Glauber Rocha
A dimensão transatlântica do projeto estético do cineasta brasileiro Glauber Rocha será discutida a...
Ruy Guerra (RG) nasceu em 22/08/1931, em Lourenço Marques (hoje Maputo), capital da colônia portuguesa de Moçambique, às margens do oceano Índico. É apontado como um "cidadão do mundo" por sua vivência e produção cultural espalhada em diversos países situados nos três continentes à beira do Atlântico. Uma triangulação iniciada em sua mais tenra infância quando, aos 3/4 anos de idade, viajou com pais e irmãos num transatlântico em direção à Lisboa, para visita às famílias de origem. A segunda vez se deu cerca de 15 anos depois, quando vindo em outro transatlântico - apropriadamente batizado Império - desceu no mesmo porto lisboeta sob a guarda da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), suspeito de atividades na colônia contra a ditadura de Antônio Salazar. Tendo completado ém Lourenço Marques seu secundário, após seis meses seguiu para Paris a fim de se profissionalizar em cinema. Formado em 1954, passou mais 4 anos tentando realizar um filme no continente europeu. Em julho de 1958 veio para o Rio de Janeiro. Tempos depois, com outros jovens cineastas, criaram o movimento chamado Cinema Novo. Seus dois primeiros longa metragens - Os Cafajestes (1962) e Os Fuzis (1964, Urso de Prata de Berlim) - logo o tornaram conhecido no cenário cinematográfico brasileiro e internacional. Em meados da década de 1960 foi o primeiro cineasta de seu grupo a deixar o Brasil para filmar no exterior, no caso, na França.
Tendo escolhido o Brasil como país de adoção, levado pela sua paixão por filmar viajou por África, Europa e América, com permanências de maior ou menor duração. Busca de locações, filmagens, festivais, congressos e missões pelo cinema o levaram durante mais de meio século pelos três continentes (inclusive Estados Unidos e Canadá) e chegando até ao Japão. Em meados de 1990, ao passar alguns anos em Lisboa, escreveu em crônica para o jornal O Estado de S.Paulo ter "certeza de ser alguém em trânsito", o que lhe trazia angústias identitárias: era - e ao mesmo tempo não era - moçambicano, português e brasileiro. Nos anos em que ia frequentemente a Cuba, escreveu em sua agenda meio diário: "Sou brasileiro de trinta anos, quase metade de minha vida esquartejado em vários continentes e países, e me dou o direito de me sentir latino-americano, latino-africano, latino-português, todos com orgulho de quem viveu o sentimento da dor." ; concluiu destacando sua "esquizofrênica latino-africanidade". Em meados dos anos 1990 voltou a se fixar no Rio de Janeiro, onde vive até hoje, assim como seus filhos e netos. Gosta de se declarar "um cineasta brasileiro que nasceu em Moçambique". Acabou de certa forma se rendendo a ser, de certa forma, um carioca assumido.
De uma forma ou outra esteve dentro de grandes lances históricos do século XX. Em Moçambique viveu por duas décadas sob a colonização autoritária e racista da ditadura salazarista; lá voltou intermitentes vezes entre 1975/1985, participando da descolonização iniciada pela revolução nacionalista realizada pela Frente Nacional Libertadora (FRELIMO), que alçou ao poder Samora Machel e um governo de cunho socialista/marxista. Viveu sob a ditadura militar no Brasil, onde sofreu censura e detenções. Em Cuba, através de sua amizade e trabalho comum com Gabriel García Márquez esteve próximo ao grupo do poder na ditadura castrista. Sua formação profissional se fez na Paris dos anos 1950, em meio aos primeiros marulhos da Nouvelle Vague e sua luta por um cinema de autor contra o cinema industrial. No Rio de Janeiro dos anos 1960, além de filmar, participou do nascimento da Música Popular Brasileira (MPB) que se seguiu à Bossa-Nova. criando letras para jovens compositores que então se impunham. Participou do surgimento do Nuevo Cinema Latino-Americano, circulando pelos países da América espanhola como México, Cuba, República Dominicana. Nos anos 1960, quando a imagem do Brasil estava em alta na França, trabalhou para a l'O.R.T.F. (Office de Radiodiffusion Télévision Française) nos Carnets de Voyage au Brésil (1966), documentários que Pierre Kast filmou no Brasil, os quais levaram ao povo francês vários aspectos da cultura brasileira como arquitetura, artes plásticas, música, cinema; foi escolhido conselheiro do diretor em função dos laços que já havia formado no país nessas áreas.
Em poesias de meados dos anos 1970, se revela: "Vivo sobre um corpo de mulher/Que faz de mim gato e sapato/que me foge e me desfolha/e brinca de gato e rato. Vivo sobre três continentes/e isso não me contém/A raiva que trago nos dentes/não sei se me faz mal ou bem. Vivo à sombra de um túnel/do outro lado do sol/e nesta clave difícil/me sustento num bemol." A biografia por mim realizada - Ruy Guerra paixão escancarada (2017) - se estruturou não seguindo uma ordem cronológica mas a partir da vivência do biografado nos três continentes por ele destacados como fundamentais em sua trajetória. Conforme salientado no título, Serge Daney, jornalista e critico do Cahiers du Cinéma, via RG como um "cineasta viajante".1 Chico Buarque, na apresentação do livro de crônicas de RG brinca: "nômade por que cineasta ou provavelmente vice-versa" .
Em família e na escola pública recebeu uma educação luso-europeia. Muitos de seus professores tinham sido degredados pela ditadura salazarista e eram, portanto, críticos da situação sócio-politica; orientavam as leituras dos alunos abrindo suas cabeças sobre o status quo. Nessa linha, a produção cultural que vinha da metrópole sofria certa recusa e era dada grande importância àquela que vinha do Brasil, embora alguns livros e revistas tivessem que entrar por baixo do pano.2 A ex-colônia portuguesa independente apresentava muitas semelhanças com Moçambique na área da cultura e do espaço gerográfico, como clima, presença do negro, aromas e sabores. RG conta que, jovem em sua terra natal, aprendeu de cor inúmeras marchinhas de Carnaval da época. O grupo de jovens que RG frequentava eram aqueles mais marcados pela formação crítica, chamados de "os intelectuais" ou "os revolucionários"; a maior parte acabou por sair do país, constituindo uma lá chamada "geração da diáspora". Entre outros, exilaram-se voluntariamente para a França poetas como Noemia de Sousa, Virgílio de Lemos e Gualter Soares, para Roma a artista plástica Bertina Lopes, para Inglaterra o filsósofo Henrique Martins. Alguns fizeram parte dos "retornados" à metrópole, como os filósosfos Fernando e José Gil, os intelectuais Eugênio Lisboa, Luiz Carlos Patraquim e Edmundo Simões; para Portugal e depois Inglaterra foi o poeta Rui Knopfli, na mocidade o maior amigo de RG.
Não podendo estudar cinema em Lourenço Marques, RG deslocou-se para o mundo europeu, escolhendo a nova escola parisiense em detrimento de outras possibilidades, como o Centro Sperimentale di Roma ou a escola polonesa em Lodz. Pesou na escolha provavelmente o enorme respeito familiar, em especial o paterno, pela civilização francesa, assim como o domínio elementar do idioma aprendido no liceu. Sua entrada em 1952 no Institut des Hautes Études Cinématographiques (IDECH), a princípio difícil por ele ter chegado após o fechamento das inscrições, acabou se realizando, segundo ele mesmo conta, em função de sua origem moçambicana. Sua presença serviu para mostrar a abertura do recém criado IDECH a alunos das mais diversas origens, comprovando a auto afirmada vocação internacionalista do instituto e da cultura francesa. Diplomado em cinema (com breve introdução à televisão) e tendo frequentado por dois anos um curso de ator no Théatre National de Paris (TNP), alargou seu eixo europeu ao tentar sem sucesso filmar seu primeiro roteiro (Os Lobos, que depois se transformou em Os Fuzis) na Espanha e na Grécia. Ainda na França desempenhou seu primeiro papel como ator no filme SOS Noronha (1957), de Georges Rouquier, rodado na Córsega; no elenco atores brasileiros como José Lewgoy e Vanja Orico. A atriz e cantora possibilitou a vinda de RG ao Brasil ao convidá-lo para dirigir um filme que nunca se concretizou. Tentar a vida no Brasil era um desejo que já estava em seus planos há anos e foi facilitado pelas boas amizades brasileiras que formou no mundo parisiense. Paulo Emilio Salles Gomes, apenas um simples conhecido, deu uma ajuda fundamental ao forjar uma espécie de contrato para RG trabalhar na recém-criada Cinemateca Brasileira em São Paulo, exigência do consulado brasileiro em Paris para o visto de entrada.
A partir de sua iniciação no Cinema Novo brasileiro, sua produção é vária em gêneros e em países :
No Brasil 9 longas: Os Cafajestes (1962), Os Fuzis (1964), Os Deuses e os Mortos (1970), A Queda (1976), A Ópera do Malando (1985), A bela Palomera (1987), Kuarup (1989), O Veneno da Madrugada (2006), Quase Memória (2015) e uma parte de Estorvo (2000); 2 curtas; Orós (1959), O Cavalo de Oxumaré (1960) inacabado, 2 vídeo-clips: Talk to me (1984) e Obvious Child (1990). Na França 1 longa Sweet Hunters (1968). 1 média, Chanson pour traverser la Rivière (1966), 1 curta Quand le Soleil Dort (1954). Em Moçambique: 1 longa Mueda, Memória e Massacre (1980), 1 série para TV Os Comprometidos: Atas de um Processo de Descolonização (1982-1984), 3 curtas: Operação Búfalo (1978), Danças Moçambicanas (1979), Um povo nunca morre (1980). Em Portugal 2 longas: Monsanto (2000), Portugal S.A. (2003), 1 filme para TV francesa La Lettre Volée (1981), 1 curta para TV francesa: Carta Portuguesa a Seravejo (1994). No México 1 longa, Erendira (1982), Em Cuba: 1 série para TV espanhola Me alquilo para soñar (1991-2) e o longa Estorvo (2000). Na Argentina parte do longa O Veneno da Madrugada (2006).
Ao se formar no Liceu Salazar (hoje Josina Maciel), RG escreveu no álbum de lembranças de uma amiga a frase acima, que fala por si mesma e que parece ter sido um certo mote em sua vida. Pensava sua produção cinematográfica como destinada a qualquer parte do mundo, como se constata pela amplidão do eixo longitudinal das apresentações e premiações de seus filmes: dos extremos ao leste Tashkent no Uzbesquistão (1980), Nova Delhi na India (2002), Hong Kong (1989) ao extremo mais a oeste, a deversos festivais latino-americanos.
Diretor autoral, as maiores caraterísticas de sua produção cinematográfica estão, como é de se esperar, ligadas a sua personalidade e a sua interação com os locais onde viveu; características que foram se adaptando, se acumulando, mostrando certo entrecruzamento das influências por onde passava.
Ser político para RG tem um sentido amplo: é estar envolvido com as problemáticas de sua época. RG se vê e é visto como um homem à esquerda a partir de suas falas, suas atitudes de vida, suas expressões no campo artístico e educacional. Ser politicamente engajado nunca significou para ele ser filiado ou militante de algum partido, mas estar sempre atento à realidade sócio-politica dos países onde estava. Quanto à sua produção, repete constantemente que qualquer estética é política, pois necessariamente traz embutida certa visão de mundo, com seu conjunto de valores que enuncia, defende ou condena. Gosta de afirmar que quem analisa seus filmes observa certa obsessão pelas áreas de poder e pelos mecanismos repressivos, tanto nas estruturas sociais ou politicas quanto no ambiente familiar.
Esse posicionamento, iniciado na adolescência africana, o acompanhou por toda sua trajetória até a atual vivência brasileira.3 Desde jovem seu fazer cinema foi uma forma de pensar e apresentar as relações político-sociais, de praticar a denúncia social. Começou aos 16 anos, com uma câmara emprestada e uma vaquinha entre amigos para comprar película; filmou durante meses a realidade dura dos trabalhadores do porto do Cais Gorjão, em Lourenço Marques, principal escoadouro das riquezas dessa parte da África Austral; aquelas imagens lembravam-lhe "campos de concentração". Infelizmente o filme, pela fragilidade de sua montagem, não passou de uma única exibição doméstica.
No Brasil do início dos anos 1960, RG e os outros cinemanovistas estavam interessados em produzir filmes que retratassem a realidade do povo, os conflitos políticos e sociais, que fugissem às regras de produção e aos dogmatismos da estética do cinema industrial. Os Cafajestes apresenta uma sociedade de classes e se detem numa crítica dos costumes de parte da sociedade carioca da Zona sul. Os Fuzis foi realizado em cima do primeiro roteiro de RG, sobre a história de montanheses isolados que precisavam de armas para se defender de lobos esfaimados que vinham comer suas ovelhas, ameaçando sua sobrevivência; não lhes são enviadas armas mas soldados. Essa foi a versão europeia, que se passaria na Espanha ou Grécia e para adapta-la ao Brasil, a fome substituiu os lobos; nas duas versões os soldados acabam se retirando sem resolver nem o problema dos lobos nem o da fome. Outros de seus filmes que se preocupam especialmente com esse viés são Os Deuses e os Mortos, A Queda, A Ópera do Malandro, Kuarup e os dois filmes que dirigiu em Portugal no século XXI -- Monsanto e Portugal S.A.
Imigrante estrangeiro na Paris dos anos 1950/1960/1970, RG irritava-se com filmes da Nouvelle Vague por serem feitos por jovens oriundos da burguesia francesa que ignoravam o problema da imigração e da guerra da Argélia; considerava essa atitude de um soi-disant apolitismo extremamente política, como escreveu e afirmou em entrevistas. Nesse período frequentava muito Paris, a trabalho ou à procura desse. Foi ligado ao grupo da revista de cinema Positif, de posições políticas das várias vertentes da esquerda. Realizou ainda na França em 1966 um episódio de ficção para um filme sobre a Guerra do Vietnã - Loin du Vietnam - coordenado por Chris Marker, do qual participaram Alain Resnais, Agnès Varda, Jean-Luc Godard, Claude Lelouch, Jori Ivens e William Klein. O trecho de RG acabou não sendo aproveitado no filme.4
Seu posicionamento politico foi o móvel maior da volta à terra natal depois de um quarto de século. Buscava colaborar na construção da nova nação que surgia da ex-colônia; entre 1976-1986 lá fez intermitentes visitas, vivendo a intensa experiência da descolonização. A República Popular de Moçambique era um país de analfabetos, com muita tradição oral. Como não havia televisão, Samora Machel, preocupado com a construção da identidade nacional, atribuiu à tela de cinema o papel da lousa pedagógica onde se procuraria despertar, naquela sociedade tribal, o sentimento nacional. Nessa linha, RG colaborou ativamente com o Instituto Nacional de Cinema de Moçambique (INC, hoje INAC) criado logo após a tomada de poder. Contribuiu para a formação de quadros técnicos ministrando aulas práticas e trazendo para Maputo especialistas nas diversas atividades da área; um desses, Licínio de Almeida, lá ainda hoje permanece como realizador ativo e reconhecido internacionalmente.
Artigo de José Luís Cabaço sobre cinema moçambicano e RG
Os filmes que RG realizou nesse período são de uma finalidade e natureza essencialmente política. Filmes antropológicos, históricos, retratos fiéis daquela sociedade em transformação. São considerados por alguns parte de um "cinema militante". Um único exemplo me parece permitir essa classificação: o curta metragem Um povo nunca morre (1980). Registra o translado para Maputo dos corpos dos militantes da FRELIMO mortos na luta fora do país. Liga-se assim à construção de um culto de heróis, engrossando a memória oficial da luta levada pela FRELIMO, depois transformada em partido politico. O mais famoso é considerado o primeiro longa moçambicano: Mueda, Memória e Massacre (1980); o filme tem recebido algumas análises que lhe atribuem um mérito mais amplo do ponto de vista cinematográfico do que o indubitável valor histórico documental.
Artigo de Raquel O nascimento de uma nação: Mueda Memória e Massacre
Em 1984 foi convidado pelo governo a filmar o julgamento que se intitularia "Raízes da Traição". RG sugeriu outro título que foi adotado: ''Atas de um processo de descolonização: os comprometidos". A série passou na televisão; tem valor relevante por ter registrado um evento básico no processo de descolonização.
Seu posicionamento à esquerda fica claro também em suas relações com Cuba, onde viveu por alguns períodos. Seus filmes foram lá apresentados após o aparecimento do Festival Internacional do Novo Cinema Latino-Americano em 1979. Desde 1988, na conhecida Escuela Internacional de Cine y TV, em San Antonio de Los Baños a 30 kms de Havana, RG participou de projetos e roteiros com aquele que tinha se tornado, além de parceiro, seu amigo pessoal: Gabriel García Márquez, Gabo, um dos fundadores e financiador da Escuela.
Seu olhar politico não é militante ou didático. Sua posição em relação ao binômio arte/poder foi sempre de independência. Apesar de ligado a pessoas próximas a "El Comandante", posicionou-se contra interferência deste no cinema cubano. Em suas crônicas em O Estado de S. Paulo, por exemplo, alude mais de uma vez às difículdades do diálogo entre o poder e a arte. Critica Fidel Castro em falas por este ter atingido gravemente a obra do cineasta Tomás Gutiérrez Alea, Titón. Todavia, reafirma sua admiração e apoio à Revolução Cubana "que resgatou não só para Cuba, mas para toda a América Latina e países do Terceiro Mundo, muito da dignidade usurpada durante a colonização e perpetuada pelos atuais mecanismos de dominação econômica e cultural" .
Em grande parte da produção de RG pode-se notar a presença de um imaginário forte. Para RG o imaginário está incluído, faz parte da visão do real, o qual vai além do racional. O interesse por mostrar cenas sobre macumba, folclore, rituais, profetas, advinhos, pensamento mágico evidenciam traços trazidos de sua formação africana, que se fortificaram ao reencontrar no Brasil a presença da cultura negra, que viajara há séculos pelo Atlântico nos navios negreiros. Presente desde Joana Maluca, filme nunca realizado mas motor de sua vinda ao Brasil e que ele dirigiria para Vanja Orico com quem fizera amizade na França; a história seria baseada em conto do pai da atriz, o paraense Osvaldo Orico, alusiva ao mito do peixe boto, o qual se transforma em homem e engravida jovens. O documentário O Cavalo de Oxumaré (1960, não terminado) versa sobre a iniciação de uma jovem branca na macumba, religião do homem negro que amava. Em Os Fuzis (1964), ficção com lado documental, a visão do não racional está presente na religiosidade e no fetichismo regional nordestino, na procissão religiosa que pede a chuva, nos fato de os populares esperarem a chuva do seu boi-santo milagreiro. Em Sweet Hunters (1969) - terceiro longa e que nada tem a ver com África ou Brasil - são mostradas cenas de superstição; o filme para alguns críticos parece marcar uma ruptura com um viés realista dos anteriores.
Para RG a questão do chamado realismo mágico é uma questão cultural. Afirmou que sua origem africana o levou a ver que, o que para uma cultura é magia, para outra pode ser considerado como um conhecimento concreto, como uma forma de se conhecer a realidade. Acredita que na América Latina o realismo mágico serviu para os autores se apropriarem de sua própria cultura de forma não anteriormente codificada. Diz desconfiar da racionalidade; acha importante para criar uma película soltar o imaginário por vezes até o delírio; aconselha os alunos que sejam fiéis ao seu imaginário. Para o critico de cinema francês Michel Ciment, em RG esse realismo mágico une África e América Latina numa identidade comum do mundo então intitulado subdesenvolvido e que se oporia à hegemonia do mundo desenvolvido. Gabriel García Márquez, mestre do realismo fantástico, ao encontrar RG pela primeira vez afirmou-lhe que RG tinha feito um filme seu antes de conhece-lo ou antes mesmo de ler certo conto seu; referia-se a Sweet Hunters e ao conto El ahogado mas hermoso del mundo. As obras que RG adaptou de G G Márquez foram classificadas dentro do realismo mágico do escritor colombiano; Os Deuses e os Mortos, filme metafórico, também foi já incluído nessa classificação. RG foi o realizador que levou à tela mais obras do escritor: Erêndira, A Fábula da Bela Palomera, Veneno da Madrugada e Me Alquilo Para Soñar (mini-série para a televisão espanhola, totalmente filmado em Havana). Os dois se encontraram na Espanha, na Itália, no Brasil, no Mexico, na Colômbia e em Cuba para reuniões de trabalho - ao que contam, longas e prazeirosas, regadas a whisky.
RG prefere chamar a linguagem cinematografica de fílmica. O estudo e a prática dessa linguagem são constantes em sua produção cinematográfica. Destaca constantemente como imprescindível uma procura de renovação nesse campo para romper com conceitos e padrões ligados à estrutura hegemônica norte-americana, para ele redutores da realidade e que não servem para a nossa cultura. Essa busca teve sua origem em sua adolescência em Lourenço Marques, quando se enfronhava na leitura de teóricos como Sergei Eisenstein e Lev Kuleshov; seu ídolo era Orson Welles, e se orgulha de ter conseguido assistir a uma sessão a portas fechadas do Citizen Kane (1941). Na Paris da Nouvelle Vague com seu cinema de autor, essa preocupação se intensificou. Alguns críticos apontaram por diversas vezes essa influência na sua estreia em Os Cafajestes. Nas inúmeras estadias parisienses teve a oportunidade de ver o cinema do mundo todo. Sentiu-se muito influenciado sobretudo pelo cinema italiano de Francesco Rosi e Michelangelo Antonioni. Sua produção estve muito presente nas revistas Cahiers du Cinéma e Positif ( foi pessoalmente ligado a alguns membros desta última). Redutos de artigos teóricos e discussões, esses contatos podem ter sido fatores de aprofundamento de suas reflexões de uma formação continuada. Sua biblioteca sobre cinema (hoje com quase mil livros) evidencia essa preocupação. Procura inovar a cada filme, não gosta se se repetir. Brinca: "Se for pra levar um tombo que seja do alto do Corcovado e não da beira da calçada".
O filme Os Deuses e os Mortos (1970) pode ser visto como um bom exemplo dessas três características principais. O momento da ditadura militar brasileira obrigava a não se falar diretamente da política. RG pretendeu se esconder da censura ditatorial enfocando outra época e empregando metáforas. Como analisou Ismail Xavier, "o discurso sobre um mundo em desintegração assume papel central na composição dramática. Esta focaliza os conflitos entre a tradição dos proprietários de terra e a intervenção dos comerciantes na zona do cacau, sul da Bahia, no período da Primeira República. Este filme de Ruy Guerra traz o recuo no tempo típico ao filme histórico, mas seu horizonte é o de uma alegoria totalizante do sistema neo-colonial representado aí como um pesadelo, cenário onde estão em pauta aspectos da experiência humana que ultrapassam a questão da crise do cacau, pelos idos 1910-1920, e ensejam um laboratório dramático capaz de expor uma estrutura mais permanente de dominação, dentro da polaridade nacional/estrangeiro. Ao mesmo tempo, o filme traz em primeiro plano o debate sobre questões de identidade e interesses administrativos à distância. Uma dimensão antropológica ganha relevo em Os Deuses e os Mortos, cristalizada numa atenção às representações sincréticas do mundo rural brasileiro, com seu catolicismo rústico, seustraços de religião ameríndia e sua incorporação da cultura africana. Como acontece com freqüência na focalização do passado, o alvo maior deste filme é a discussão do presente, notadamente pela sugestão de semelhanças, recorrências, estruturas comuns de vivência a conectar os dois tempos. Como em outros filmes do mesmo período, há aqui um movimento de ´revisão da história´, sem dúvida deflagrado pelos cortes de 1964 e 1968, quando entrou em crise a teleologia de salvação que alimentava o Cinema Novo e redefiniu-se a forma da articulação entre mundo prático e fé religiosa. É o momento em que o problema da modernização reflexa passa a ser focalizado em suas dimensões mais sombrias"5
Os Deuses e os Mortos é o preferido do crítico de Positif Michel Ciment.6 Para Michel Estève constitui "um dos mais originais ensaios de reflexão política que já foram tentados na tela".7 São muito elogiadas as cenas de planos-sequência - uma marca de RG - manejadas de forma magistral pela câmara na mão de Dib Lufti. O impacto criado no espectador pelo uso extremado do imaginário foi sucintamente descrito por Howard Thompson, crítico do The New York Times que salientou em 19 de junho de 1972 : "Seu estômago vai se virar, mas você nunca esquecerá esse notável filme brasileiro Os Deuses e os Mortos, no New Yorker Theater. Assistir a este filme é como montar nas costas de uma serpente (...) O sr. Guerra estrutura o labirinto de um pesadelo com imagens surreais e tensões assassinas. Compõe a totalidade de suas paisagem com fantasmagóricas e cinzentas imagens da morte." E mais: "Agora que sabemos do que o sr. Guerra é capaz de fazer - com o poder, a beleza, o horror -- somente podemos nos interrogar sobre o que virá em seguida".
A 23/05/2018, a atualidade do filme é destacada por Luiz Carlos Azedo no Correio Braziliense: "A mesma alegoria poderia ser transposta para o cotidiano da vida urbana do presente, pois o seu material humano, do ponto de vista cultural e político, continua presente. A violência, a disputa de território, o banditismo, as oligarquias, a cultura do velho coronelismo, todos os elementos do roteiro de Os Deuses e os mortos estão vivíssimos não só nos grotões, mas nas grandes metrópoles. Ruy Guerra sabia o que estava fazendo. (...) A alegoria com a nossa política também seria perfeita, basta ler as notícias dos jornais. O que não falta são candidatos a deuses e a mortos-vivos. Vicejam num ambiente de iniquidade social, desesperança, violência e crise ética. As narrativas desses atores funcionam como alegorias de um passado recente que foi atropelado pela globalização e pela Operação Lava-Jato, mas continua a assombrar o presente. Um ex-governador cordato e querido pelos pares tem a prisão decretada, o ex-líder de toda uma geração rebelde volta à cadeia, um ex-presidente preso insiste numa candidatura ficha-suja. Ministros, senadores, deputados, governadores compõem um cortejo de mortos-vivos, surgem candidatos a deuses. Fora desse universo, o aparelho de segurança e o crime organizado se enfrentam, com baixas de ambos os lados. E a morte espreita o cidadão a cada esquina, no asfalto ou no morro, na noite escura ou à plena luz do dia, enquanto a vida segue milagrosamente o seu curso, ainda que a esperança não tenha sido reinventada, como nas cenas de Os deuses e os mortos."
RG gosta de afirmar que seu gosto pela erudição e pela arte vem da infância e adolescência africana, em especial do apreço familiar pela cultura, sobretudo literatura e música. Seu grupo de jovens amigos possuia o mesmo gosto pelas artes em geral. A longa presença em Paris certamente acentuou essa vertente de sua personalidade. Desde adolescente em sua terra natal publicou na imprensa contos, poesias e criticas cinematográficas. É apresentado como escritor moçambicano em antologias e trabalhos sobre o tema. Afirma constantemente que seu grande desejo na vida era ser escritor e até hoje diz sonhar com o dia em que, não mais podendo filmar, voltará ao seu sonho inicial.
Quanto aos termos que emprega em sua escrita, em carta-reposta a pedido de colaboração para um dicionário de expressões portuguesas em Moçambique preparado por Maria José Laban, negou ser gramático ou filólogo: "Escrevo de ouvido, misturando sotaques e prosódias, numa mistureba amalgamada o longo de minhas andanças em terras lusas, moçambicanas e brasileiras -- e é o sentimento do momento que me dita a escrita. Alguns espanholismos e galicismos também se intrometem, estes um pouco contra minha vontade. Sincero -- não invento palavras nem regras gramaticais (....) dizer mais seria entrar em areias movediças, matope lama, no xangane moçambicano, nas minhas aventuras de mufana (rapazinho, ainda em xangane) solto no mato."
Em seus escritos encontramos construções ou termos que lembram origem lusitana como burdas, escanzelado, dérreis, sem que nem lê, lès a lè, obas e olés....
Por ocasião da edição portuguesa do livro editado no Brasil 20 navios, o moçambicano Luiz Carlos Patraquim analisou no site Buala, em "Da crônica e sua melancolia": "A verdade é que ele faz a triangulação perfeita, aquela que tanto agradava a Agostinho da Silva. Natural de Lourenço Marques (Maputo), nome de referência do cinema novo brasileiro -- (.....) ( com um ) passaporte lusitano embora de língua derivada, o cineasta Ruy Guerra virou cronista. A prova? Sentem numa esplanada da avenida Atlântica, recostem-se à beira Tejo por uma tarde melacólica ou, de chamussa picante e Manica´´ bebericada, olhem a nesga de Índico, embora sujo, a partir da varanda aberta do restaurante da Costa do Sol e leiam, contando os navios, vinte. Tem estórias para os três, os três vértices do triângulo, claro está: Portugal, Brasil, Moçambique, a ordem é aleatória. (...). Manuel Ferreira inclui-o na sua antologia poética sobre Moçambique. Um Ruy a sair da adolescência, a coita d'amor flechando-se em verso ingénuo, é-nos revelado em No Reino de Caliban III, onde preocupações de índole social e deslocamentos identitários se manifestam numa linha que terá em Knopfli o seu grande e trágico cultor". (...)". Patraquim faz uma longa citação da crônica Esta Janela : " abrindo logo com ´Esta Janela´ (indiscreta?) onde interroga suas identitárias pertenças -- o tal triângulo: ´Daqui desta janela, quando a noite chega e Lisboa se pulveriza nas suas luzes anónimas de cidade grande ainda que possa me imaginar em Maputo, Havana, Rio, ou qualquer outro ventre, sei agora que não posso mais me enganar porque estou inexoravelmente só com a minha esquizofrénica latino-africanidade. Como é doloroso ser um eterno esquartejado, um eterno estrangeiro dentro de si mesmo, ´amarrado ao próprio cadáver´. Me resta o idioma como pátria, como ao poeta. E o ´sentimento do mundo´, como a um outro. É muito. Eu diria que é demasiado. Me resta esta janela´. Psicanalítica janela esta, a de Lisboa. Evohé a distância e uma garrafa de rum!"
Entre as 43 crônicas do livro, encontram-se duas das mais significativas sobre suas angústias identitárias; a acima citada e mais outra: "Um cheiro de manga". No conjunto dos quase 5 anos de contribuição semanal ao jornal O Estado de S. Paulo, encontram-se crônicas de natureza bem diversa. Algumas sobre "pequenos nadas" do cotidiano, como ele resume, mas também sobre sua visão do mundo, da arte, política, memória. Algumas são inspirações diretas dos três continentes onde viveu.
Na primeira década do século XXI, RG escreveu em voo solo uma peça teatral que pode ser vista como um musical - D Quixote de lugar nenhum. É uma adaptação do romance de Cervantes ao nordeste brasileiro, tão querido de RG. Ele declarou que realizou "um olhar brejeiro" sobre a tão famosa obra e seu personagem; afirma ter-se permitido iconoclastias, que a cultura nordestina é muito hispânica e que a caatinga, árida, remete à paisagens espanholas.9 Seu interesse pelo personagem vinha desde que RG tinha querido filmar o romance de João Ubaldo Ribeiro, Sargento Getúlio, em 1976. Para ele, o Sagento Getúlio era um personagem que mostrava "uma defesa dos valores feudais na sociedade rural nordestina, que se apoia sobre a violência, a intriga, a politicagen, e todo um código de honra machista", como está anotado em documento de seu acervo privado.
As mais de 100 poesias que RG compôs tem a ver com suas origens, com a grande presença da tradição oral nas culturas dos povos moçambicano e português. Uma analista da poesia africana percebe nas poesias com tema africanos que RG "dinamiza o legado de sua experiência mantém a poesia como um diálogo com a terra;e/ou as gentes de seu país (...) com um tom dialógico da melhor poesia africana". 10 Um número significativo de poesias gira em torno da questão identitária; a preocupação por vezes aparece ligada a temáticas de amor e morte. Nas poesias políticas destaca-se "Cuba, cemitério de cowby: carta aberta a John Álamo Wayne". Durante a vivência da guerra civil moçambicana escreveu poemas críticos da luta e sua violência no povo moçambicano.
Nas letras, é muito conhecida a do Fado Tropical, parceria do moçambicano com Chico Buarque de Holanda para o musical Calabar, elogio da traição, no inicio dos anos 1970. Estabelece uma relação original entre Brasil/Portugal. Outra letra atual e politizada, no viés da latino-americanidade que RG se aponta, é a parceria com Milton Nascimento E Daí?. A letra, expressa uma visão de unidade dos países latinos subdesenvolvidos, termo imperante na época. Nelson Motta notou sincretismos afro-brasileiros em alguns de seus estribilhos. Por exemplo, em uma das primeiras parcerias com Edu Lobo, Reza, há o estribilho; "Saravá Ogum/ Mandinga da gente continua/Cadê o despacho pra acabar/Santo guerreiro da floresta/Se você não vem /Eu mesmo vou/ Brigar".
Serge Daney, crítico do Cahiers du Cinéma, em em 21/11/1983, em artigo sobre o filme Erêndira no jornal Libération se refere a RG como "cet excellent cinéaste-voyageur".
Atualmente o escritor moçambicano Mia Couto tem feito inúmeras afirmações em suas entrevistas sobre a grande influência da cultura brasileira em Moçambique.
Por exemplo, em uma crônica no Jornal do Brasil a 20/03/2018
Ver as razões dessa recusa em Borges (2017), pp. 164-166.
Ver Xavier (1997). Ver também na Internet uma resenha analítica recente de 12/07/2012, de Carlos Natálio : "Os deuses e os Mortos (1970) de Ruy Guerra".
Ver entrevista em O Homem que Matou John Wayne e diversas entrevistas do jornalista.
Ver Estève (1984).
Alguns de seus poemas e falas tratam da importância da palavra em sua produção artística, caracterizando-a como seu barco, sua ponte, sua ultima trincheira, etc.
Indicar : DOM Quixote de Lugar Nenhum. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2018. Acesso em: 07 de Ago. 2018. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7.
Ver CHAVES, Rita. Ruy Guerra: a poesia entre os seus. Comunicação apresentada no Colloque International Ruy Guerra et la pensée critique des image, Paris, 7-9 out. 2015.