobretudo para a dança. Em outras palavras, qualquer classificação que tome por base uma dicotomia entre música para dançar e música para ouvir é meramente didática, e não pode ser superdimensionada para uma análise mais ampla e dialética da história da música.
A circulação dos vários sons musicais pelas Américas, ou entre as Américas, África e a Europa é mais antiga do que a colonização do continente. Não se trata de analisar a música ameríndia pré-colonial como "autóctone" ou "estática" no tempo e no espaço da América pré-colombiana. Os povos ameríndios tinham redes complexas de trocas culturais ao menos dentro das macrorregiões andina e mesoamericana, bem como nas regiões costeiras de Atlântico e Pacífico, nos pampas, nos confins árticos e patagônicos.
Seria mais apropriado dizer que a colonização instituiu outros padrões e materiais de transferências culturais, fazendo com que as músicas europeias e africanas estabelecessem uma forma de hibridismo rítmico e timbrístico até então inusitada, fenômeno que está na origem das músicas populares modernas de vários países americanos.
No caso da América hispânica e portuguesa, a presença da Igreja Católica, particularmente dos jesuítas, constituiu a base de uma das primeiras experiências sócio-musicais transatlânticas, que oscilou entre a imposição dos padrões harmônicos europeus e a assimilação seletiva destes padrões por comunidades ameríndias.
Ao que parece a relação entre música e catequese nos primórdios da colonização foi mais bem estruturada na América espanhola do que na Portuguesa, como atesta o Padre João Daniel em meados do século XVIII:
"...Desta sorte não se podem insinar os mininos, e muito menos os adultos a música, nem instrumentos músicos, porque é trabalho perdido: Que vale cansar-se um missionário a insinar os seus neófitos a cantar ûa missa, a celebrar um ofício, a tocar alguns instrumentos se eles chegando a ser capazes de oficiarem nas igrejas se obrigam a ir remar canoas, e trabalhar para os brancos? [...] Não assim nas missões castelhanas, onde os índios são estáveis, bem como qualquer povoação de brancos da Europa, e por isso os ensinam os seus missionários, aprendem solfa, aprendem instromentos músicos, celebram nas igrejas com muita solenidade os Ofícios Divinos aproveitam-se nas artes mecânicas, e finalmente bem logra-se, o que se lhes ensinam1.
Em que pese a importância destas primeiras trocas musicais transatlânticas que remontam ao século XVI, sobretudo para a música ameríndia que se fará nos séculos seguintes, para o recorte deste texto vamos focar nos intercâmbios surgidos a partir do final do século XVIII e ao longo dos séculos XIX e XX. Foram estes intercâmbios que moldaram uma cartografia musical dinâmica e mutável, mas com padrões identificáveis e agenciamentos de diversos grupos étnicos e sociais, que moldou gêneros musicais matrizes.
Como regra geral, pode-se afirmar que entre os séculos XVIII e início do século XX, o intercâmbios entre mediadores intelectualizados (viajantes, artistas, escritores) e os deslocamentos populacionaisem massa, seja de africanos traficados e europeus emigrados, foram centrais na afirmação destes intercâmbios musicais e na assimilação de gêneros musicais que chamaríamos de "matrizes" em contextos locais.
A partir de meados do século XX, a circulação de produtos culturais de natureza radiofônica, fonográfica ou audiovisual, produzidos sob a chancela da cultura de massa, veiculadas por mídias eletrônicas, dentro de uma estrutura de consumo cultural mercantilizado, passou a ser o principal formato de difusão musical entre os países, mesmo que os deslocamentos físicos de mediadores e populações ainda possa ser significativo. Já no início do século XXI, as mídias e protudos digitais, distribuídos ou formatados por grandes corporações multinacionais, assumiram o protagonismo principal deste sistema de trocas culturais e musicais. Em outras palavras, partimos da premissa que as experiências de trocas musicais do século XXI, em princípio, dependem menos dos deslocamentos físicos dos agentes culturais autorais ou anônimos do que as experiências do século XVIII e XIX. Entretanto, vale lembrar que estes deslocamentos físicos atuaram no Século XX e atuam neste início de século XXI, constituindo experiências peculiares e formas musicais específicas, ainda que pouco visíveis no mercado musical.
Por outro lado, ainda na fase histórica em que os deslocamentos populacionais eram determinantes para a constituição de experiências musicais transculturais, não podemos menosprezar a circulação de impressos e a atuação de instituições culturais ligadas às elites nacionais em formação, como elementos instituintes da cartografia musical das Américas. Ainda no século XVIII, a modinha e do lundu, considerados por grande parte da historiografia musical brasileira como "gêneros matrizes", são exemplos desta complexa rede de migrações de pessoas e de impressos entre África e Brasil, Brasil e Portugal, Península Ibérica e América.
O caso do lundu, cujas primeiras referências datam de 1760, é muito paradigmático deste padrão de trocas e hibridismos culturais, e revela o que talvez sejam as primeiras grandes ondas de migração musical para a América, vindas da Península Ibérica e da África. O lundu brasileiro era dançado ao som da percussão africana por mestiços que imitavam a coreografia do fandango ibérico, na qual o dançarino punha "uma mão na testa e outra na ilharga" (apud Tinhorão, p. 52). De Portugal, conforme Vasco Martins, o lundu teria chegado ao Cabo Verde (África) ainda no século XVIII, dando origem ao gênero nacional do país, a morna.
Na América hispânica o formato musical mais influente do século XVIII e começo do XIX era a habanera (ou havanera), cuja história revela uma das mais complexas e influentes migrações musicais e transferências culturais transatlânticas na área musical. Como nos casos de outros gêneros musicais matrizes, não há consenso entre os pesquisadores para explicar a "origem" desta forma, o que aliás, não é mais uma questão para a historiografia e para a musicologia contemporâneas. Ainda assim, as duas explicações mais aceitas para explicar a chegada deste ritmo em Cuba remetem às experiências transculturais transatlânticas. Para Alejo Carpentier (La Música em Cuba, 1946), a habanera cubana deriva da contradance francesa, trazida para a ilha por franceses que fugiram da revolução haitiana na virada do século XVIII para o XIX. Para Natalio Galan, a contradanza chegou diretamente da Espanha, depois de ser formatada nas cortes inglesas e francesas do ancien régime.
Até meados do século XIX, a habanera foi a principal forma musical, cantada e dançada, de Cuba. Retornou à Espanha pela mão dos marinheiros, e, além de se tornar popular em algumas regiões do país, como a Andaluzia, foi adotada com dança de salão e motivo para compositores de música erudita, como Maurice Ravel, Bizet e Camille Saint-Saens.
Se não há consenso quanto às rotas de chegada da contradanza em Cuba, todos os pesquisadores concordem que houve uma peculiar assimilação da dança europeia no novo ambiente cultural e racial cubano, com a introdução do tresillo(considerada pelos musicólogos como célula rítmica básica da áfrica subsaariana) e do contratempo (marcação do tempo fraco do compasso musical).
Mas a viagem musical da habanera e seu tresillo não foi apenas na direção da Europa. Mesmo formalizada inicialmente em Cuba, onde o tresillo se transformou em "ritmo de habanera, esteve presente em New Orleans, Rio de Janeiro e Buenos Aires, fazendo nascer as primeiras formas musicais dançadas e tocadas que estão na base do jazz (cakewalk, ragtime), do samba (maxixe), da milonga platina e do tango porteño.
O tresillo pode não caracterizar apenas um caso de migração, mas também de simultaneidade, conforme defende Carlos Sandroni. Para o musicólogo brasileiro o tresillo apareceu simultaneamente "na música de muitos outros pontos das Américas onde houve importação de escravos, inclusive, é claro no Brasil"2. Nesta linha de argumentação, onde houve a presença africana maciça, ocorreu uma sobreposição entre métrica (estrutura regular dos tempos musicais) e ritmo (as diferentes articulações temporais da música ouvida a partir de uma dada estrutura métrica). Este ponto é importante, pois boa parte das formações musicais americanas, ou ao menos naquelas onde o ouvido eurocêntrico identificou uma "síncopa" ou um "contratempo" dominante, são frutos deste encontro entre uma prática musical de tradição oral e as imposições de um mercado de partituras que precisava ser escrito conforme os cânones europeus.
Em meados do século XIX, um novo gênero de dança iria sair da Europa central, cruzar o Atlântico e causar furor nas Américas: a polca. Vale lembrar que a valsa, uma das matrizes da dança de salão em pares, já tinha aportado na América, ganhando gosto nos salões aristocráticos do Novo Continente a partir de sua assimilação pelas cortes vienenses e pela aristocracia inglesa, no começo do século XIX. Mas a "febre da polca" parecer ter sido mais abrangente e influenciadora das matrizes musicais americanas.
Entre 1835 e 1840, a polca saiu da região da Boêmia e chegou a Praga e, finalmente a Viena, Paris e Londres, formatada como dança de salão. Em 1844, finalmente, chegou na América. A grande imigração europeia para os Estados Unidos, difundiu o gênero entre as camadas mais pobres da população, ao lado de outras danças europeias. Na verdade, a polca talvez tenha se constituído na mais bem disseminada das danças de salão europeias que aportaram nas Américas no século XIX, como as quadrilhas inglesas, schottish e a mazurca.
A polca se espalhou pela América Latina. Há registros do gênero se afirmando como parte importante da cena musical no México, na Argentina, no Uruguai, Chile, Colômbia e Paraguai. Via de regra, o mapa de disseminação social da polca segue o mesmo roteiro de outros gêneros: chegou pelos salões mais refinados e pelo teatro musical, para ser assimilado pelas camadas populares no último quartel do século XIX. Na América do Sul, a popularidade da polca se deveu às apresentações em teatros por músicos e dançarinos profissionais que abraçaram a nova moda musical. No Brasil, em 1845, a polca foi executada pela primeira vez, senso assimilada por vários grupos sociais de maneira diferenciada. Nas camadas mais ricas, foi assumida como dança da moda. Conforme Sandroni:
"As danças de par enlaçado apareceram no Brasil nos anos 1840, com a valsa e a polca. Como novidades modernas, foram adotadas entusiasticamente pelas famílias ricas das principais cidades do litoral, mas custaram muito a ser aceitas no interior, nas cidades pequenas e pelo povo em geral (...) O problema, parece-me, é que a partir dos anos 1870 a questão das danças populares no Rio de Janeiro vai se colocar em condições completamente novas. Criam-se novas formas musicais que já não são as danças importadas prontas da Europa, assim como não correspondem mais aos divertimentos populares herdados da época colonial "3.
Portanto, nas camadas populares, mesmo das cidades maiores do litoral, a polca teria demorado cerca de 20 a 30 anos para ser assimilada. Por volta de 1880, a polca dançada em pares com movimentos saltitantes dos pés, dava lugar a uma dança que tinha no quadril seu movimento básico: o maxixe. Um pouco antes, como música instrumental de improviso, tocada de maneira sincopada por músicos de rua à base de flauta, cavaquinho e violão, ela deu origem ao famoso choro carioca. O par choro e maxixe inaugurou a moderna música urbana brasileira, em uma longa caminhada errática e nada linear que levaria ao samba, ao se encontrar com as tradições afro-brasileiras que se mantiveram ativas ao longo do século XIX.
Uma variável da polca, o schotish, também se disseminou pela mesma época, a partir dos salões da Europa Central e Ocidental, sobretudo nos Estados Unidos, norte do México, interior da Argentina (chamamé) e nordeste do Brasil (xote).
Em que pese a importância da migração musical europeia para as matrizes musicais americanas, a migração musical africana é que foi determinante para a formatação final das músicas populares no continente, ao menos em gêneros que se tornaram o mainstream musical em vários países, como o jazz, o samba e a rumba. As sonoridades musicais vindas da África subsaariana deram uma contribuição essencial ao hibridismo musical americano.
No mapa da Afro-América musical, três grandes regiões se destacam. A grande costa atlântica da América do Sul, incluindo quase todo o litoral brasileiro e a foz do Rio da Prata; A região do Caribe e Antilhas; o Sul dos Estados Unidos. Estas foram as macrorregiões onde a música afroamericana formatou suas primeiras sonoridades, entre os séculos XVII e XIX, gerando vários gêneros modernos no século XX. Obviamente, a história musical da Afro-América é inseparável do tráfico negreiro transatlântico e das várias sociedades escravistas que se formaram no Continente.
2) PORTAS DE ENTRADA DA AMÉRICA
Brasil (Pernambuco, Salvador, Rio de Janeiro)
América Espanhola (Cartagena, Veracruz, Portobelo, Hipañola, Porto Rico)
Cuba e São Domingos
Jamaica
Charleston
New Orleans
O Brasil, incluindo sua fase colonial quanto o período pós-independência até 1850, recebeu cerca de 4 milhões de escravos africanos, sobretudo da África Central. O Caribe como um todo, compreendido por todas as suas colônias inglesas, francesas, espanholas e holandesas, recebeu cerca de 6 milhões de escravos. A América espanhola continental recebeu cerca de 1,6 milhão e a região dos Estados Unidos (colonial e independente), cerca de 500 mil. A maior parte deste tráfico se concentrou entre os séculos XVIII (60%) e meados do século XIX (30%).
Os traumas da travessia atlântica, bem como a violência real e simbólica da escravidão, não conseguiram destruir as matrizes culturais africanas de muitos escravizados instalados nas Américas, que serviram de base para muitas fusões, assimilações, hibridismos, sincretismos e mestiçagens com a cultura ameríndia e europeia. A combinatória destes elementos culturais africanos, em suas várias etnias, com as outras etnias europeias e "autóctones" variou de região para região. Não seria exagerado dizer que nas matrizes da música popular que se afirmou em vários países de costa atlântica do continente a partir do começo do século XX, o elemento africano foi primordial.
A exceção a esta preponderância africana fica por conta da vasta zona mesoamericana e andina, onde a música de base ameríndia foi predominante: carnavalito, taquirari, huayno. Estas danças tradicionais ameríndias, ao lado de outras danças e gêneros com influências ibéricas e africanas (zamacueca, cueca chilena, zamba, vals peruano), foram importantes na formação do patrimônio musical popular da região andina e pacífica, recorte que foge ao escopo deste artigo. Estes gêneros presentes no vasto hinterland sul-americano, dos pampas argentinos aos altiplanos andinos, receberam atenção especial dos folcloristas engajados dos anos 1950, constituindo-se na base musical da Nueva Cancion latino-americana, de forte sentido político, uma das matrizes da canção de protesto no continente.
A percussão de base, sobretudo os tambores de diversos timbres e alturas, o conceito de "música-evento (Kazadi Wa Mukuna), a estrutura de canto-resposta (em complexa interação entre o solo e o coro), elementos marcadamente africanos, se mantiveram como legado do continente de origem, perdido para sempre, mas evocado enquanto memória ancestral, e atuaram nas várias assimilações e fusões musicais afro-americanas. Vale lembrar que em várias partes da América inglesa colonial, como a Georgia e Carolina do Sul (Negro Act of 1740) e a Jamaica (1696), os tambores africanos foram declarados ilegais e proibidos por estarem relacionados a estratégias de comunicação em momentos de rebelião escrava. O banimento dos tambores conheceu uma efetividade variável nas várias regiões escravistas das Américas, e foi mais efetiva no sul das Treze Colônias que originariam os Estados Unidos da América. Apenas na Louisiana católica e com uma grande população créole (mestiça) que tinha alçado estratos sociais superiores, a percussão corria solta pelas ruas. As matrizes musicais acompanham o amadurecimento histórico das sociedades escravistas coloniais americanas, marcada pela grande importação de escravos da África (com pico entre 1750 e 1860) e o surgimento de uma elite local que construiu os novos países independentes a partir desta base societária. A marca escravista estruturante foi mais forte no Brasil, Cuba e Estados Unidos, não por acaso, três importantes usinas musicais da "Afroamérica".
Novas pesquisas tem demonstrado que o incremento do tráfico ao longo da primeira metade do século XIX , sobretudo no Brasil e em Cuba teve profundo impacto na vida musical americana. Nesta linha de investigação, podemos dizer que até cerca de 1880 a presença da cultura musical africana (não necessariamente afroamericana e mestiça) foi determinante como ponto de fusão de experiencias musicais que foram a base da música urbana e dos gêneros nacionais formatados no início do século XX. Entretanto, as mudanças no tratamento da "questão africana" em vários países americanos reprimiu as sonoridades que lembravam o continente, sobretudo em relação aos timbres de percussão. Se a proibição dos "tambores" no século XVIII tinha um caráter pragmático e político, visando evitar rebeliões, o recalque dos "batuques" no final do século XIX pela cultura musical das camadas médias e pelas elites brancas que procuravam construir uma identidade nacional eurocêntrica, era de ordem mais propriamente cultural.
Entre o final do século XVIII e início do século XX, este processo de criação de uma música afroamericana parece ter se tornado mais identificável e delineado, estética e culturalmente falando. Além da já citada habanera, matriz convencional rítmica fundamental para várias músicas americanas, surgem configurações musicais que podem ser convencionalmente agrupadas em gêneros: o spirituals (com primeira datação de 1860), o jongo do centro-sul brasileiro, o candombe platino (ambos identificados por cronistas no começo do século XIX). A bem da verdade, não se pode separar a formatação de muitos destes gêneros matrizes das suas funções festivas religiosas ou profanas, exercitadas em rituais coletivos, que vinham sendo exercitado ao longo dos séculos. Por exemplo, no Brasil, as Congadas e o Bumba-meu-boi, chamadas de "danças dramáticas" por Mário de Andrade, embora possuam elementos culturais ibéricos e ameríndios, foram catalisadas pelas tradições musicais africanas.
A música africana praticada na América, embora não tenha sido objeto de notação cuidadosa no século XIX e tenha desaparecido das partituras e fonogramas até o começo do século XX, estava presente no dia a dia da sociedade, ainda que de maneira oblíqua e recalcada, Era chamada genericamente, pela imprensa e por viajantes cronistas, de "batuque". Mas vale lembrar também que há uma forte linhagem de expressões musicais afro-americanas que não tem no "batuque" de tambores de percussão o centro de sua expressividade. As várias canções de trabalho, muito praticada sobretudo nas plantations, bem como as ladainhas e cantos de natureza religiosa, tiveram um papel fundamental como matrizes musicais de vários gêneros modernos, como o spirituals e o blues norte-americano
A grande armadilha nesta nomenclatura genérica é que, sobretudo nas crônicas eurocêntricas que se disseminaram pelo olhar dos viajantes ilustrados do século XIX, as palavras que designavam os sons musicais tinham contornos pouco precisos, sobretudo em relação às danças populares. No caso dos sons que vinham da África, a dificuldade era maior ainda, dado o preconceito da escuta e as dificuldades técnicas de captar as formas rítmicas pelo ouvido eurocêntrico de cronistas e viajantes.
Se não há registros em partituras, há uma abundante documentação na forma de crônicas e de iconografia que permite ao pesquisador analisar tipos de instrumentos, sua genealogia, sua maneira de tocar, sua função social.
A indústria de partituras impressas, a partir do último quartel do século XIX sobretudo, consagrou a obsessão pela classificação dos gêneros musicais populares a partir de convenções que tinham no "ritmo" seu ponto central. Assim, as partituras indicavam ao interprete, via de regra um pianista, a "levada" e a divisão rítmica da melodia, já sugerida no nome da coisa. A indústria do disco em sua fase inicial continuou esta verdadeira obsessão classificatória da música popular, contribuindo para a construção de convenções de performance e escuta que contribuíram para a definição dos gêneros nacionais americanos. Este processo de invenção de uma música urbana voltada para o mercado, coincidiu com o silenciamento dos sons africanos ancestrais nos países onde essa presença era fundamental, como no Brasil. No final do século XIX, mesmo nas regiões em que a africanidade era muito presente e os sons africanos tolerados, como Brasil, Cuba e Louisiana, a percussão foi recalcada na música consumida pelas camadas médias, tal como formatada na indústria de partituras e da fonografia. Isto não quer dizer que este silenciamento tenha existido de fato nas experiências musicais dos afrodescendentes nas suas comunidades e sociabilidades festivas.
No Brasil, a percussão só voltaria com força total no mundo fonográfico brasileiro entre fins dos anos 1930 e início dos anos 1950, apesar de ter sido gravada desde o final dos anos 1920. Entretanto, até meados dos anos 1940 quando o samba já estava sendo formatado como "música típica brasileira", e as sonoridades africanas já estavam bem diluídas nos gêneros nacionais, ainda havia forte preconceito contra o excesso de percussão na música popular, sinônimo de "africanidade atávica".
Neste processo, muitas matrizes musicais foram sendo esquecidas, assimiladas, diluídas ou reiteradas, formando a cartografia moderna da música popular americana na primeira metade do século XX. Formas ancestrais, como a habanera, a modinha, o lundu, praticamente desapareceram do mapa musical do século XX. Outras como o choro e maxixe brasileiros conheceram períodos alternados de revival e ostracismo, incorporando-se ao campo genérico do samba, principal gênero nacional brasileiro ao longo do século XX. O tango argentino, plenamente delineado como dança e canção por volta de 1920, tornou-se um mainstream musical da região portenha, ao mesmo tempo em que o candombe passava por um processo de guetificação que só foi questionado depois dos anos 1980. No caribe, a rumba (Cuba), o mambo (Cuba), cha-cha-cha, calipso (Trinidad), o merengue (Dominicana), entre outras, constituíram a base da música dançante da região, amplamente difundida a partir de meados do século XX pela indústria fonográfica dos Estados Unidos. Neste país, a partir do proto-jazz de New Orleans, como o cakewalk e o ragtime, e os blues do Delta do Mississipi, surgiu toda uma linhagem de música popular moderna, como o próprio jazz, o fox-trot, o bebop, swing, rythim'n blues e o rock'n roll. Ao lado das canções de operetas, das danças europeias e do Music Hall, constituíram a base da indústria fonográfica norte-americana, com ampla difusão pelo mundo todo.
Finalmente, cabe lembrar que as migrações musicais que estão na base da música americana não se deram em uma via de mão-única. Pela força da indústria fonográfica, (sobretudo norte-americana, mas não apenas), a segunda metade do século XX, conheceu um movimento reverso. A música popular americana (sobretudo estadunidense) atravessou o Atlântico de volta para a África e para a Europa, polinizando o continente com música estadunidense (pop, soul e jazz), jamaicana e cubana, sobretudo, mas também brasileira.
Obviamente, não podemos esquecer que bem antes disso, entre os anos 1910 e 1920, as danças de salão americanas, como o fox-trot, charleston, tango e o maxixe, conheceram grande sucesso na Europa, sobretudo em Paris e Berlim da República de Weimar.
Mas é inegável que a migração musical de retorno, a partir dos anos 1950 e 1960, acabou gerando mais do que um frenesi dos salões de baile. Na África, gerou um vigoroso movimento no campo em diálogo com o pop, caribbean music e do jazz (ex. jazz etíope, Mulato Astatke, Miriam Makeba, Salif Keita). Na Europa, discos de blues e o rythim'n blues norte-americano levados muitas vezes por marinheiros e soldados off-market e adquiridos para os jovens das cidades industriais britânicas, estão na base do blues revival inglês, sem o qual não existiria o rock britânico que mudou para sempre a história do gênero a partir dos anos 1960. Mesmo o Brasil, país de tradições musicais sofisticadas mas sem capacidade de formatar mercados fonográficos em escala mundial, exportou sua música popular, principalmente o samba e a bossa nova, para a Europa e para a África, entre os anos 1960 e 1970, gerando uma série de transferências culturais a serem melhor pesquisadas. A Nueva Cancion latinoamericana e a Nueva Trova cubana igualmente atravessaram o Atlântico, conhecendo grande sucesso na Espanha, na França e na Itália, sobretudo.
Como uma cartografia, este texto é apenas uma provocação, um convite para a realizar um mergulho, uma "viagem" no território musical americano, um dos mais instigantes produtos da história cultural transatlântica.
JDT, 1757-1776, tomo 2, pp. 210-211" (Apud: HOLLER, Marcos. A música na atuação jesuíta na América portuguesa. XV Congresso da ANPPOM, 2005.
Sandroni, C. Feitiço Decente, p.28.
Sandroni, C. Feitiço Decente, p. 65