Instituto Cubano del Arte e Indústria Cinematográficos
ICAIC foi o primeiro organismo cultural criado em Cuba após a Revolução, em acordo com a Lei 169 de 24...
A ampla filmografia de Chris Marker (1921-2012), incluindo os filmes que dirigiu e aqueles com os quais colaborou, perpassa vários dos acontecimentos e marcos históricos da segunda metade do século XX. Constantemente lembrado como um dos expoentes do filme-ensaio, uma vez que suas obras se caracterizam por um tom pessoal na articulação entre imagens e texto, o cineasta francês foi um dos diretores de cinema que mais percorreu e filmou distintas regiões do mundo: França, Suécia, Alemanha, Islândia, Grécia, União Soviética, Eslovênia, Bósnia, Israel, Guiné-Bissau, Cabo Verde, China, Japão, Coréia, Vietnã, Estados Unidos, Cuba, Chile, Bolívia, México e Brasil. Nesse sentido, Marker pode ser definido como um mediador cultural que, por meio da sua própria circulação e de suas obras, promoveu importantes transferências culturais no campo do cinema.
Muitos dos documentários de Chris Marker podem ser vistos como filmes de viagem. O realizador é descrito, nos textos que se dedicam à sua cinematografia, como um viajante, alguém que constrói um olhar particular sobre o mundo e a política a partir do encontro com culturas e sujeitos alheios ao seu lugar de enunciação. Filmes como Dimanche à Pekin (1956), Lettre de Sibérie (1958), Cuba si (1961), Le mystère Koumiko (1965), Si j'avait quatre dromadaires (1966) e Sans soleil (1982) podem ser vistos como diários audiovisuais de viagens que marcam uma visão pessoal presente nas imagens, na montagem e no comentário. A questão da experiência, da alteridade espacial e cultural aparece também na fotografia de Marker, como é nítido nos livros fotográficos Coréennes (1959), Le dépays (1982) e Staring back (2007). Essa identidade de viajante se fortalece a partir de um dado biográfico: entre 1954 e 1958, foi editor da série Petite Planète, guias de viagem lançados pela Editions Seuil, articulando ensaios de escritores com fotos dos países visitados.
Essa característica da obra de Marker, aliada à sua militância política socialista (apesar de nunca ter sido filiado a nenhum partido), demarca uma concepção internacionalista da ideia de revolução. Nesse contexto, o mundo atlântico é um dos cenários centrais por onde ele circula na busca por testemunhar, com seu cinema, processos sociais e rupturas políticas. Se não é possível restringi-lo à alcunha de "cineasta transatlântico", pode-se dizer que algumas das pontes mais sólidas que construiu em sua trajetória atravessam esse oceano, especialmente no que diz respeito ao seu interesse pela América Latina nos anos 1960 e 1970. Este texto procura, portanto, mapear algumas das redes americanas estabelecidas por Marker.
Quando se analisa a presença latino-americana na filmografia de Chris Marker, os países que aparecem com maior recorrência são Cuba e Chile. Não por acaso, tratam-se de dois países que foram palco de revoluções paradigmáticas na segunda metade do século XX. A Revolução Cubana (1959) foi alvo de interesse do cineasta, bem como o governo da Unidade Popular (1970-1973). Nessas regiões, o cineasta francês criou laços de amizade e de cooperação com realizadores latino-americanos, que seriam fundamentais para a consolidação de instituições cinematográficas na América Latina (como o Instituto del Arte e Industria Cinematográficos – ICAIC – em Cuba e a Escuela de Artes de la Comunicación – EAC – no Chile), a promoção do cinema latino-americano na Europa e (particularmente no caso chileno) a acolhida dos cineastas no exílio. Marker fez também desses dois processos a oportunidade de refletir sobre os rumos da esquerda na França e de sua própria militância política.
Como muitos aspectos de sua vida, seu primeiro contato com a América Latina é repleto de um certo mistério. No Cd-ROM Immemory (1997), uma das incursões de Marker pelas novas mídias, ele apresenta uma série de fotos e documentos que comprovariam sua passagem pelo Colegio de La Salle em Havana, nos anos 1930. Segundo ele, a família teria visto a estadia de seu tio, Anton, na Ilha como forma de inseri-lo nessa escola de elite que teria uma missão colonialista de propagação da cultura francesa. Sobre essa experiência, afirma: "O resultado, verdade seja dita, foi bem diferente: para eles, a primeira de uma série de decepções. Para mim, o primeiro olhar para uma ilha que seria muito importante na minha vida" (Immemory, 1997). Se esse vínculo com Cuba foi criado a posteriori por um Marker que promovia frequentemente um hermético personagem de si mesmo ou se, de fato, o cineasta teve uma adolescência cubana é difícil saber. Porém, a citação acima é sintomática de um olhar sobre a América Latina que se propôs a inverter o fluxo tradicional da metrópole (Europa) para a colônia (América) para buscar nos antigos territórios coloniais um protagonismo político e cultural.
Como cineasta, Marker esteve em Cuba para o segundo aniversário da Revolução Cubana a convite do ICAIC1, entre dezembro de 1960 e janeiro de 1961. A visita do realizador francês foi fruto de uma política desse instituto que consistia em trazer nomes consagrados da cinematografia mundial que pudessem colaborar com a formação de quadros no país. Além disso, essa abertura internacional do ICAIC buscava propagandear ao exterior os feitos da Revolução, alimentando-se do interesse que Fidel Castro e seus companheiros despertaram nas esquerdas mundiais. Além de Marker, nomes da intelectualidade francesa como Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Gérard Philipe e Agnès Varda estiveram na Ilha no final dos anos 1950 e início dos 1960.
O fruto principal da estadia de Marker na Cuba pós-revolucionária foi o documentário Cuba si (1961), que celebra a vitória da guerrilha. A maioria das tomadas usadas no filme foram feitas em Havana, Zapata e Las Villas com uma câmera 16 milímetros pelo próprio cineasta, assessorado por uma equipe cubana, na qual constam nomes como Dervis Pastor Espinosa, Jorge Fraga, Saúl Yelin, Juan Vilar e Eduardo Manet. Este último, publicou na revista Cine cubano o artigo "Tres semanas de trabajo junto a Chris Marker"2, no qual destacava alguns procedimentos técnicos do cineasta francês que poderiam ser aprendidos pelos jovens cubanos, como o registro rápido, a inserção da câmera na vida cotidiana, a preferência pelas figuras humanas. O texto é um exemplo de como houve, por parte do ICAIC, a tentativa de encontrar um legado a ser extraído da visita de Marker. Apesar disso, o impacto de Cuba si para a filmografia cubana é difícil de ser mesurado, ainda mais considerando que o filme só foi exibido na Ilha em 1963.
Na França, Cuba si foi um filme muito comentado, sobretudo devido à polêmica que causou sua interdição pela censura, em 1961, o que gerou posicionamentos públicos3. O argumento usado pela censura foi o de que se tratava de uma "apologia ao regime castrista" e de "propaganda ideológica". Somente em 1963 a exibição de Cuba si foi liberada, em um momento em que o frisson causado pela Revolução Cubana na França começava a se enfraquecer. A exaltação da guerrilha no contexto da Guerra da Argélia foi outro argumento usado pelos que se opunham à censura para explicar a demora para que o documentário pudesse ser mostrado livremente. De fato, Cuba si celebra a Revolução, defendendo a existência de uma união entre revolucionários e o povo que iria na contramão dos argumentos dos opositores europeus que caracterizavam Fidel Castro como um ditador.
Uma leitura bem menos otimista da Revolução aparece no segundo documentário de Marker sobre Cuba, La bataille des dix millions (1970)4. Este segundo filme cubano não traz o lirismo do anterior, ao contrário, é composto basicamente por discursos de Castro submetidos a poucos cortes. O tema abordado é a campanha pela produção de 10 toneladas de açúcar, meta estabelecida pelo governo cubano em 1969 como forma de superar a severa crise econômica que assolava o país. O desafio pela produção, não alcançada, é tido pela historiografia como um dos episódios que marca uma maior dependência de Cuba em relação à União Soviética. La bataille des dix millions se propõe a fazer uma autocrítica à esquerda que justifique o fracasso da campanha, atribuindo-o basicamente ao subdesenvolvimento e ao imperialismo estadunidense. Nesse sentido, pode-se dizer que Marker adota um discurso alinhado com o discurso oficial do governo cubano.
O momento de realização de La bataille des dix millions é muito distinto daquele de Cuba si. O filme é realizado quando parte da intelectualidade francesa havia rompido com Cuba devido a episódios que sinalizavam um novo rumo para a Revolução, tais como o apoio de Castro à invasão da Tchecoslováquia (1968) e o chamado "Caso Padilla"5 (1971). Assim, o filme de 1970 parece dialogar principalmente com a esquerda europeia, procurando dar mais uma chance ao governo cubano. Em 1971, porém, Marker enviou uma carta a Alfredo Guevara (primeiro diretor do ICAIC que permaneceu no cargo de 1959 até 1983) na qual se posicionava sobre a prisão de Heberto Padilla, caracterizando a confissão forçada do escritor como "grotesca" e "inverossímil"6. No filme O fundo do ar é vermelho Cuba volta a ser um tema presente na obra de Marker, dessa vez, com um viés bem mais crítico, especialmente à figura de Fidel Castro.
O documentário cubano de 1970 foi montado exclusivamente com materiais audiovisuais enviados pelo ICAIC a Marker, como extratos dos Noticieros ICAIC Latinoamericanos, coordenado por Santiago Álvarez. Esse intercâmbio estabelecido entre o diretor francês e Cuba foi responsável também pelos dois curtas-metragens dirigidos por ele sobre o Brasil: On vous parle du Brésil: tortures (1969) e On vous parle du Brésil: Carlos Marighela (1970)7. O primeiro deles é composto por entrevistas com exilados brasileiros que chegaram à Ilha em 1969, libertados em troca do embaixador estadunidense, Charles Burke Elbrick, sequestrado pela Ação Libertadora Nacional (ALN) e pelo Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8) no contexto da ditadura militar brasileira. Já o segundo curta-metragem está dedicado à memória de Carlos Marighella, assassinado pelos militares em 1969. Vale ressaltar que no momento de realização do filme Marighella já havia se tornado bastante conhecido na França em razão da tradução ao francês, em 1970, de Minimanual do guerrilheiro urbano (1969), tido como um guia prático da guerrilha.
Além de uma entrevista com um exilado, On vous parle du Brésil: Carlos Marighela utiliza sequências audiovisuais e fotos feitas no Brasil, como as cenas do enterro do estudante Edson Luís de Lima Souto, assassinado pela ditadura, filmadas por Eduardo Escorel8. Essas imagens, bem como as dos exilados entrevistados em On vous parle du Brésil: tortures, que compunham originalmente episódios dos Noticieros cubanos, foram passadas a Marker pelo ICAIC. A análise desses documentários e a existência dessa rede mostram que o cineasta francês se tornou uma voz importante para denunciar a repressão ocorrida no Brasil (assim como aconteceria, mais tarde, em relação ao Chile da ditadura), estabelecendo discursos consonantes com o apoio que Cuba defendia, naquele momento, da luta armada como forma de derrotar os militares brasileiros.
Os laços entre Chris Marker e o ICAIC mostram que as viagens à América Latina serviram para estabelecer intercâmbios sólidos e duradouros, que tomaram a forma de leituras cinematográficas sobre processos políticos em voga, como revoluções e ditaduras. Esse movimento se torna visível com clareza ao se analisar as iniciativas concernentes ao Chile que se estabeleceram em meio ao apoio à união entre socialismo e democracia representada pela Unidade Popular e, posteriormente, às vítimas do golpe de 1973.
O primeiro contato de Marker com o Chile remonta ao início dos anos 1960, quando escreveu o comentário presente em À Valparaiso (1962), de Joris Ivens. Nessa ocasião, o cineasta francês não esteve no país latino-americano, mas criou uma descrição ensaística que ressaltava a desigualdade social e os males do colonialismo impressos na paisagem da cidade chilena. A viagem de Marker ao Chile se deu uma década depois, em 1972, quando acompanhou a comitiva de Costa-Gavras, que filmava Estado de sítio (1972) em Santiago. Segundo o próprio Marker, a ideia inicial era fazer um documentário sobre a chegada de Salvador Allende ao poder, porém, ao invés de um filme sobre a Unidade Popular, a estadia serviu para criar laços que perdurariam anos depois, durante o exílio chileno:
Ganhei uma amiga para toda a vida: Carmen Castillo. Reencontrei Mattelart, cujas análises heterodoxas me seduziram, e Patricio Guzmán, que acabara de terminar El primer año. Após outros encontros com outros cineastas, concordamos que esse era o melhor filme para informar o público francês, e no meu retorno eu realizei a vf [versão francesa]9
De fato, os contatos feitos no Chile em 1972 resultaram numa filmografia que ajudou na difusão da figura de Allende e na denúncia internacional da repressão ditatorial após o golpe de 11 de setembro de 1973. Na ocasião da morte de Marker, em 2012, Patricio Guzmán publicou um texto onde lembrava a importância do cineasta francês para seu projeto de criar um cinema testemunhal que pudesse dar conta das transformações e dos conflitos levados a cabo durante a Unidade Popular10. Além desse texto, uma farta documentação presente nos arquivos da Image, Son, Kinescope, Réalisation Audiovisuelle (ISKRA)11 indica que Marker e um grupo de produtores ligados a ele funcionaram como divulgadores e distribuidores da obra de Guzmán na Europa. Marker fez uma versão francesa para o documentário de Guzmán, El primer año (1972), que recebeu o título de La première année (1973). As mudanças consistiam na inclusão de um prólogo, em alguns cortes e na tradução dos texto seguida da inserção de novas locuções em francês. Também há registros de que começou a ser feita uma versão francesa do documentário La respuesta de octubre (Patricio Guzmán, 1972).
Quando ocorreu o golpe de Estado no Chile, a produtora de Marker estava em negociação com Guzmán e com a EAC (responsável pela produção chilena) para distribuir na Europa e nos países francófonos seu terceiro filme sobre o governo Allende, intitulado provisoriamente de El tercer año. O cineasta francês teve um papel fundamental ao fornecer película virgem para a equipe chilena em um momento em que o bloqueio internacional de importações dificultava o acesso ao material fílmico. As tomadas feitas em 1973 não chegaram a tomar a forma de um documentário sobre a Unidade Popular, como se esperava, mas foram aproveitadas na trilogia A batalha do Chile (1975, 1976 e 1979), de Guzmán, um dos relatos cinematográficos mais eloquentes sobre o golpe. A primeira parte desse filme começou a ser produzida na França pela ISKRA, porém, as tentativas de financiá-la com recursos de televisões europeias não foi bem sucedida, o que acabou sendo contornado pela iniciativa do ICAIC em viabilizar o projeto. A batalha do Chile, assim, pode ser visto como um produto cultural do exílio, que integrou atores da França, Chile e Cuba em seu processo de realização.
Após o golpe de Estado, Chris Marker foi um dos cineastas estrangeiros que se engajaram em formular denúncias audiovisuais sobre o que ocorreu no Chile, bem como em reivindicar uma memória positiva de Allende. Nos anos 1970, Marker era próximo a Régis Debray que, após ser libertado da prisão na Bolívia, foi acolhido no Chile, em dezembro de 1970, pelo governo da Unidade Popular. Até o golpe, Debray foi um dos mediadores entre o país latino-americano e a França. Nesse contexto, o jornalista tinha uma cópia de Compañero presidente (1971), documentário dirigido por Miguel Littin que consistia numa conversa entre Debray e Allende. Graças à essa cópia, Marker pôde remontar as sequências para fazer On vous parle du Chili: ce que disait Allende (1973). Trata-se de um curta-metragem que procura ressaltar as ideias de Allende no contexto imediatamente posterior ao golpe.
Em sua visita ao Chile, Marker estreitou laços com o sociólogo belga Armand Mattelart, que vivia no país. Após 11 de setembro de 1973, Mattelart voltou à França, onde passou a defender a tese de que a direita chilena havia articulado uma "linha de frente", aos moldes leninistas, que envolveu distintos setores da sociedade, angariando um amplo apoio à derrocada de Allende. Essa tese aparece defendida no documentário coletivo La spirale (1976), surgido de uma iniciativa de Marker para denunciar o que se passava no Chile. Participaram ainda desse filme nomes como as montadoras Jacqueline Meppiel e Valérie Mayoux e o brasileiro Silvio Tendler. Trata-se de um documentário de arquivo que utiliza, principalmente, tomadas feitas no Chile de Allende tanto por veículos de esquerda como de direita, por cineastas e televisões de distintas partes do mundo.
Pode-se dizer que o filme mais autoral de Marker sobre o golpe do Chile é L'ambassade (1974). Curiosamente, é também uma de suas poucas ficções – ao lado de La jetée (1962) e Level 5 (1997). Mais do que uma ficção, L'ambassade é um falso-documentário, que se apresenta inicialmente ao público como um registro em super-8 feito por um refugiado asilado em uma embaixada estrangeira cercada pelos militares. O filme se organiza como uma espécie de diário audiovisual em primeira pessoa, com um narrador que comenta as imagens como se elas fossem registros do dia a dia dos asilados nesse recinto. A última cena, uma das poucas tomadas que mostram o ambiente exterior, revela a presença da Torre Eiffel vista da janela, apontando ao espectador que as tomadas anteriores não teriam sido feitas no Chile, mas sim na França. É curioso notar ainda que em momento algum o narrador (que é também o camera man) afirma estar em território chileno. No entanto, L'ambassade apresenta diversos elementos que induzem a uma leitura de que os episódios apresentados se passariam nesse país latino-americano. O principal deles, evidentemente, é o contexto histórico contemporâneo à produção, já que era sabido que as embaixadas cumpriram um papel importante de salvaguarda após o golpe de 1973.
Segundo Marker, L'ambassade foi estruturado a partir do "efeito Kulechov", uma vez que as imagens registradas não apresentam o Chile de fato, mas sim um espaço e um tempo fílmico construídos pela montagem e pelo relato em voz over que remetem o espectador ao contexto pós-ditatorial chileno. Na prática, as imagens de super-8 foram todas rodadas em Paris, mais precisamente no apartamento de Lou, a esposa do pintor cubano Wilfredo Lam, durante um encontro promovido por Marker com seus amigos (entre eles, exilados chilenos). A partir daí, o realizador propôs uma série de atividades e discussões que resultaram em situações cujo sentido original foi alterado na montagem. Assim, por exemplo, um debate "real" sobre o conflito árabe-israelense entre Carole Roussopoulos e Édouard Luntz aparece, na ficção, como uma calorosa discussão entre a personagem Carole, adepta da luta armada, e o personagem Luco, membro do Partido Comunista. Marker aproxima, em L'ambassade, os contextos políticos de Chile e França, numa época em que a esquerda francesa procurava, por meio de uma união que incluía os partidos comunista e socialista, chegar ao poder pela via eleitoral – de forma semelhante ao que havia feito anos antes a Unidade Popular chilena.
Por fim, vale dizer que o Chile é um tema constante em O fundo do ar é vermelho. Este documentário dedica seu último quarto bloco ("Do Chile ao... que, de fato?) às expectativas e incertezas geradas pela Unidade Popular e sua queda no seio da esquerda mundial.
Apesar do peso que Cuba e Chile têm na obra transatlântica de Marker, é necessário mostrar que o interesse desse cineasta pelas Américas não se restringe a esses dois países. Em O fundo do ar é vermelho uma das questões principais é a repressão sofrida pela guerrilha e a emergência de uma nova esquerda na década posterior aos anos 1968, formulando um debate para o qual a América Latina adquire importância. Assim, o documentário se ocupa, além de Cuba e Chile, de Venezuela, Colômbia, México, Bolívia e Brasil. Da mesma forma, os Estados Unidos é um dos países mais comentados no filme, seja por conta de sua política imperialista (que se manifesta nos episódios da Guerra do Vietnã e na morte de Che Guevara, por exemplo), seja como palco da emergência de uma juventude que se auto-atribui um protagonismo político.
Algumas das imagens usadas por Marker nesse documentário de arquivo foram feitas por ele na Bolívia em 1967. O cineasta teria ido ao país em companhia do editor François Maspero como forma de pressionar o governo boliviano a libertar Régis Debray, preso por acompanhar Che Guevara na guerrilha. As imagens tomadas foram feitas com uma beaulieu (um dos primeiros aparelhos compatíveis com fita cassete), mas só teriam sido montadas dez anos depois, em O fundo do ar é vermelho. Na ocasião da morte de Marker, Maspero publicou um depoimento no qual conta a tensão enfrentada pela dupla por causa dos militares estadunidenses que os acompanharam no voo de Lima a La Paz e que dividiam o mesmo hotel12. Teria sido nessa viagem que surgiu a estreita amizade entre o cineasta e o editor e que renderia o filme On vous parle de Paris: Maspero, les mots ont un sens (1970).
Além daqueles já elencados, outro país latino-americano recebeu atenção de Marker: o México. O cineasta publicou dois livros, intitulados Commentaires (1961) e Commentaires 2 (1967)13, nos quais traz textos escritos para filmes concretizados (como Cuba si, que aparece no primeiro volume) e comentários de filmes imaginados. Entre os projetos não filmados está Soy México (1965), cujo título, possivelmente, remete a Soy Cuba (1964), de Mikhail Kalatozov, embora não haja um diálogo estético direto entre o projeto de Marker sobre o México e essa ficção soviética feita em parceria com o ICAIC. Soy México integra o segundo volume de Commentaires e seu texto aparece na publicação acompanhado por gravuras históricas e fotos trazidas para a França por François Reichenbach ou pelo próprio Marker – segundo Catherine Lupton, ele teria ido ao México em 1953 em uma delegação da UNESCO14.
A questão central para Marker no comentário sobre o México é a identidade mexicana, para a qual a conquista espanhola e a proximidade com os Estados Unidos são aspectos constituintes. O cineasta sugere que o cliché que se tem desde o exterior sobre o mexicano se acerca à autoimagem projetada pelo próprio país. Assim, Marker evoca a figura de Malinche, a indígena que acompanhou Hernán Córtez e colaborou para o sucesso conquista, como uma metáfora identitária de um México que se constrói em consonância com a visão e os interesses do "outro".
Em Soy Mexico, Marker apresenta um país paradoxal, no qual um revolucionário camponês, como Emiliano Zapata, pode ser "santificado" por Hollywood. Ou, onde o mesmo Hôtel de Ville que recebe os grandes proprietários e eclesiásticos pode comportar um mural de Diego Rivera sobre a Revolução. Ao longo do texto, o cineasta procura superar esse México que se vende como uma máscara de artesanato para buscar uma essência do país, formada por elementos que se deseja ocultar: os indígenas pobres. "Eu também sou México" é a frase que se repete no comentário markeriano, como uma forma de trazer à tona quem se pretende excluir.
Os Estados Unidos estiveram bastante presentes na filmografia de Marker. Predominantemente, o país aparece como um protagonista nas relações colonialistas que o cineasta busca esmiuçar em grande parte de sua obra. No entanto, não se pode dizer que o realizador reduz os EUA ao papel de principal agente do imperialismo: a emergência de uma contracultura, jovem e pacifista, também é um foco de interesse para ele.
Da mesma forma que ocorre com o México, Marker dedica um roteiro não concretizado à exploração da identidade estadunidense. L'Amérique rêve (1959), publicado no primeiro volume de Commentaires (1961), seria fartamente incorporado por François Reichenbach em seu filme L'Amérique insolite (1960). De acordo com Catherine Lupton15, Reichenbach oculta Marker dos créditos, apesar das evidentes coincidências entre seu roteiro e o comentário markeriano. Em resposta, ao publicar o texto em 1961, Marker insere créditos imaginários, nos quais diz que, caso se tratasse de um filme concreto, escolheria Reichenbach como o camera man.
L'Amérique rêve se utiliza de uma série de fotografias, anúncios publicitários e ilustrações que compõem um mosaico do american dream. Esse mosaico se forma a partir de elementos como o mito do oeste (simbolizado pelo cowboy), a beleza juvenil, mundos artificiais (como a Disneyland ou a Ghost Town), junk food, os heróis dos quadrinhos, James Dean... Essa identidade autoconstruída dos Estados Unidos, ligada à ideia de um país voltado ao futuro, desperta, na visão de Marker, uma faceta social violenta. O texto termina em tom premonitório, ao dizer que esse "sonho americano" poderia se converter no "nosso" sonho (ou seja, no da Europa).
Os Estados Unidos são protagonistas também em Loin du Vietnam (1967), filme sobre a Guerra do Vietnã. Esse documentário nasceu da proposta de Marker de criar um produto audiovisual coletivo que pudesse manifestar solidariedade ao povo vietnamita. O filme contou com a participação de Alain Resnais, Jean-Luc Godard, William Klein, Claude Lelouch, Agnès Varda, Joris Ivens, Michèle Ray, entre outros. Loin du Vietnam pode ser lido na chave do apoio aos movimentos de libertação do "Terceiro Mundo" (do qual a Revolução Cubana também faz parte), que expõe o imperialismo estadunidense como um mal a ser combatido. Esse filme terá ainda uma grande relevância na obra do cineasta francês por ter sido, por meio dos esforços em produzi-lo coletivamente, o responsável pela criação da produtora SLON (nascida em 1967, mas oficializada apenas no ano seguinte).
Apesar das denúncias do imperialismo, não se pode dizer que Chris Marker tivesse uma leitura estanque dos Estados Unidos. O único filme gravado por ele integralmente nesse país é La sixième face du Pentagone (1968). Novamente, trata-se de uma parceria com François Reichenbach, que assina a codireção. Ambos estiveram em Washington para registrar o protesto contra a Guerra do Vietnã ocorrido em 21 de outubro de 1968, quando milhares de jovens marcharam até o Pentágono, num ato conhecido como "Marcha do Pentágono". A câmera se mescla aos manifestantes, produzindo tomadas muito próximas das ações, o que gera tensão. Junto às imagens de autoria do diretor, estão algumas de terceiros, como a famosa foto de Marc Riboud na qual uma mulher aponta uma flor para os policiais armados.
Além do som direito e de discursos que acompanham a marcha, Marker redige um comentário que complementa as imagens – são poucas as entrevistas que aparecem. Em seu texto, o cineasta define o ato como uma nova forma de fazer política, um marco do que se costuma chamar de ação direta. As imagens e a voz over materializam a dificuldade em se fazer uma marcha pacifista que não se restrinja ao protesto, mas que proponha a uma ação: a invasão do Pentágono. Após ver esse objetivo ser parcialmente alcançado, Marker se pergunta qual é o efeito desse acontecimento na sociedade estadunidense e na Guerra, concluindo que o grande legado seria uma transformação de parte dos jovens universitários estadunidenses. Nesse sentido, o filme recorre à figura emblemática de Che Guevara para estabelecer um vínculo entre os movimentos sociais estadunidenses, a guerrilha latino-americana e as lutas anticoloniais: o rosto do guerrilheiro assassinado no ano anterior à marcha está amplamente presente nos cartazes e faixas empunhados contra a Guerra, bem como seu nome é repetido no coro entoado pelos jovens do "primeiro mundo".
Muitas das imagens de Loin du Vietnam e de La sixième face du Pentagone foram remontadas dez anos depois em O fundo do ar é vermelho. No documentário de 1978, o cineasta revisita criticamente essas manifestações, bem como aquelas empreendidas pelos jovens franceses em Maio de 68, para se questionar se as vitórias desses atos não foram mais simbólicas do que reais. O fundo do ar é vermelho repassa, por meio de imagens de arquivo, temas agudos nessa filmografia americana de Chris Marker, como a guerrilha e os movimentos de descolonização; o imperialismo, as guerras e os golpes militares; os protestos estudantis ocorridos no "primeiro mundo" ao final dos anos 1960; e, por fim, o surgimento de uma nova esquerda nos anos 1970.
Buscou-se aqui traçar um panorama para indicar que, apesar dessa forte presença de Cuba e do Chile na filmografia de Marker dos anos 1960 e 1970, os percursos cartográficos do cineasta pelas Américas têm ramificações que não se restringem a esses dois países. Além de múltiplas regiões do continente terem sido temas de seus filmes, Marker estabeleceu laços de sociabilidade com realizadores de distintos países. Um exemplo foi a cooperação entre o francês e o cineasta colombiano Carlos Álvarez. A SLON distribuiu seu documentário Un día yo pregunté (1970) na Europa, atuando de forma parecida com que faria pouco depois em relação a Patricio Guzmán. O fundo do ar é vermelho utiliza extratos de outros filmes colombianos, como ¿Qué es la democracia? (1971), de Álvarez, e Camilo Torres Restrepo (1966), de Diogo León Giraldo16. A presença dessas imagens feitas por latino-americanos nos documentários de arquivo de Marker atesta um intercâmbio ativo no campo do cinema militante, cujo estudo dos vínculos não está esgotado.
Um mapeamento completo das conexões transatlânticas de Marker deveria ainda considerar que a África é um continente presente em seu horizonte. Embora este texto foque nas incursões do diretor pela América, vale a pena comentar brevemente como temas e imagens africanas entram em sua filmografia. A arte africana foi tema de um dos primeiros documentários do cineasta, co-dirigido com Alain Resnais: Les statues meurent aussi (1953), realizado a partir de uma encomenda da organização Présence Africaine. O documentário é composto, principalmente, por tomadas de peças africanas expostas na França, acompanhadas por um comentário – redigido por Marker – bastante crítico ao olhar colonialista europeu sobre a cultura da África. Por conta disso, Les statues meurent aussi incomodou a censura, que só liberou a exibição de uma versão com muitas supressões em 1957. Os diretores optaram por não exibi-la nessas condições e apenas no início dos anos 1960 o filme passou a circular.
A África aparece também no eixo central da narrativa de Sans soleil (1982). Neste documentário, o continente é apresentado como a outra face do Japão: se o primeiro sofre os males do subdesenvolvimento, os japoneses são vítimas de um desenvolvimento extremo que abala sua cultura milenar. O filme se estrutura a partir do comentário em voz over das cartas de um viajante, o personagem Sandor Krasna, e de tomadas rodadas em distintas partes do mundo (além de África e Japão, vem da Islândia um plano que se repete). Marker utiliza material audiovisual filmado por outros realizadores na Guiné-Bissau, conforme é indicado nos créditos, por nomes como Sana Na N'Hada, Mario Marret e Eugenio Bentivoglio. É interessante notar que Sana foi um dos realizadores da Guiné-Bissau enviados por Amílcar Cabral para estudar cinema em Cuba nos anos 1960. É possível que o ICAIC tenha atuado como intermediário na relação que o guineense estabeleceu com Marker. Este último teria feito mais de uma viagem ao país africano para ensinar e debater filmes no Instituto Nacional de Cinema (INC), fundado em 1978 na Guiné-Bissau17. Assim, a relação entre o cineasta francês e Sana conecta, de algum forma, os três continentes que beiram o Atlântico.
Les statues meurent aussi e Sans soleil são exemplos de como a filmografia de Marker buscou expor as relações colonialistas presentes nos vínculos entre a França e outros territórios do Atlântico. Marker constantemente valorizou a cultura africana e latino-americana em seu potencial inventivo e libertador. O realizador é um exemplo, portanto, de um visão que busca romper a hegemonia da Europa em relação às suas colônias ou ex-colônias. Porém, Marker o faz sem deixar de demarcar que o seu próprio ponto de vista parte de um lugar de enunciação metropolitano, do qual procura se afastar por meio da experiência da viagem, vista como uma ampliação da perspectiva. Esse exercício é acompanhado pelo desejo de uma libertação revolucionária que poderia eclodir nos territórios não europeus, mas também no Velho Continente.
As revoluções – sejam elas fruto da luta armada, como em Cuba, ou derivadas de novos caminhos institucionais, como no Chile – são vistas, na filmografia markeriana, como processos de transformação e ruptura que abalam positivamente a ordem mundial. A Europa é um dos polos, cujo o destino se relaciona diretamente aos acontecimentos fora de seus limites geográficos. Não apenas o Atlântico, mas todo o planeta é um mesmo território conectado, no qual Marker desafia as distâncias e as fronteiras.
and Commentaires II, (Paris, Éditions du Seuil, 1967).
O ICAIC foi a primeira de uma série de instituições culturais criadas após o êxito dos revolucionários com o objetivo promover uma "nova cultura" compatível com a ideia de ruptura intrínseca a esse processo.
Eduardo Manet, "Tres semanas de trabajo junto a Chris Marker", Cine cubano 4, (1960/1961), 24-33.
Como exemplo, pode-se citar: Samuel Lachize, "Symphonie pour un peuple libre", L'Humanité, Paris, 14 septembre 1963.
Nos arquivos do ICAIC, na pasta dedicada a Chris Marker, há um papel datilografado que indica que a lista de filmes teria sido atualizada numa visita do realizador francês à Ilha em março de 1968: "Chris Marker: filmografía", Havana, ICAIC, [1968?]. Centro de Documentação do ICAIC, pasta "Chris Marker". Porém, além dessa fonte, não foram encontrados outros indícios de que Marker tenha voltado a Cuba após 1961.
"Caso Padilla" foi a forma como ficou conhecido o episódio da prisão do escritor Herberto Padilla, em 1971, após a publicação do livro Provocaciones (1971), que tecia críticas ao governo de Cuba. A prisão encontrou forte rechaço da comunidade internacional. Apesar dessa mobilização ter levado à soltura de Padilla, o ato foi sucedido por uma autocrítica pública fruto de pressão que colaborou para a difusão da imagem de um Estado cubano autoritário.
Alfredo Guevara, ¿Y si fuera una huella? Epistolario, (Havana : Editorial Nuevo Cine Latinoamericano, 2009).
O título original do documentário traz um erro de grafia no sobrenome do revolucionário brasileiro, que se chamava Carlos Marighella.
Informação obtida em: Patrícia Machado and Thais Blank, "Eduardo Escorel e a política dos arquivos: notas sobre a trajetória de imagens de um cortejo fúnebre no Brasil de 1968", Revista Brasileira de História da Mídia 2, v.3, jul./dez. (2014) : 193-197.
Chris Marker, [e-mail] 27/10/2011, Paris [para] Carolina Amaral de Aguiar, Paris.
Patricio Guzmán, "Lo que debo a Chris Marker", La fuga 14, (2012).
Produtora militante criada, entre outros, por Chris Marker em 1974 a partir da Service de lancement des oeuvres nouvelles (SLON), existente desde 1967.
O depoimento de Maspero foi publicado on-line em: Antoine Perraud, "Tous autour de Chris Marker", Mediapart, 26/11/2013.
Chris Marker, Commentaires, (Paris: Éditions du Seuil, 1961);
Catherine Lupton, Chris Marker: memories of the future, (London : Reaktion Books, 2008) 98.
Lupton, Chris Marker: memories of the future, 66.
Informações dadas por Sergio Becerra, "En torno a Camilo Torres y el Movimiento Estudantil", in Mariano Mestman, (coord.), Las rupturas del 68 en el cine de América Latina, (Buenos Aires: Akal, 2016), 217-248.
Informação dada por Fernando Arenas, "The Filmography of Guinea-Bissau's Sana Na N'Hada: From the Return of Amílcar Cabral to the Threat of Global Drug Trafficking", Transnational Africas, PLCS 30/31 (2017).