Diplomacia cultural: entre propaganda e soft power
Diretamente ou por intermédio de instituições e atores não governamentais, os Estados tiveram papel...
Sem sombra de dúvida, Fernando Ortiz (1881-1969) foi o intelectual cubano mais importante do século XX, quer por suas pesquisas sobre as relações interétnicas quer por suas atividades como personalidade pública. Desenvolveu uma obra pioneira que estabeleceu os fundamentos para o estudo da população negra em Cuba, sobretudo no campo da história e da cultura. Para explicar o complexo entroncamento de diferentes povos do mundo no território cubano, Ortiz lançou mão do conceito de "transculturação" no livro Contrapunteo Cubano del tabaco y el azúcar, cuja formulação original consagrou-o internacionalmente.
Pertencente a uma próspera família de origem espanhola, Ortiz passou da infância à juventude entre dois mundos, o da sua Cuba natal e a Espanha dos seus familiares. Com um ano de idade, foi levado pela mãe à ilha de Minorca, onde cresceu falando o lemosín, dialeto de um lugar intercultural por excelência em vista do cruzamento de povos e civilizações do Mediterrâneo. Precocemente manifestou sua vocação etnográfica, ao publicar ali seu primeiro livro, Principi i Prostes, isto é, entradas e sobremesas, a respeito do folclore e da literatura costumbrista local.1
Aos quatorze anos retornou à América para cursar direito na Universidade de Havana justamente no início da definitiva guerra de independência de Cuba (1895-1898), voltando à Espanha no final conflito para concluir o bacharelado na Universidade de Barcelona. Em seguida, durante o doutorado em direito na Universidade de Madri, na área de criminologia, tomou o primeiro contato com a temática à qual devotou os seus estudos - decifrar o enigma do papel do negro na história cubana. Seu retorno a Cuba, em 1902, coincidiu com o fim a intervenção militar norte-americana e o estabelecimento do primeiro governo cubano eleito. Realizou então um segundo doutorado na Universidade de Havana e em seguida partiu para a Europa, onde trabalhou como cônsul do serviço diplomático em La Coruña, Gênova, Marselha e finalmente como secretário da legação de Paris. Essa estadia permitiu-lhe não só dividir as obrigações profissionais com suas pesquisas como também ampliar seus contatos acadêmicos e relações pessoais, a exemplo da amizade travada com dois expoentes da criminologia italiana, Cesare Lombroso e Enrico Ferri.
Ao estabelecer-se definitivamente em Cuba em 1905, trabalhou como procurador da Audiência de Havana (Corte Suprema da República) e em seguida como professor de direito na universidade dessa cidade, tornando-se uma destacada figura dos círculos acadêmicos, políticos e culturais. Tanto a sua inovadora produção sobre o negro quanto as suas inúmeras atividades em prol da cultura, da educação, da democracia, da igualdade social e da soberania política de Cuba, explicam a sua projeção como intelectual dentro e fora da ilha. Reativou a centenária Revista Bimestre Cubana, presidiu a prestigiosa Sociedad Económica de Amigos del País (SEAP), atuou como deputado do Partido Liberal, representou o país em reuniões internacionais, escreveu assiduamente na imprensa, fundou inúmeras publicações e entidades dedicadas à ciência e à cultura, e interveio na vida pública, mesmo depois de abandonar a política em 1927.
No início do século XX, com cerca de um e meio milhão de habitantes, Cuba era um país recém-independente da Espanha e sob a tutela dos Estados Unidos. A base econômica agroexportadora havia moldado a estrutura social da ilha, composta por uma maioria de origem europeia que formava dois terços da população, por um terço de afrodescendentes cujos ancestrais haviam sido escravos e um por cento de chineses. Apesar da ativa participação dos afrodescendentes no processo de independência de Cuba, tal segmento da população continuava sendo o mais pobre e objeto do preconceito e da discriminação racial. Receosos da africanização do país, as autoridades cubanas restringiam a entrada de trabalhadores negros provenientes do Caribe ao mesmo tempo em que estimulavam a imigração europeia, especialmente espanhóis provenientes da Península Ibérica e das Ilhas Canárias.
Formando a camada mais pobre da população, os afrodescendentes eram alvo de preconceito dos brancos tanto pelas suas tradições culturais e religiosas quanto por serem associados às práticas delitivas. Mais do que isso, a população de cor representava um fator que colocava em xeque a própria identidade nacional, concebida como essencialmente branca e hispânica pelos grupos dirigentes. Foi sob tal contexto de divisão racial que Fernando Ortiz iniciou os seus estudos a respeito da população de cor.
Em 1906, Ortiz publicou em Madri Los negros brujos, autodefinido como um estudo de etnologia criminal e primeiro livro de uma coleção intitulada Hampa afrocubana. Com um elogioso prefácio de Cesare Lombroso, o estudo buscava descrever os tipos humanos da chamada "mala vida" - má vida - cubana e desvendar os fatores psíquicos que inclinariam a comunidade negra na direção do crime e das práticas antissociais. Com base nos conceitos positivistas e racialistas da antropologia criminal da época, os negros eram tratados como inferiores em termos morais, psíquicos e intelectuais, condição que se refletia em um conjunto de deficiências: na religião, nos hábitos, na linguagem, nas artes, nas relações sexuais e familiares. A obra concebia ainda os grupos negros como vítimas de um primitivismo ancestral herdado - o chamado atavismo - do qual não conseguiam libertar-se. Foram pesquisadas e conectadas as raízes africanas, ibéricas e cubanas do comportamento dos negros, em especial dos bruxos, dos curros (nome dado aos delinquentes) e do ñañiguismo ou Abakuá - sociedade criminosa secreta de origem africana. Ao identificar os males que afligiam a sociedade cubana, Ortiz pretendia contribuir para a regeneração do tecido social e o progresso moral da nação, a realizar-se por meio de políticas governamentais. Uma das suas referências era o médico brasileiro Nina Rodrigues, cujos estudos visavam explicar o comportamento do negro no Brasil por meio do fetichismo e do atavismo.
Nos anos seguintes Ortiz tornou-se a principal autoridade sobre os afrodescendentes na América Latina ao promover investigações pioneiras que aliavam o exame de temas originais a uma surpreendente erudição e atualização científica. Em termos teóricos - mas não sem ambiguidades - abandonou o positivismo evolucionista e o determinismo biológico, em favor da perspectiva cultural desenvolvida no âmbito da antropologia norte-americana, especialmente por Franz Boas, Melville Herskovits e Bronislaw Malinowski. Nas duas décadas posteriores publicou inúmeros trabalhos dos quais se destacam: Las rebeliones de los afrocubanos (1910), Hampa afrocubana: los negros esclavos (1916), La fiesta afrocubana del Dia de Reyes (1920), Los cabildos afrocubanos (1921), Historia de la arqueologia indocubana (1922), Un catauro de cubanismo, apuntes lexicográficos (1923), Glosario de afronegrismos (1924). Tais estudos eram baseados em fontes primárias inéditas e vasta bibliografia internacional, de modo a reconstruir a trama de fios que uniam a história da ilha aos demais lugares do mundo.
A adoção do paradigma cultural por Ortiz levou ao abandono da tese da inferioridade biológica, psíquica e cultural dos afrocubanos. A história dos escravos e da população livre de cor deixou de ser tratada negativamente, passando a ser considerada em termos da sua contribuição cultural, econômica e social para a construção da nação. Um passo nessa direção foi dado com a criação da Sociedad del Folklore Cubano e a revista Archivos del Folklore, em 1924, no âmbito da SEAP. Na década seguinte, um novo impulso foi dado com a inauguração da Sociedad de Estúdios Afrocubanos, em 1937. Presidida por Ortiz, tinha a missão estudar os diversos fenômenos produzidos durante a história de Cuba pela convivência de diferentes grupos étnicos, de modo a explicar suas causas, fatos e consequências, assim como estimular a integração nacional cubana.
As suas pesquisas respeito da população negra materializaram-se sob a forma de trabalhos publicados nos anos 1950, os quais constituem uma obra monumental para o entendimento das manifestações culturais cubanas. Os dois primeiros livros intitulavam-se La africanía de la música folklórica de Cuba e Los bailes y el teatro de los negros en el folklore de Cuba. Amparavam-se em uma ampla gama de fontes tais como relatos de viajantes e missionários, estudos de antropólogos, etnógrafos e musicólogos, pentagramas, desenhos e fotografias, assim como observações diretas tomadas por Ortiz, de modo a documentar os aportes africanos e afrocubanos ao folclore. Os demais livros formavam um tratado de cinco volumes dedicado ao estudo etnográfico da música, com o título de Los instrumentos de la música afrocubana. Divididos de acordo com suas características sonoras, os instrumentos foram examinados minuciosamente tanto em termos das suas raízes africanas, influências europeias e recriações cubanas quanto dos seus múltiplos usos no passado e no presente.
Como entendia a música folclórica cubana? Era essencialmente uma manifestação dos grupos negros da sociedade cubana: "música característica do stratum básico de uma dada sociedade", por criação própria ou por adaptação da alheia e incorporada ao costume.2 O seu juízo a respeito da sociabilidade da música africana e afrocubana rompia o senso comum que a confundia com a desordem, a ignorância e a irracionalidade. Definindo-a como democrática e comunitária - conjuntamente com o canto, o baile e a pantomima - era mais do que um elemento de distração típico da música dos brancos. Com base na antropologia e nas suas observações atribuía-lhe uma função essencial para a manutenção da coletividade: "é música para o trabalho e o prazer coletivos, para a produção econômica e a distribuição, para o governo e a guerra, para o templo e a magia, para a família e a escola, para o amor e a morte".3 Em suma, a música e demais expressões culturais afrocubanas eram elementos estruturantes da organização social da comunidade negra.
Segundo Ortiz, poucos anos antes teria sido escandaloso reconhecer a contribuição positiva da cultura negra para a formação da nacionalidade cubana, mas os tempos eram outros, oferecendo abertura para a compreensão desse fato. Em seu balanço do folclore afrocubano, via uma arte original com positivas contribuições humanas e estéticas capazes de serem vertidas na arte universal. Olhando para o futuro com otimismo, Ortiz acreditava que estava em curso no mundo uma revolução que poderia propiciar a compenetração de todos os valores musicais dos povos sob a forma de uma progressiva panmixia de artes, de cores e de culturas. Em suas palavras: "A mulatez vai mais além dos cruzamentos dos pigmentos, alcança a mistura das ideias, as emoções, as artes e os costumes".4
O conceito de transculturação é central da obra mais difundida de Fernando Ortiz, Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar, cuja amplitude de objetivos era sugerida pelo subtítulo - Advertencia de sus contrastes agrários, económicos, históricos y sociales, su etnografia y su transculturación. Na introdução à primeira edição, o antropólogo Bronislaw Malinowski refere-se ao encontro com Ortiz em Havana em 1929, no qual o autor cubano disse estar preparando um livro com um novo vocábulo técnico para substituir as várias expressões correntes - mudança cultural, aculturação, difusão, migração ou osmose de culturas - que considerava imperfeitas. O neologismo foi acolhido com entusiasmo por Malinowski, que redigiu um texto a respeito do conceito de transculturação como introdução ao livro. As elogiosas palavras emitidas por um dos mais renomados antropólogos da época, decerto contribuíram para a feliz fortuna acadêmica internacional da nova formulação do estudioso cubano.
Ortiz objetivava superar as limitações do conceito de aculturação corrente na antropologia anglo-saxônica, uma vez que ela concebia a mudança em um só sentido, ou seja, como aquisição integral de uma cultura diferente, processo no qual uma cultura menos potente seria assimilada pela mais potente. Em contrapartida, o cubano entendia que a perda de uma cultura era um fenômeno de parcial desculturação das diversas partes envolvidas, assim como a mescla resultante do contato gerava um novo fenômeno, a neoculturação. Em suma, o resultado do contato de uma ou mais culturas não era um processo unívoco, mas uma interação que originava algo inédito e diferente dos elementos originais em jogo.
"A verdadeira história de Cuba é a história de suas intrincadíssimas transculturações". Por meio dessa frase lapidar, Ortiz sintetizava o escopo do livro: explicar os variados e incessantes fenômenos de transmigração de povos e de transmutação de culturas, tarefa imprescindível para a compreensão da sociedade cubana nos seus mais diversos aspectos - econômicos, institucionais, éticos, religiosos, artísticos, linguísticos, psicológicos e sexuais. O processo histórico da ilha é caracterizado no livro como uma corrente incessante de imigrantes - por vontade própria ou pela força - sempre desterrados pela perda das suas referências culturais originais e em conflito com as condições da sociedade receptora. Tratava-se de um drama violento, uma epopeia que envolvia todos os personagens históricos, pois nas suas palavras, "acima ou abaixo, todos dividiram um mesmo ambiente de terror e de força: terror do oprimido pelo castigo, terror do opressor pela revanche; todos em processo doloroso de transculturação em direção a um novo ambiente cultural". O livro demonstra ademais que os componentes humanos participantes de tal processo não podiam ser reduzidos meramente a três entidades genéricas tais como índios, brancos e negros, pois estas categorias subdividiam-se em uma miríade de subgrupos étnicos e culturais provenientes da América, do Mediterrâneo, da África Subsaariana, da Europa continental, da Grã-Bretanha e mesmo do Extremo Oriente. 5
As duas atividades econômicas principais, a produção de tabaco e de açúcar, são analisadas em termos das técnicas, mão de obra e comercialização e como formadoras de dois universos contrastantes e ao mesmo tempo paralelos. O tabaco nativo é associado ao trabalho livre, à pequena propriedade, ao artesanato, à autonomia e à liberdade. Ao passo que o açúcar, um produto estrangeiro, é associado à escravidão, ao latifúndio, ao absenteísmo, à opressão, à produção em massa e ao capitalismo internacional. Por meio de uma argumentação histórica, Ortiz demonstra como a produção do tabaco e do açúcar para exportação moldou de forma única a sociedade cubana, entrelaçando-a com o restante do mundo por meio de um fluxo de trocas que incidiram tanto sobre Cuba quanto sobre diversos povos que de algum modo mantiveram contato com a ilha. Por um lado, a produção para exportação havia produzido a radical mudança da composição demográfica e das formas de trabalho em Cuba, assim como a formação de novos hábitos e expressões culturais resultantes da interação das populações de origem europeia, africana e americana. Por outro lado, a difusão mundial do açúcar e do tabaco cubana impulsionou o nascente capitalismo e introduziu novos hábitos de consumo. O tabaco, por exemplo, adquiriu diferentes usos e significados além-mar. Transformado em um bem mercantil, a função coletiva e religiosa desempenhada pelo tabaco entre os indígenas foi abandonada pelos europeus, passando a ter um uso preponderantemente lúdico e individual. O seu consumo foi condenado pela Igreja Católica e a Inquisição, que o associava aos heréticos rituais dos índios, ao passo que encontrou ardorosos defensores entre poetas, filósofos e comerciantes, que no final das contas venceram a contenda e contribuíram para a difusão do seu consumo em massa.
Diferentemente da maioria dos demais outros trabalhos voltada aos aspectos culturais do negro, Contrapunteo se sobressai pela perspectiva ampla, ao tratar a transculturação como fato total que articula a história das relações interétnicas aos fenômenos econômicos, políticos, sociais e culturais. A vitalidade da abordagem reside em tratar os fenômenos derivados do contato cultural de diferentes povos sem as limitações impostas pelo etnocentrismo e a perspectiva teleológica. O conceito ganhou tanto mais força quanto maior a crítica ao colonialismo, ao imperialismo e aos padrões homogeneizadores difundidos pelos países desenvolvidos depois da Segunda Guerra Mundial. Primeiramente foi utilizado pelo mexicano Mariano Picón-Salas, em uma obra clássica a respeito da história cultural hispano-americana colonial, publicada em 1944, para tratar os fenômenos de fusão dos elementos indígenas e europeus que levaram à criação de uma arte mestiça.
Apesar de reconhecido internacionalmente por especialistas de vários campos, o conceito de transculturação não foi adequadamente valorizado pelas ciências sociais do mundo anglo-saxão, as quais tem privilegiado o conceito de aculturação e de sincretismo.6 Apesar disso, os aportes do cubano foram aclamados por uma série de especialistas internacionais. Como reconhecimento de sua obra, Fernando Ortiz recebeu o título de Doutor Honoris Causa da Universidade de Columbia nas comemorações do seu bicentenário, em 1954. Para o antropólogo estadunidense Sidney Mintz, Ortiz foi o decano dos estudos afroamericanos por ter se antecipado aos antropólogos norte-americanos nesse tipo de estudos; e para o etnólogo francês Roger Bastide, o cubano não apenas foi o pioneiro, mas o "mestre".
A inovadora noção de transculturação permaneceu relegada a um segundo plano no mundo acadêmico durante anos até que reaparecesse com força. Em 1982, Angel Rama publicou o livro Transculturación narrativa en América Latina; em 1990, o mexicano Néstor García Canclini, propôs a expressão "culturas hibridas" para analisar a a dinâmica multicultural latino-americana; e em 1992, a norte-americana Mary Louise Pratt analisou os fenômenos de transculturação no que ela chamava "zonas de contato", espaços sociais onde culturas dispares se encontram, se chocam se entrelaçam umas com as outras. Nos anos recentes, com o avanço da globalização, a noção de transculturação tem sido uma fecunda fonte de inspiração para os estudos históricos, antropológicos e culturais internacionais. No caso da América Latina, a tese inscrita na noção transculturação, de que a sua história é fruto de um complexo cruzamento de populações, ideias, religiões e costumes originários de várias partes do mundo, tem alargado os paradigmas acadêmicos, ao apontar o papel dos fatores transnacionais sobre o que convencionalmente é definido como histórias e culturas nacionais.
Fernando Ortiz notabilizou-se por suas iniciativas para a promoção do conhecimento acadêmico e a difusão cultural, as quais concorreram para a formação de uma rede transatlântica de intercâmbios sob a sua coordenação. A vivência na Europa durante a juventude contribuiu para que construísse uma visão de mundo cosmopolita e um conjunto de relações intelectuais e profissionais que o acompanharam em toda sua trajetória. Imbuído de um espírito modernizador, lamentava o quadro de isolamento e de atraso de Cuba em relação à Europa e aos Estados Unidos. A superação da "modorra tropical" e da herança colonial dependia do estreitamento de laços de Cuba com as nações mais adiantadas de modo a colocá-la em dia com as conquistas dos diversos campos da técnica, da cultura e da ciência.
Seu empenho foi fundamental para a promoção das relações culturais e cientificas de Cuba, Espanha e Estados Unidos. Em 1926, Ortiz assume a presidência da Institución Hispano Cubana de Cultura, fundada com o apoio de empresários e personalidades do cenário cultural e intelectual da ilha. Também conhecida como Hispanocubana, a entidade juntava-se a outras existentes na Argentina, México e Uruguai, com o objetivo de estreitar as relações no âmbito hispano-americano por meio do intercâmbio de homens de ciência, artistas e estudantes, assim como pela manutenção de cátedras e a difusão cultural. A iniciativa representava uma tentativa de resistir às pressões da influência norte-americana sobre Cuba por meio da valorização dos laços históricos e dos interesses comuns entre a ilha, a Espanha e os países da América Latina.
Apesar dos laços familiares e acadêmicos com a Espanha, Ortiz repudiava o movimento pan-hispanista por sua propaganda do passado imperial e a retórica tutelar em relação às antigas possessões americanas. No entanto, admirava as forças progressistas e modernizadoras da sociedade espanhola, com as quais os cubanos poderiam firmar compromissos em torno do conhecimento, da arte e do trabalho. Por trás da iniciativa havia uma inspiração "regeneracionista", que evocava o movimento intelectual de mesmo nome formado na Espanha no final do século XIX, cujo espírito reformista Ortiz acreditava poderia colaborar para o progresso da nação cubana.
Uma série de ações de intercâmbio acadêmico foram organizadas entre a Hispanocubana e a Junta para la Ampliación de Estudios (JAE). Criada em 1907 pelo governo espanhol e presidida pelo Prêmio Nobel em medicina Santiago Ramón y Cajal, a JAE dedicava-se à formação de quadros científicos e intelectuais por meio do intercâmbio internacional de professores e bolsas para estudantes. Ortiz dedicou-se a organizar uma ampla rede para vincular diversas instituições das Américas, de modo a possibilitar a circulação de professores por vários países. Graças a tal empreendimento, uma série de cientistas, escritores e artistas espanhóis integraram essa rede acadêmica, transitando não só pelo Caribe e a América Latina, mas também os Estados Unidos. Foram realizadas, por exemplo, atividades conjuntas com o Instituto Hispânico da Universidade de Columbia, com a Universidade de Porto Rico e com a Institución Hispano Mexicana de Intercambio Universitário. Nessa primeira fase da Hispanocubana inúmeros nomes da ciência e da cultura espanhola participaram das atividades sob o seu patrocínio, a exemplo de Federico Garcia Lorca, Ramón Menéndez Pidal, Claudio Sanchez Albornoz, Fernando de los Rios, Maria de Maeztu, Luis de Zulueta, Gregorio Marañon, Luis Araquistain, Américo Castro, Blas Carreras, Gustavo Pittaluga, Fabra Rivas, José Casares Gil, entre muitos outros. Duas publicações também foram criadas para divulgar as atividades da instituição: Mensajes de la Institución Hispanocubana de Cultura (1928-1931) e Surco (1930-1931).
A participação de Ortiz em uma série de eventos acadêmicos internacionais foi outra dimensão da sua atividade voltada para a troca de conhecimentos científicos, a construção de redes intelectuais e a defesa de bandeiras progressistas. Em 1922, vai ao Congresso de Americanistas, em Roma; em 1928, integra a delegação cubana junto à Sexta Conferência Panamericana, ocasião na qual Ortiz intervém para a criação do Instituto Panamericano de Geografia e História; em 1930, participa do congresso da American Historical Association, em Boston; em 1943, representa seu país no Primeiro Congresso Demográfico Interamericano, realizado no México; em 1945, participa do Congresso Internacional de Arqueologia do Caribe; em 1949, concorre ao Congresso Indigenista Interamericano de Cuzco; em 1952, ao Congresso de Americanistas em Oxford, e ao de Antropologia e Etnologia em Viena.
Em 1954, Ortiz participa no Brasil de dois eventos promovidos no âmbito das comemorações do IV Centenário da fundação da cidade de São Paulo. Um deles foi o Primeiro Congresso Internacional de Folclore, cuja Comissão de Folclore e Educação, presidida pelo cubano, aprovou uma recomendação aos governos e universidades para apoiarem iniciativas de preservação, pesquisa e ensino das manifestações da cultura popular. O outro foi o XXXI Congresso Internacional de Americanistas, que sob a presidência de honra do sertanista brasileiro General Cândido Rondon, congregou representantes de 35 países, cabendo a Ortiz uma das vice-presidências e a coordenação da sessão de Estudos Afroamericanos.7
As atividades da Hispanocubana foram interrompidas pelos sobressaltos da vida política da ilha, abalada pela ditadura imposta pelo presidente Gerardo Machado, que levaram Fernando Ortiz ao auto exilio nos Estados Unidos, em 1931. Residindo em Washington, atuou como embaixador da revolução antimachadista até a sua queda em 1933. Superada a ditadura, a retomada das atividades da Hispanocubana foi marcada pela eclosão da Guerra Civil Espanhola. O evento repercutiu intensamente em Cuba em vista da enorme colônia de imigrantes espanhóis e dividiu a opinião pública em torno dos dois grupos conflagrados, os republicanos e os rebeldes nacionalistas. Comitês de solidariedade foram organizados para o envio de ajuda material e financeira aos republicanos e cerca de mil voluntários partiram para juntarem-se às Brigadas Internacionalistas contra os rebeldes.
Sob a direção de Ortiz, a Hispanocubana transformou-se em um centro de apoio aos exilados espanhóis que atuava em conexão com outras instituições latino-americanas, norte-americanas e europeias. A fixação dos exilados em Cuba deparou-se com dificuldades em vista do seu reduzido mercado de trabalho e da legislação trabalhista restritiva para os estrangeiros, obrigando a que uma parte dos exilados buscasse melhores condições em outros países das Américas. Por tais motivos, as instituições cubanas de solidariedade foram essenciais. Formaram uma rede de acolhimento que permitiu a manutenção dos exilados por meio de bolsas e subvenções para a realização de atividades acadêmicas tais como conferências e pesquisas em instituições culturais e universidades. Foram mantidas conexões com o México, onde uma instituição de ensino e pesquisa foi criada pelo governo de Lázaro Cárdenas para acolher os exilados, a Casa de España, convertendo-se posteriormente no atual Colegio de México. Para divulgar as atividades da Hispanocubana, Ortiz novamente criou uma revista para a divulgação das ações da entidade, Ultra (1936-1947), contendo os resumos das conferências, resenhas de livros, novidades científicas e atividades culturais cubanas, pois para Ortiz "ser cultos era a única maneira de ser livres".8
A maior parte dos exilados possuía curso superior e era integrada por profissionais, docentes e pesquisadores universitários, artistas, intelectuais e jornalistas. Para sua manutenção, a Hispanocubana promoveu várias atividades, a exemplo da criação da Escuela Hispanocubana Libre de La Habana e dos ciclos de conferências, dos quais participaram três centenas de palestrantes, entre 1936 e 1947. Com o tempo, os exilados integraram-se como profissionais e na universidade, desempenhando importantíssimo papel no desenvolvimento de áreas cientificas ainda incipientes em Cuba tais como a medicina, a exemplo de Gustavo Pittaluga, renomado pesquisador de hematologia e doenças tropicais que se radicou definitivamente na ilha. Na condição de presidente da Unión de Profesores Universitarios Españoles Emigrados, entidade fundada anteriormente em Paris, Pittaluga levou a cabo o seu primeiro encontro em 1943, de modo a congregar docentes espalhados por vários países. Reunidos para discutir os problemas da realidade espanhola e propor ideias para reconstruir a Espanha democrática, redigiram ao final um documento, a Declaración de La Habana, que ratificava o papel da ilha como um local da resistência internacional à ditadura franquista.
De antiga província ultramarina, mera fornecedora de tabaco e açúcar, Cuba havia se convertido em um dos principais locais de peregrinação dos exilados da hecatombe espanhola. Um espaço além-mar onde eles puderam encontrar apoio político, suporte material, vínculos intelectuais e de amizade para reiniciarem suas vidas.
A crítica à noção de raça e as iniciativas antirracistas fizeram de Ortiz um dos pioneiros nesse campo na América Latina. Suas primeiras críticas vieram à tona em 1910 na polêmica contra o pan-hispanismo ao questionar a existência de uma "raça hispânica", sob o argumento de que raça não era um conceito biologicamente consistente, mas antes um artefato intelectual.
Posteriormente, seus estudos e manifestações públicas a respeito da condição do negro apenas reforçaram os seus argumentos antirracistas e seu protagonismo em favor da igualdade do gênero humano. Em 1929, em uma homenagem recebida em Madri, discursou condenando não só a tese da raça hispânica, assim como todo conceito de raça, afirmando seu caráter falso, estático e dissociador, em contraste com a noção de cultura, definida como dinâmica, universal e capaz de agregar os povos.
Nos anos trinta, a criação da Sociedad de Estudios Afrocubanos contribuiu não só para estudo do negro, mas também para formular propostas para a sua integração. Como resultado, a Constituição Cubana de 1940 passou a declarar ilegal e punível toda discriminação por motivo de sexo, raça, cor ou classe. No mesmo ano, uma resolução foi aprovada pelo VIII Congresso Científico Panamericano, celebrado em Washington, por sugestão de Fernando Ortiz, na condição de delegado de Cuba, declarando que a antropologia negava apoio científico à discriminação de qualquer grupo social, linguístico, religiosos ou político, sob pretexto de ser um grupo racialmente inferior.
Por sua vez, no Primeiro Congresso Demográfico Interamericano foi acatada sua proposta de resolução para banir o vocábulo raça dos documentos oficiais governamentais. Para incrementar o estudo das populações afroamericanas e a defesa da igualdade étnica foi ainda aprovada a criação de um Instituto Internacional de Estudios Afroamericanos. Com sede no México e sob a direção de Fernando Ortiz, teve a participação de personalidades científicas de diversos países americanos. Tais decisões em favor da igualdade acabaram por repercutir na conferência de criação da Organização das Nações Unidas, em 1945, entidade que entre outros objetivos buscava fomentar o respeito aos direitos humanos e as libertadas fundamentais de todos, sem distinção de raça, sexo, idioma ou religião.
A obra mais sistemática de crítica ao racismo veio à luz em 1946 com a publicação de El engaño de las razas. Escrito no calor do fim da Segunda Guerra Mundial e da denúncia do Holocausto, o livro representava uma resposta aos efeitos deletérios da noção de raça para o bem estar da humanidade. Era um manifesto de defesa da igualdade humana em que Ortiz rebatia os argumentos das teorias raciais de base biológica, psicológica e antropológica, mostrando que eram frutos do racismo contemporâneo a serviço da opressão de determinados grupos e interesses. Afirmando o caráter universal da mestiçagem, assinalava que ela era essencial para a compreensão da história do conjunto dos países americanos em termos dos seus componentes étnicos e da sua recíproca transculturação. A obra constituiu tanto uma crítica aos supostos fundamentos científicos do conceito de raça quanto uma defesa ética e moral da dimensão universal do ser humano. A veemente condenação do racismo e a defesa do que chamava a "desracialização da humanidade" outorgaram ao livro um lugar de destaque internacional em um contexto histórico em que o preconceito racial todavia encontrava respaldo legal em várias partes do mundo. Não por acaso o livro foi saudado pelos setores que combatiam o racismo nos Estados Unidos, ressaltando a solidez dos seus argumentos e sua contribuição para superar o flagelo do ódio e da segregação racial.
A vida e a obra de Fernando Ortiz deixaram um inestimável legado tanto para a compreensão das sociedades americanas quanto para a defesa da igualdade humana e da liberdade política. Cosmopolita por vocação, foi responsável por iniciativas que visaram o conhecimento recíproco dos diferentes grupos étnicos, a solidariedade internacional e a troca de experiências entre personalidades de diversas nacionalidades, tendo como aspiração a concórdia e a integração. Como jornalista e intelectual insurgiu-se contra o racismo, o neocolonialismo e a submissão aos esquemas mentais importados. Por meio das inúmeras entidades e revistas que criou e dirigiu, Ortiz interveio em favor do desenvolvimento da cidadania, da educação, da ciência e da cultura.
Tendo iniciado suas pesquisas com premissas racialistas herdadas do ambiente intelectual europeu, soube evoluir em direção a uma abordagem crítica que se tornou uma referência para os estudiosos dos fenômenos étnico-raciais americanos. Por meio das pesquisas a respeito da história, dos hábitos e da cultura do negro, contribuiu para mostrar o seu papel como um dos pilares da sociedade de seu país e da sua identidade nacional, que ele chamava de cubanidad.
O estudo do negro e das raízes culturais cubanas desdobrou-se na formulação de uma nova perspectiva sintetizada no conceito de transculturação. Ortiz entendia que os fenômenos históricos cubanos não podiam ser adequadamente compreendidos nos limites do Estado nacional, pois ao longo do tempo a ilha havia sido povoada por fluxos migratórios europeus, africanos e asiáticos que se amalgamaram formando uma nova sociedade. Mais do que um fenômeno exclusivamente cubano, pensava as fusões ou mestiçagens como a marca de todas as sociedades americanas: de corpos, ideias e produtos; de línguas, costumes e culturas; de valores, vícios e paixões. Ao elaborar o conceito de transculturação e materializá-lo em um conjunto de obras, Ortiz foi um precursor da Atlantic History9, uma vez que os fenômenos culturais, políticos, econômicos e sociais deveriam ser estudados nas conexões concretas que uniam o processo histórico dos povos da América, da África e da Europa.
Talvez não seja exagero afirmar que a transculturação se confundiu com a própria biografia de Ortiz, cubano de raízes espanholas que viveu com toda intensidade o cruzamento das culturas atlânticas.
ORTIZ, Fernando. Principi i Prostes: folleto de artículos de costumbres en dialecto menorquín, 1895.
ORTIZ, Fernando. Los bailes y el teatro de los negros en el folklore de Cuba, p. XV.
ORTIZ, Fernando. Op. cit., p. 3.
ORTIZ, Fernando. Op. cit., p. 453; Los instrumentos de la música afrocubana, Vol. I, p. 10.
ORTIZ, Fernando. Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar, p. 95-96.
IBARRA, Jorge. La herencia científica de Fernando Ortiz, p. 1349.
O ESTADO DE S. PAULO, 24/08/1954, p 14; 25/08/1954, p. 11.
NARANJO, Consuelo; PUIG-SAMPER, Miguel Ángel. El legado hispano y la conciencia nacional en Cuba, p. 808.
MYERS, Jorge. Uma "Atlantic History" avant la lettre, p. 745-770