Gilberto Gil
“Eu soube que a música era minha linguagem, mesmo. Que a música ia me levar a conhecer o mundo”. Do...
Gênero cancional surgido no Rio de Janeiro no final de década de 1950, que propôs realizar releitura modernizante da tradição do samba, em conjunto com a assimilação de informações estéticas de tradições musicais internacionais. Teve seu momento de maior impacto no Brasil durante os anos de 1959-1962, mas sua circulação alcançou novos patamares ao longo da década de 1960 tanto internamente quanto no cenário externo.
A bossa nova constituiu um dos eventos musicais mais marcantes na esfera cultural da segunda metade do século XX no Brasil, com desdobramentos duradouros no campo da música popular. Sua presença é perceptível em uma quantidade considerável de objetos culturais cuja circulação extrapolou o cenário interno brasileiro, tendo sido veiculada em diversos outros países e constituindo um fluxo inédito de trocas culturais entre Américas e Europa. Em canções, shows, livros, filmes, peças publicitárias e imagens, sujeitos a processos de tradução e assimilação por mediadores das mais diversas procedências, a circulação internacional da bossa nova projetou representações do Brasil, sua música e sua cultura para o mundo. Ao mesmo tempo, como commodity, a bossa nova interferiu nos mercados culturais internacionais, em particular no mercado musical, contribuindo para a demarcação de espaços híbridos no campo do jazz e da pop music.
Este ensaio tem por objetivo alinhavar uma possibilidade de leitura para este fenômeno, considerando as suas características e perspectivas iniciais como projeto estético para a música popular no Brasil, bem como interações e desdobramentos que obteve a partir de sua circulação internacional.
É possível perceber indícios do processo de gestação do projeto bossanovista ao longo das décadas de 1940 e 1950, a partir da relativa abertura do mercado brasileiro para a importação de gêneros musicais internacionais, como o bolero (em sua variante binária cubana), o mambo, e o jazz, bem como a emergência de produções regionais locais como o baião, o côco, o xaxado e sertaneja. Com circulação no meio radiofônico e também via disco e cinema, os novos gêneros produziram interferências no cenário musical nacional, que desde a década de 1930 era protagonizado pelo samba.
Como parte desse processo, o gênero samba canção iria se configurar como importante referência para os segmentos de classe média urbana, projetando anseios de artistas e públicos por uma música popular de feição modernizada. Campo de experimentos e hibridismos, o samba canção legou obras que se tornariam emblemáticas, consideradas por vários analistas como evidencias do processo de construção da estética bossanovista. Assim, no conjunto dos sambas canção divulgados no período, destacam-se: Copacabana (1946, Alberto Ribeiro/João de Barro); Marina (1947, Dorival Caymmi); Ser ou não ser (1948, José Maria de Abreu/Alberto Ribeiro); Esquece (1948, Gilberto Milfont); Outra vez (1954, Antônio Carlos Jobim), todas na interpretação de Dick Farney1. Ou ainda, obras instrumentais como Duas Contas (Garoto).
Somadas, as características mais evidentes dessas gravações revelam desejo de equiparação aos padrões sonoros da música popular internacional do período. Não obstante, o universo temático calcado em relações amorosas fracassadas, com aparato instrumental/vocal cuja intensidade e passionalidade foram então tidas como exageradas revela certos limites do gênero como campo de inovação em direção à canção modernizada. A construção do que seria reconhecido como estética bossanovista ainda necessitava de completa eliminação desses arroubos passionais e a formulação de novos paradigmas rítmicos em busca de uma síntese sonora das tradições internas (samba) e externas (jazz, bolero), além de radical assepsia tímbrica na instrumentação. Neste sentido, este seria o salto qualitativo dado pela intervenção de alguns artistas que determinariam as normativas bossanovistas, consagrando-se como seus artífices.
Os complexos caminhos que resultaram na ascensão da bossa nova no cenário cultural brasileiro ao final da década de 1950 são resultado da confluência de vários fatores: reestruturação dos espaços de oferta de música ao vivo nas principais capitais, estruturação das bases da indústria fonográfica local e consequente segmentação do cenário em nichos específicos de consumo e, finalmente, a confluência de interesses entre públicos, artistas, gravadoras, radialistas, produtores e jornalistas. O fechamento dos cassinos em 1946 reestruturou hábitos de convívio e foi no circuito de bares, boates e restaurantes nos bairros cariocas de Copacabana e Ipanema, que artistas, obras e novas perspectivas estéticas passaram a circular. Nestes espaços, a demanda por música dançante era suprida por artistas habituados a tocar amplo portfólio de propostas, inclusive com envolvimento e expertise em interpretação de clássicos do jazz em formações camerísticas com piano, bateria, contrabaixo, sopros, etc. Este tipo de circuito, também detectado na região central da cidade de São Paulo no período, foi um dos principais pontos de encontro e compartilhamento de experiências entre músicos locais e estrangeiros, bem como críticos e intelectuais. Diversos artistas relevantes para a ascensão da bossa nova passaram pelos palcos de casas noturnas no período, como Antonio Carlos Jobim, Baden Powell, Johnny Alf, João Donato, Sergio Mendes, Luis Carlos Vinhas, Luiz Eça, J. T. Meirelles, Maysa, Nora Ney, Hélcio Milito, Milton Banana, Dom Um Romão, entre outros.
O intercâmbio entre músicos de diferentes países que visitaram o Brasil desde o começo da década de 1950 foi fundamental para atrair o interesse em relação às possibilidades de inserção no universo de obras e premissas do samba e da bossa nova, entre outros gêneros populares. A memória desses contatos é ressaltada por vários analistas e cronistas, e revela importante estágio das trocas culturais que se desdobrariam com a circulação maciça da bossa nova no exterior em formatos gravados. De fato, há registro de razoável lista de artistas em tournées e apresentações no período: Tommy Dorsey em 1951, passando pelas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo e Recife com sua big band2; Dizzy Gillespie em 1956, tendo apresentações com sua banda em São Paulo e Rio de Janeiro3; Louis Armstrong em 1957, para concertos no Rio de Janeiro e São Paulo. Além destes, outros representantes do jazz também visitaram o país no período: Woody Herman, em 1958; Nat King Cole, em 1959; Cab Calloway, em 1959; Sarah Vaughan, em 1959; Ella Fitzgerald, em 1960; Benny Goodman, em 1961. Outro evento de porte que trouxe músicos norteamericanos ao Brasil foi o American Jazz Festival, tour de intérpretes jazzistas realizado em 1961 que reuniu Coleman Hawkins, Zoot Sims, Roy Eldridge, Sonny Stitt e Jo Jones para concertos no Teatro Municipal e outros espaços no Rio de Janeiro4.
Não obstante, além das perfomances em casas noturnas, nos espetáculos teatrais, na radiofonia e na televisão, o ponto máximo da profissionalização na área musical era a entrada no mercado fonográfico por meio do disco, inicialmente em 78 rpm e, posteriormente, em formato Long Play 33 rpm, mais valorizado. Neste sentido, um importante agente foi o produtor e compositor Aloysio de Oliveira (1914-1995), que no período 1956-1960 atuou como diretor artístico da gravadora Odeon. Naquele contexto é possível perceber a existência de um núcleo mais profissionalizado de artistas, com alguma experiência e poder no interior do campo musical: Tom Jobim, Newton Mendonça, Sylvia Telles, João Gilberto, Sérgio Ricardo, Dick Farney, Lucio Alves, Elza Soares, Rosana Toledo e Trio Irakitan. Além destes, outros nomes, de faixa etária mais jovem e com menor ou nenhuma experiência profissional com música passaram a figurar como aspirantes e auxiliaram a disseminar alguns dos ideais estéticos da bossa nova, seja como compositores, letristas, ou instrumentistas: Ronaldo Bôscoli, Carlos Lyra, Roberto Menescal, Mario e Oscar Castro Neves, Chico Feitosa, Luis Eça e Luiz Carlos Vinhas. O ponto de conexão entre esses grupos de artistas se daria a partir do crescente contato que todos tiveram - em algum grau - com o violonista e intérprete baiano João Gilberto (1931-2019).
Como plano de intervenção cultural, a bossa nova configurou um projeto utópico, na medida em que expôs o desejo da classe média carioca em conciliar seus valores de sofisticação e modernidade - e seus corolários: industrialização e urbanização - com um estado de equilíbrio entre o ser e a natureza. Neste sentido, traduziu anseios de uma parcela da sociedade brasileira responsável pela produção de imaginário suficientemente duradouro acerca da brasilidade, da tradição musical e das perspectivas perante a integração do país no capitalismo internacional.
Artistas e intérpretes alimentaram-se de tais anseios, e mesmo admitindo-se a variedade de perspectivas estilísticas nas proposições autorais dos seus principais artífices, a bossa nova foi percebida e recebida como projeto estético com certa unidade, em particular em sua interface cancional. A utopia deste projeto residiu essencialmente na proposição de um novo ethos para a música popular, em que os estados de conflito entre sujeito e objeto, enunciador e enunciatário, entre o eu poético, seu(s) interlocutor(es) e/ou o ambiente que o circunda são potencialmente resolvidos pela (e na) estrutura formal e interpretativa da obra.
No projeto estético bossanovista letra, melodia, harmonia, ritmo e performance passam por revisão crítica de sua função no todo poético, passando a serem vistas (e ouvidas) como um todo integrado. Tal perspectiva redefiniu também o papel da interpretação e dos arranjos, conferindo à bossa nova, simultaneamente, o caráter de gênero musical que produziu obras originais e emblemáticas, mas também, de estilo interpretativo capaz de introduzir radical revisão da tradição do samba. Portanto, mais que uma ruptura somente, a bossa nova também buscou se inserir como parte da tradição musical popular do Brasil.
Foi através da releitura da tradição rítmica do samba e de outras tradições externas como o bolero e o jazz que a bossa nova forjou sua fatura mais festejada. Com a intervenção de João Gilberto radicalizou-se tendência de assepsia tímbrica e síntese, especialmente pelo novo papel assumido pelo violão no contexto geral dos arranjos. A famosa "batida" introduzida por João Gilberto e unanimemente tomada como emblema da nova estética caracteriza-se pela estruturação de células rítmicas atacadas simultaneamente pelos dedos indicador, médio e anular da mão direita do violonista, em contraponto rítmico com as notas tocadas pelo polegar. Tais células sintetizam releitura da tradição das timelines africanas presentes na percussão do samba em conjunto com a marcação não regular do baixo no jazz, fornecendo a base rítmica característica do estilo bossanovista. O violão, portanto, assume duas funções complementares: uma rítmica e percussiva, outra, de suporte harmônico; perspectiva amplamente adotada pelos contemporâneos de João Gilberto, como Baden Powell (1937-2000), Luiz Bonfá (1922-2001) e Roberto Menescal (n. 1937).
Outro importante dado é a reformulação do conjunto percussivo e inclusão da bateria, como evidência de eliminação do aparato instrumental mais ligado ao samba tradicional ou "samba batucado". Tal abordagem é perceptível, por exemplo, nos trabalhos de Edison Machado (1934-1990) e Milton Banana (1935-1999), como: Turma da Gafieira (1957), Edison Machado é Samba Novo (CBS, 1959), sendo posteriormente adotado por outros bateristas do período como: Dom Um Romão, Dirceu Medeiros, Wilson das Neves, Rubens Barsotti. De acordo com essa perspectiva, a condução da bateria passa por gradativa eliminação de timbres e ataques, chegando-se ao toque com escovinha nos pratos e com a baqueta sobre o aro da caixa, suscetível a variações em torno da mesma base:
Por meio dessa síntese, os arranjos da bossa nova prescindem dos timbres da percussão (especialmente o surdo, o tamborim e o agogô), constituindo textura que prima pelo minimalismo de suas intervenções, em constante tensão com o ritmo sincopado do violão e a emissão vocal. Esta é a perspectiva percebida nas gravações dos três álbuns iniciais de João Gilberto (Chega de Saudade, Odeon, 1959; O amor, o sorriso e a flor, Odeon, 1960; João Gilberto, EMI, 1961), em que o aparato instrumental voltado à sustentação rítmica se resume ao violão, ao piano, e à caixa da bateria.5 Contudo, essa perspectiva seria modificada quando da circulação da bossa nova no exterior, pois, de modo geral, os ritmos sincopados voltam a ficar em evidência no conjunto percussivo,6 deslocando a importância do violão como articulador rítmico. Simultaneamente, a maior ênfase no conjunto percussivo e seus timbres revelam a importância conferida à uma noção de "latinidade" mais afeita às audiências internacionais almejadas.
Além de fixar um novo paradigma rítmico a estética bossanovista também reorganizou outros vetores das composições. Neste processo o trabalho de Tom Jobim ganhou certo protagonismo, pois algumas das estratégias composicionais utilizadas por ele adquiriram status de modelos a serem copiados. Seu estilo tem como fontes importantes a literatura pianística do século XIX, notadamente Frédéric Chopin e Claude Debussy, bem como o brasileiro Heitor Villa-Lobos. Suas construções harmônicas seguem padrão geral de adensamento das estruturas morfológicas, com acréscimo de tensões aos acordes, condução cromática das suas vozes internas, utilização de mistura modal, inserção de passagens modais em meio a contextos tonais, entre outras soluções. Outro recurso jobiniano característico é a elaboração de motivos melódicos altamente sincopados e recorrentes, que são atualizados em processos de derivação, repetição e/ou transposição conforme cada novo contexto harmônico introduzido no desenvolvimento das obras. Tais faturas relacionam-se diretamente ao conteúdo poético no qual, em geral: a) um estado de conflito entre o enunciador-enunciatário é apresentado, geralmente com a utilização de dissonâncias; b) súbita ou inesperada alteração do percurso harmônico, por meio de recurso a modulações, atualiza o estado de conflito, transformando-o em conciliação.
Chega de Saudade (Tom Jobim/Vinícius de Moraes, 1958): motivo principal em modo menor, caracterizado por vários saltos melódicos e recorrente sincopação de seus ataques ("vai minha tristeza"), é revisitado em vários momentos da obra: "chega de saudade", "diz-lhe numa prece", "não há beleza é só tristeza", em geral, denotando estado de tristeza pela separação entre o enunciador e o enunciatário da canção. A partir da segunda seção, o motivo é atravessado por modulação para o modo maior, em "mas se ela voltar", "dentro dos meus braços". Neste momento, o perfil adaptado ao novo contexto harmônico em conjunto com a progressiva assertividade da letra indica possibilidade de conciliação e felicidade.
Desafinado (Tom Jobim/Newton Mendonça, 1959): motivo principal caracterizado por vários saltos melódicos dissonantes e recorrente sincopação de seus ataques "se você disser que eu desafino amor", "saiba que isso em mim provoca imensa dor", "eu possuo apenas o que Deus me deu", "se você insistir em classificar", "meu comportamento de antimusical". Nesta primeira seção, as interações entre saltos dissonantes na melodia com o percurso harmônico dramatizam, potencializando, o estado de conflito e incompatibilidade entre o enunciador e o enunciatário. Contudo, a partir da modulação inesperada "isso é bossa nova, isso é muito natural", o motivo tem seu perfil ligeiramente alterado, "o que você não sabe nem sequer pressente", revelando abertura para a conciliação, pois "no peito dos desafinados também bate um coração". Nesta canção, desenvolvida sob a forma de diálogo intimista, um aspecto musical (desafinação) se transforma em mote para a exposição de algumas premissas da estética bossanovista, exploradas de forma metalinguística.
Samba de uma nota só (Tom Jobim/Newton Mendonça, 1959): motivo principal da primeira seção, sincopado em seu recorte rítmico, é construído por recorrência de uma única nota ("eis aqui este sambinha, feito numa nota só"), que é repetido em "outras notas vão entrar, mas a base é uma só" e transposto por intervalo de quarta ascendente em "esta outra é consequência", e, novamente, transposto por intervalo de quarta descendente em "e voltei pra minha nota". Na segunda seção, em que o enunciatário aparentemente expõe mais razões para a utilização de apenas uma nota como mote de sua canção, tais razões se multiplicam, o que implica na utilização irônica de toda a escala maior, espelhada pelos versos: "tanta gente existe por aí que fala muito e não diz nada, ou quase nada", ou "já me utilizei de toda a escala e no final não deu em nada".
Garota de Ipanema (Tom Jobim/Vinícius de Moraes, 1963): motivo melódico "olha que coisa mais linda" é formado pela repetição sincopada de intervalo de 3ª. ("mais cheia de graça") transposto para novos contextos harmônicos: "que vem e que passa". A segunda seção da canção novamente incorpora a repetição de motivos, transpostos ascendentemente, agora como emblema da crescente percepção do enunciador em relação à distância que o separa de seu objeto de desejo: "ah, porque estou tão sozinho".
Tal concepção se expressou também em outras obras, como: Fotografia (Tom Jobim, 1959), Corcovado (Tom Jobim, 1960), Insensatez (Tom Jobim/Vinícius de Moraes, 1961), Samba da Benção (1962, Baden Powell/Vinícius de Moraes), Samba de Verão (1964, Marcos Valle), O Barquinho (1961, Roberto Menescal/Ronaldo Bôscoli), Manhã de Carnaval (1959, Luiz Bonfá/Antonio Maria).
Por sua vez, as letras revelam uma nova "economia poética", com a valorização da paisagem litorânea e incorporação do cotidiano prosaico para a canção, preferência por textos curtos e economia de palavras, centradas em verbos e substantivos (ex.: Outra Vez, Jobim). Não apenas o conteúdo expressivo é valorizado, mas também a individualidade sonora das palavras e vocábulos, abrindo campo para o humor, o nonsense, a ironia e metalinguagem. Neste processo, a intervenção do poeta e (então) diplomata Vinícius de Moraes (1913-1980) significou a incorporação de novas pretensões literárias e poéticas nas letras das canções, com gradativa substituição do registro passional para o lírico no trato das relações amorosas.
Tais perspectivas foram agenciadas na performance de João Gilberto, que se tornou paradigmática ao evitar grandes contrastes de intensidade, fermatas ou sforzandos em notas agudas, sendo o canto guiado por busca de sutileza em perspectiva próxima à da linguagem falada. Assim, o conjunto de características formais e construtivas da canção remetem a padrão geral de contenção expressiva, que encontra correlato na interpretação vocal.
Em síntese: se as temáticas bossanovistas são centradas em relações amorosas, o tratamento conferido a elas busca certo distanciamento de matizes dramáticas e passionais. Estas são então percebidas como sintomas de uma sensibilidade latina considerada ultrapassada em meio aos desejos daquela comunidade de artistas e seu(s) público(s) por maior cosmopolitismo e sofisticação. A consecução desta contenção expressiva é obtida, assim, por uma conjugação de ações composicionais e performáticas que tendem a expressar certa consciência das diversas camadas de sentido expostas pela interação entre melodia, harmonia, ritmo e palavra cantada. Neste sentido, ao especular conscientemente e criativamente com os elementos fundamentais da canção, a bossa nova angariou sua reputação de gênero inaugural da modernidade no campo da música popular no Brasil.
De início, a bossa nova surgiu como espécie de vanguarda emergente, restrita a performances em apartamentos de seus aficionados e apresentações em shows universitários e em espaços na cena noturna de Rio de Janeiro e São Paulo. Desses espaços, ampliou gradativamente seu campo de reverberação para programas da nascente - e ainda exclusiva - televisão, para segmentos da programação radiofônica, como trilha musical em produções cinematográficas, em formatos fonográficos (78 rpm e LP), espraiando-se para a publicidade.
Ao longo de 1959-1960 foram organizados shows de bossa nova em espaços marcadamente universitários das escolas de arquitetura, direito e filosofia, então restritos a jovens da classe média. Imagens de um desses eventos revelam o aspecto intimista das performances, com a audiência acomodada no chão, em sofás e poltronas. Assim, funcionavam como eventos de divulgação do estilo entre sua pretendida audiência e, também como canal de prospecção de novos artistas para os agentes da indústria fonográfica. Não por acaso, Aloysio de Oliveira, diretor artístico da Odeon, e André Midani, futuro diretor geral da Philips do Brasil, frequentavam esses eventos.
Foi através da chegada ao disco que a bossa nova se consolidou no cenário da música popular. Neste sentido, é praticamente consensual entre artistas e analistas que o LP Chega de Saudade, lançado por João Gilberto em 1959, se tornou um marco inaugural. A oportunidade de gravar seu primeiro disco solo foi intermediada por Tom Jobim junto à gravadora Odeon, que por sua vez empregou consideráveis esforços no sentido de promover comercialmente o trabalho.
Neste contexto, também foi importante o trabalho da gravadora Elenco, fundada pelo produtor Aloysio de Oliveira e que vislumbrava a conquista do nicho específico da música moderna, fortemente identificada à época com a bossa nova. Em seu período de maior atividade, que compreendeu os anos 1963-1966, a Elenco lançou cerca de 60 discos, incluindo trabalhos de estreia de alguns dos principais nomes da bossa nova. O design gráfico dos discos da gravadora, em geral sob responsabilidade do fotógrafo Francisco Pereira e do artista visual Cesar Gomes Villela (n. 1930), revela certa sintonia com o estilo musical, predominando layout limpo e depurado de informações, resumidas às mais básicas: nome do autor/intérprete, nome do trabalho, com desenhos ou fotos em alto contraste, e evidenciando as cores preto, branco e vermelho.
O cinema foi um importante meio de circulação da bossa nova, e foi com a produção franco italiana Orfeu Negro (1959, Dir. Marcel Camus) que a música popular do Brasil como um todo ganhou projeção internacional. O filme possibilitou a divulgação de diferentes estilos e gêneros musicais brasileiros no exterior, tanto na Europa quanto nos EUA, sendo a bossa nova um de seus vetores mais privilegiados. Outro trabalho que colaborou nesta divulgação foi a produção ítalo franco brasileira Copacabana Palace (1962, Dir. Stefano Vanzina), na qual referências ao sucesso internacional da bossa nova são evidentes, incluindo a participação de alguns dos mais destacados músicos brasileiros ligados ao estilo, como Tom Jobim, João Gilberto e Luiz Bonfá.
Com o tempo, a bossa nova transformou-se em que termo angariou associações no campo cultural brasileiro como um todo, extrapolando o universo musical e espraiando-se também em direção ao design editorial e campanhas publicitárias em várias modalidades de anúncios e produtos. Neste sentido, trazia consigo uma inequívoca positividade, como emblema de novidade, qualidade e sofisticação, em geral atrelada a um público de alto poder aquisitivo.
Percebe-se, portanto, no quadro geral descrito, alguns dos caminhos percorridos pela bossa nova no cenário cultural brasileiro durante o período 1959-1963. Sua disseminação foi se ampliando gradativamente, em diferentes mídias e envolvendo variedade de artigos, que não se restringiram ao vetor musical. Tais estratégias revelam as possibilidades estruturais do mercado de bens culturais do país no período, bem como seus limites. Assim, a partir (e em decorrência) da tomada de posição como vetor artístico mais prestigiado no campo da música popular, a bossa nova passou a circular de forma crescente, agregando valor simbólico a bens aos quais emprestou sua chancela, fossem eles culturais ou não. Neste sentido, foi talvez, o primeiro movimento cultural a possibilitar atuação relativamente integrada da indústria da cultura no país, fenômeno que se tornou mais efetivo a partir de meados da década de 1960.
No exterior, a circulação da bossa nova tornou-se mais complexa, resultado da ação de uma série considerável de mediadores, entre os quais se incluem músicos, produtores, editores, crítica especializada, serviço diplomático, entre outros agentes. As ambições e sentidos que a bossa nova representou no contexto brasileiro foram paulatinamente se modificando e adquirindo novas conotações à medida que esta alcançou cruzou fronteiras linguísticas e geográficas. Neste processo, a bossa nova se transformou em objeto de constantes apropriações e hibridismos entre mediadores que conectaram o Brasil com países europeus e Estados Unidos, constituindo esfera internacional de trocas culturais cujo fluxo se ampliou globalmente ao final do século XX.
É possível mapear este inicialmente fenômeno por meio das várias tournées musicais de artistas norte-americanos ao Brasil que, ao longo dos anos 50 constituíram evidencia de contatos e interações entre músicos estrangeiros e locais. A importância do apoio oficial foi então debatida na imprensa diária e propostas de atuação da diplomacia na difusão internacional da música produzida no país acabaram se tornando objeto de ações do governo brasileiro. Um marco inicial das políticas de difusão cultural pode ser vislumbrado no ambíguo apoio à divulgação internacional do filme Orfeu Negro7, de 1959. Ao ter a música como temática principal e apresentar canções como A felicidade (Tom Jobim/Vinícius de Moraes) e Manhã de Carnaval (Luiz Bonfá/Antonio Maria) com destaque na trama, o filme criou oportunidades para que essas canções ganhassem repercussão autônoma em relação à trilha musical. Não foram poucos os artistas franceses que realizaram interpretações de Manhã de Carnaval, o que revela a consagração comercial da canção - via filme - na França. Ainda em 1959, Vanja Orico, Dalida, Maria Candido, John William, André Dassary, Tino Rossi, Marie José, Gloria Lasso, entre outros, lançaram suas próprias versões, com título de Chanson d'Orphée e letra traduzida para o francês.
Nessas releituras, novos significados eram agenciados visando atender às demandas das audiências locais: foco no aspecto dramático da melodia, novo sentido conferido à letra pela tradução, ênfase no conjunto percussivo que em geral enfatiza a "latinidade", entre outros.
Na esteira dessa consagração, abriu-se na França segmento de mercado para a cinematografia brasileira e franco-brasileira ao longo da década de 1960, que seriam importantes canais de circulação musical. De fato, a partir do sucesso comercial e de crítica obtido pela produção, canções, filmes e artistas brasileiros passaram a circular em escala mundial.
A circulação de Orfeu Negro entre os músicos norte-americanos foi igualmente impactante, particularmente entre os instrumentistas ligados ao jazz, sendo fundamental para que diversos deles viajassem ao Brasil no período para contato mais íntimo com a música produzida no país. Esses encontros foram cruciais para a concretização de vários álbuns dedicados à bossa nova, como o álbum Jazz Samba, de Charlye Bird e Stan Getz. Este trabalho incluiu versão instrumental de Desafinado (Jobim/Mendonça), que atingiu a quarta posição no Adult Contemporary Chart, de 1962 e a décima quarta posição no Billboard Hot 100 no mesmo ano. Ao mesmo tempo, Stan Getz obteve um prêmio Grammy na categoria "Best Jazz Performance - Soloist Or Small Group (Instrumental)" em 1962, pela interpretação de Desafinado. No arranjo da dupla, centrada na apresentação clara da melodia pelo saxofone, o ritmo sincopado do violão que caracterizava o estilo no Brasil perde importância, sendo esta dimensão enfatizada pelo conjunto percussão-bateria. Tal interpretação revela os novos sentidos angariados pela bossa nova neste novo contexto, impondo um modelo para lançamentos subsequentes sob a forma de produtos híbridos, crossovers que exploravam o exotismo rítmico do samba bossa nova com o capital cultural do jazz. Sintomaticamente, muitos dos trabalhos lançados exploraram de alguma maneira o rótulo Jazz Samba.
Não menos importante foi o concerto realizado em novembro de 1962 no Carnegie Hall, em Nova York, que objetivou "apresentar" o gênero para a audiência norte-americana e mundial. Para tanto, foram envidados esforços da diplomacia cultural brasileira, no sentido de disponibilizar passagens para o deslocamento dos artistas a Nova York, muito embora a seleção dos participantes tenha se notabilizado por alguma confusão e falta de critérios. A crônica deste evento revela a presença de músicos e produtores fonográficos norte-americanos na audiência, fato que teria motivado a fixação inicial de alguns dos expoentes bossanovistas nos EUA, como Jobim, João Gilberto, Luiz Bonfá, Milton Banana, Sergio Mendes e os irmãos Castro Neves. Além disso, a transmissão via rádio e a gravação do concerto, posteriormente lançado em disco, foram cruciais para a disseminação da bossa nova pelo país.
O cenário jazzístico, portanto, constituiu espaço de entrada da bossa nova nos Estados Unidos. Entre 1962 e 1964 artistas renomados gravaram e lançaram comercialmente trabalhos instrumentais de alguma maneira relacionados à bossa nova: Dizzy Gilespie (1962), Stan Getz (1962, 1963, 1964), Cannonball Adderley (1962), George Shearing (1962), Zoot Sims (1962), Dave Brubeck (1962), Modern Jazz Quartet (1964), Miles Davis (1963), entre muitos outros. Em geral, esses álbuns revelam três tipos diferentes de aproximação: 1) versões "bossanovistas" de canções brasileiras em formato instrumental e com espaço para improvisações; 8 2)interpretações "bossanovistas" para clássicos do repertório jazzístico;9 3) composições originais "inspiradas", especialmente pela bossa nova.10 A adaptação da bossa nova para o formato instrumental também constitui evidência das transformações sofridas em virtude do processo de circulação internacional. Nestas versões, a sofisticada interação entre plano poético e melódico, característica das pretensões originais do estilo em suas versões cancionais, deixou de fazer sentido para as novas audiências pretendidas.
Pode-se afirmar que o produtor Creed Taylor (n. 1929) foi um dos agentes decisivos para o sucesso da bossa nova nos Estados Unidos. Sua companhia Verve Records dominou o mercado de lançamentos de álbuns bossanovistas e foi responsável pela produção e distribuição dos discos Jazz Samba (1962), com Charlie Byrd e Stan Getz; Getz/Gilberto (1964), Getz/Gilberto #2 (1966), ambos com Stan Getz e João Gilberto, Jazz Samba Encore (1963), com Luiz Bonfá e Stan Getz, além do trabalho de estreia de Antonio Carlos Jobim nos EUA, The Composer of Desafinado Plays (1963). Neste contexto, merecem particular atenção os discos Jazz Samba e Getz/Gilberto, sendo que o segundo foi premiado com três Grammy's, em 1964: "Album of the Year", "Best Instrumental Jazz Performance - Small Group Or Soloist With Small Group", "Best Engineered Recording - Non-Classical", para o engenheiro Phil Ramone, "Record of The Year" para a gravação de The Girl from Ipanema na voz de Astrud Gilberto.
Em seus lançamentos de álbuns bossanovistas, a Verve Records buscou consolidar o prestígio do estilo, revelando especial cuidado na elaboração das capas, inclusão de textos críticos encartados aos discos, etc. As capas dos álbuns: Jazz Samba, Big Band Bossa Nova, Jazz Samba Encore, Getz/Gilberto and Getz/Gilberto #2, por exemplo, estampavam pinturas da artista porto-riquenha Olga Albizu (1924-2005). Neste sentido, incorporavam ao projeto gráfico dos discos um estilo abstrato-expressionista de caráter vanguardista que provavelmente contribuiu para a aura de exclusividade artística ligada aos álbuns perante seus potenciais compradores.
Não obstante, o processo de adaptação e tradução da bossa nova para o ambiente instrumental jazzístico esbarrou em dificuldades dos músicos estrangeiros, especialmente com o aspecto rítmico. Se a constituição formal e a linguagem harmônica de alguns temas bossanovistas guardavam semelhanças com os mesmos parâmetros no jazz, o mesmo não se pode afirmar dos paradigmas divisivos, que se tornaram objeto de tentativas as mais variadas de assimilação, nem sempre bem sucedidas. Uma boa evidência de tal dificuldade pode ser observada na conversa/ensaio entre Tom Jobim e Gerry Mulligan (1927-1996):
A tendência geral nessas gravações foi de assimilação relativamente padronizada dos toques da bateria que, por sua vez, eram utilizados de forma menos rígida pelos músicos brasileiros. Uma vez assimilados, se tornaram espécie de tópos da música bossanovista nos mercados internacionais e revelam padrão rítmico ligeiramente diferente da matriz cubana.
Tais dificuldades, aliadas à necessidade das gravadoras em garantir certa credibilidade aos discos lançados gerou demanda por artistas brasileiros. O encontro entre Sacha Distel e Dionne Warwick para a televisão francesa constitui evidência deste fenômeno. Nele, Distel "apresenta" a bossa nova a Warwick, tendo o cuidado de indicar "seu" guitarrista, o brasileiro Baden Powell.
Com efeito, ao longo das décadas de 1960 e 1970 vários músicos brasileiros articularam suas carreiras no mercado norte-americano e europeu, atuando como instrumentistas, intérpretes, compositores e/ou arranjadores. A lista inclui Luiz Bonfá, João Gilberto, João Donato, Baden Powell, Sérgio Mendes, Airto Moreira, Milton Banana, Dom Um Romão, Flora Purim, Moacir Santos, Astrud Gilberto, Eumir Deodato, Laurindo de Almeida, Walter Wanderley, Oscar Castro-Neves, entre outros.
O cenário do jazz norte-americano, portanto, foi em grande parte responsável pela disseminação da música bossanovista em nível global e, além disso, pela aura de prestígio inicialmente angariada pelo estilo em outros países. Não obstante a presença de canções brasileiras em Orfeu Negro, a influência da cena americana na França era tal que muitos franceses descobriram a bossa nova nos registros ou nos concertos de jazzmen norte-americanos. Naquele cenário, Michel Legrand (1932-2019) foi um importante mediador ao iniciar parceria com o violonista Baden Powell, fator essencial para consolidar a carreira deste em Paris, onde encontrou crescente aceitação de público e crítica.
Contudo, a penetração da bossa nova como um segmento no campo do jazz não foi isenta de conflitos, negociações e contradições. Ao interferir em um campo relativamente autônomo e com instâncias próprias de avaliação e consagração, a bossa nova foi objeto de reflexões e avaliações decisivas por parte da crítica especializada. Um veículo com particular importância foi a revista Down Beat, que entre 1962 e 1969 publicou avaliações de cerca de 184 álbuns lançados nos EUA, com alguma conexão com a bossa nova. A crítica especializada em jazz exerceu papel fundamental ao tentar disciplinar a recepção, bem como organizar narrativas sobre o que seria a bossa nova, suas origens e possibilidades de pertencimento ao campo do jazz.
Tais esforços revelam ambiguidades e sutilezas nas dinâmicas de circulação da bossa nova uma vez que esta diferia dos padrões da latinidade até então reconhecidos no jazz. Neste sentido, o direcionamento geral do disco de estreia de Tom Jobim, The Composer of Desafinado Plays (Verve, 1963), altamente avaliado e tomado como exemplo de "autenticidade" pela crítica especializada constitui evidência de tal fenômeno. Nele, é perceptível o estilo minimalista das improvisações pianísticas,11 a preocupação geral em estruturar dinâmicas sonoras controladas, sem sforzandos ou crescendos, características de uma poética de contenção emocional, sem grandes contrastes de intensidade e timbre. Assim, tais direcionamentos traziam problemas classificatórios e de avaliação sobre as potencialidades e limites da latinidade trazida pela bossa nova. Pois ela trazia uma proposta sonora que diferia do hot sound conhecido e esperado em propostas de fusão entre jazz e latinidade em música, embaralhando tais concepções. Sintomaticamente, a acolhida mais entusiástica para a bossa nova se deu entre músicos praticantes do estilo Cool Jazz, ainda que seja complexa e variada a gama de resultantes sonoras de tais interações.
De todo modo, a percepção dessas diferenças permitiu que a bossa nova inaugurasse um segmento distinto no campo do jazz, ampliando-o - não sem tensões - para além das matrizes cubanas até então dominantes e consagradas, com obras que gradativamente adquiriram a qualificação de standards. De fato, a criação do Real Book em 1974, coleção fundamental no processo de formatação de um novo cânone para o jazz no período é revelador: das 435 composições o livro incluiu em sua primeira versão 20 títulos com o rótulo "bossa". Outra evidência dessa incorporação é a frequência com a qual termos como bossa feel e/ou bossa rhythm passaram a aparecer em coletâneas e songbooks editados desde então e destinados a alicerçar práticas interpretativas de músicos não nativos. Finalmente, é importante notar que termos como Cubop ou Afro-Cuban, predominantes até o começo dos anos 1960 e indicativos de certa geografia sonora, gradativamente cedem espaço ao mais abrangente termo Latin Jazz.
Embora importantes, as apropriações da bossa nova não se restringiram ao cenário jazzístico. O sucesso comercial das composições Desafinado e The Girl from Ipanema motivou inúmeros agentes da indústria fonográfica norte-americana a adotar estratégias agressivas de marketing no sentido de capitalizar ao máximo os ganhos com a novidade. Foram numerosos os lançamentos comerciais em crossovers de bossa nova com estilos musicais pop voltados para a dança, especialmente em formato instrumental de big band. Como ponderou o músico e produtor Quincy Jones à época: "Everybody got caught by surprise by the Twist and nobody wants to get left out if bossa nova gets big. So everybody's recording it12". O próprio Jones produziu e lançou comercialmente sua perspectiva da bossa nova, em álbum denominado Big Band Bossa Nova, um dos três lançados em 1962 com o mesmo título. Até Elvis Presley incluiria uma versão dançante em seu filme Fun in Acapulco (1963, dir. Richard Thorpe), denominada Bossa Nova Baby.
Na perspectiva de executivos e diretores comerciais de gravadoras, as tentativas e experimentos para se criar uma dança bossa nova buscavam compatibilizar um mix de elementos "latinos" já consagrados na memória do público norte-americano, como o cha-cha-cha, o mambo, a pachanga e o samba. Assim, a circulação da bossa nova naquele país produziu gradativa expansão de suas propostas iniciais, no sentido, por exemplo, de se tentar consolidar uma dança na esteira do sucesso comercial do twist. Fenômeno significativo - e simultaneamente irônico - posto que a bossa nova tinha entre suas premissas estéticas justamente o esfriamento do apelo dinamogênico do samba. Alguns dos principais agentes desse processo foram o Fred Astaire Studios, o empresário e dançarino Arthur Murray (1895-1991) e a atriz e apresentadora de TV Judy Garland (1922-1969), em cujo show foi apresentada tentativa nesse sentido, justamente ao som de Soul bossa nova, hit do LP de Quincy Jones.
O Grammy recebido em 1962 por Joe Harnell, por Fly Me To The Moon Bossa Nova, na categoria "Best Performance By An Orchestra - For Dancing - Pop Music", constitui outra evidência deste panorama. Contudo, é possível perceber que essas tentativas acabaram sendo divulgadas também em outros países, como Inglaterra e França:
Outro importante estágio na penetração da bossa nova no universo da pop music se deu a partir do momento em que canções originalmente produzidas em português passaram a ter versões em inglês, francês ou italiano de suas letras. Neste contexto, mediadores igualmente importantes seriam os tradutores das letras das canções, ou versionistas, como os norte-americanos Norman Gimbell, Ray Gilbert e Gene Lees, tradutores de várias obras de Tom Jobim para o inglês, bem como o francês Eddy Marnay, tradutor de várias canções brasileiras para o francês. Esta movimentação foi de crucial importância para a assimilação da bossa nova nos mercados internacionais, muito embora o processo de tradução, vinculado à elaboração dessas versões tenha ambicionado primeiramente tornar o percurso poético das obras o mais inteligível possível às novas audiências. Assim, o sentido das propostas estéticas inseridas no programa bossanovista original, derivados da interação letra-música, foram por vezes clivados por outras necessidades. Contudo, se os processos de tradução implicaram em algum grau de descaracterização das versões originais, também engendraram novas problemáticas e conotações, tornando ainda mais complexa e rica a circulação da bossa nova no exterior. A versão em inglês de Garota de Ipanema, por exemplo, é sintomática de tais mediações e negociações, na medida em que projeta novos sentidos para a cena descrita pela letra da canção. O olhar masculino que admira a beleza e a graça da Garota na letra em português é substituído por um olhar feminino que testemunha a cena, sutilmente avaliando a carga de desejo masculino inscrita nela. Ao mesmo tempo, a performance de Astrud Gilberto (Verve, 1964), dá voz e corpo à Girl, potencializando questões de gênero e ampliando o papel do feminino no universo cultural original da bossa nova, marcada por estereótipos de submissão da mulher ao poder masculino.
The Girl from Ipanema se tornou o grande hit mundial da bossa nova, com versões em inglês, francês, italiano, espanhol, entre outras. A versão em francês, intitulada La fille d'Ipanema, foi lançada, entre outros, por: Sacha Distel, Mathé Altery, Jacqueline François e Nana Mouskouri. Nos anos seguintes, The Girl from Ipanema chegou ao patamar de ser uma das mais gravadas e tocadas canções na história da música popular ocidental. Intérpretes de outros matizes também passaram a gravar standards bossanovistas em português ou traduções, como Brigitte Bardot, que em 1964 lançou Maria Ninguém (Carlos Lyra), Pierre Barouh, que em 1971 lançou Ce n'est que de l'eau (Água de Beber Jobim/Vinicius de Moraes), ou Caterina Valente (n. 1931), responsável pela divulgação de versões em francês, italiano e inglês.
Também importante foi a atuação do norte-americano Andy Williams, cujo show televisivo contou com várias aparições de Tom Jobim, entre 1965-1966, ampliando a projeção deste para o público daquele país. A atuação de artistas norte-americanos e europeus foi, portanto, decisiva para a progressiva ocupação de novos espaços para a bossa nova.
Iniciava-se um processo semelhante ao ocorrido no Brasil, porém com alcance mais vertical, considerando-se o tamanho do mercado cultural europeu e norte-americano. Além de camisetas, adesivos e quinquilharias com a "marca" bossa nova, registraram-se tentativas de artistas não necessariamente vinculados ao estilo em capitalizar com essas possibilidades mercadológicas, o que por sua vez gerou perspectivas musicais insólitas, como o hit de Eydie Gormie (1928-2013), Blame it on bossa nova (1963). Tanto nesta quanto nas versões para o francês Tout ça pour la bossa nova, com Richard Anthony (1938-2015), ou C'est la faute au bossa nova, com Margot Lefebvre (1936-1989), é possível verificar as reverberações do sucesso internacional da bossa nova.
Exemplar deste movimento de expansão da bossa nova para o domínio cancional no exterior foi a trajetória norte-americana de Tom Jobim. A recepção positiva ao seu trabalho de estreia, de feitio instrumental, motivou sua transferência para a Warner, uma major, na qual o artista lançou outros álbuns com versões em inglês de suas canções. Finalmente, o LP Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim, lançado internacionalmente em 1967 pode ser tomado como evidência da exposição e prestígio internacional das canções bossanovistas de Jobim na década de 1960. Nele, além de standards da Classic American Song, foram (re)gravadas versões em inglês de: The Girl from Ipanema (Garota de Ipanema), Dindi, Quiet Nights of Quiet Stars (Corcovado), Meditation (Meditação), If you never come to me (Inútil Paisagem), How Insensitive (Insensatez), e Once I loved (Amor em paz).13 O lançamento do disco de Sinatra e Jobim foi marcado por uma série de iniciativas de divulgação então consolidadas nos Estados Unidos, marcadas pela verticalidade de suas ações, incluindo programa de televisão, entrevistas, etc.
O próprio Jobim parecia ciente das possibilidades comerciais do projeto, avaliando que "ele foi pra parada de sucessos. Isso representa um número muito grande de discos vendidos. E o disco é naturalmente exportado para todos os países, Japão e tudo."14 Ao mesmo tempo, este trabalho pode ser tomado como a afirmação de um paradigma estético e de um cânone de obras, na medida em que a maioria das canções gravadas praticamente reeditava os maiores sucessos de Jobim, agora sob o aparato midiático vinculado a Sinatra.
Não obstante, a circulação internacional da bossa nova a partir da segunda metade da década de 1960 também foi gradativamente incorporando misturas e apropriações com parâmetros e repertórios da música pop internacional, tendo como alvo os públicos adultos de classe média, do Adult Contemporary. Para tanto, foram cruciais as investidas de artistas como Sergio Mendes (n. 1941), com sua interpretação "bossanovista" de Fool on the Hill (Lennon/McCartney), em 1968. Ou, a trajetória solo de Astrud Gilberto (n. 1940) também reveladora de tais incorporações, incluindo performances de standards do pop e jazz. Além disso, a bossa nova permaneceu em evidencia com a utilização de canções - em versões originais ou traduções - como trilha sonora de produções cinematográficas internacionais como L'Homme de Rio (1964, dir. P. da Broca), The Deadly Affair (1965, dir. Sidney Lumet), The Gentle Rain (1966, dir. B. Balaban), Un Homme et Une Femme (1966, dir. Claude Leloush), ou Casino Royale (1967, dir. Val Guest). Tais produções contribuíram para a fixação de imaginário de sedução latina que envolveria o estilo, em conjunto com a mística das viagens internacionais e do Jet Set.
Em síntese, essas novas mediações consolidaram a progressiva filtragem de elementos da bossa nova ocorrida desde o início de sua circulação internacional, ao mesmo tempo em que galvanizaram uma difusa latinidade ao estilo, permitindo-lhe ainda maior potencialidade comercial no universo da World Music, a partir da década de 1990. De todo modo, uma de suas faturas mais perceptíveis, a contenção expressiva, se tornou emblema de alguns rótulos comerciais associados - muitas vezes pejorativamente - à bossa nova: a de Ambient Music, Mood Music, ou Easy Listening.
Dick Farney, pseudônimo de Farnésio Dutra (1921-1987).
A Noite (27/11/1951): 11, A Noite (29/11/1951): 6.
Héstia Barroso, "O Brasil conhecerá o Be-Bop (sic)," A Noite (11/07/1956): 4.
Anônimo, "Jazz pagou e toca hoje no Municipal," Jornal do Brasil (16/07/196): 1º Caderno, 9.
João Gilberto "Corcovado" (1960).
Quincy Jones, "Samba De Una Nota So" (1960).
Vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes, na França, 1959; Vencedor do Globo de Ouro e do Oscar, em Hollywood, Estados Unidos, 1960.
Miles Davis, "Aos pes da cruz," Quiet Nights (1962).
George Shearing, "On Green Dolphin Street" (1962).
Cannonbal Adderley, "Clouds" (1962).
"The Girl from Ipanema".
Gene Lees, apud K. E. Goldschmitt, Bossa Mundo. Brazilian Music in Transnational Media Industries (Oxford: Oxford University Press, 2018), 24.
As canções norte-americanas que integram o disco são: Change Partners (Irving Berlin); I Concentrate On You (Cole Porter); Baubles, Bangles & Beads (Robert Wrigth/George Forrest)*.
Antônio Carlos Jobim, "Depoimento ao MIS-RJ," Série Depoimentos para a Posteridade, 25/08/1967.