Cartografias transatlânticas da música popular nas américas
A música popular é frequentemente analisada a partir de “gêneros musicais” nacionais. A historiografia...
Maracatus são grupos afro-brasileiros que desfilam no carnaval do Recife com música e dança e uma corte com rei, rainha, príncipes e outros personagens. Com esta acepção, a palavra tem registro em fontes escritas desde o final do século XIX.
Ao longo do século XX, entre altos e baixos, os maracatus passaram a ser considerados uma das manifestações culturais populares emblemáticas do estado de Pernambuco, na região Nordeste do Brasil, e de sua capital, Recife.1 No início do século XXI, ocorreu forte difusão dos maracatus para fora do estado, seus ritmos e desfiles sendo emulados por grupos de música comunitária em diversas cidades do Brasil, da Europa e da América do Norte.
Na segunda metade do século XX, definiram-se no carnaval pernambucano dois tipos de maracatu, um deles sendo chamado de "maracatu de baque-solto" ou "maracatu rural", e o outro de "maracatu de baque-virado" ou "maracatu-nação". A separação entre os baques "solto" e "virado" diz respeito, entre outras coisas, às respectivas músicas, cuja diferença é facilmente perceptível.
Neste texto nos ocupamos exclusivamente do segundo que, dos dois tipos, é o mais conhecido e o mais obviamente "transatlântico", tanto por suas conexões explícitas com a diáspora africana, quanto por servir de modelo à internacionalização contemporânea do maracatu.
O nome "maracatu-nação" sinaliza a conexão deste tipo de maracatu com a diáspora africana. Em 2009, esta designação foi escolhida por maracatus da região metropolitana de Recife para a criação da associação que os reuniu formalmente, a AMANPE, ou "Associação dos Maracatus-Nação de Pernambuco". O uso da palavra "nação" entre maracatus remete ao conhecido uso desta palavra no contexto do escravismo nas Américas.
Como se sabe, durante a vigência do tráfico, escravocratas portugueses utilizaram a palavra "nação" para designar procedências de negros escravizados trazidos da África. Falar em nação "nagô", "gêge" e "mina", por exemplo, remetia àqueles provenientes da África Ocidental; nações "congo", "angola" e "cabinda", entre outras, designavam proveniência da África Centro-Ocidental. A relação entre as "nações" e os gentílicos usados na África em situações menos determinadas pelo contexto escravista podia ser bastante tênue. O que contava para definir a "nação" de um grupo de escravos era, principalmente, o porto africano onde embarcava.
Uma vez no Brasil, era comum que a "nação" fosse incorporada ao nome cristão dos escravos—por exemplo, Joaquim Cabinda, Maria Conga etc. Além disso, nos momentos de folga e dias santificados, nas atividades festivas permitidas aos escravos, eles eram agrupados por "nações". Elas constituíram um dos princípios organizativos do tempo não laboral dos escravos, contando em alguns casos com uma hierarquia própria, cujo expoente costumava ser um "rei" eleito. A eleição e o coroamento de reis e rainhas negras ocorreram em vários pontos das Américas escravistas. O testemunho mais antigo destas práticas na América Portuguesa é, possivelmente, o do administrador colonial francês Urbain Souchu de Rennefort, em meados do século XVII:
"Neste duro cativeiro, eles não deixam de se divertir algumas vezes. No domingo dia dez de setembro de 1666, eles fizeram festas em Pernambuco. Depois de ir à Missa em grupo de aproximadamente quatrocentos homens e cem mulheres, elegeram um Rei e uma Rainha, e andaram pelas ruas cantando, dançando e recitando versos que tinham feito, precedidos por oboés, trombetas e pandeiros. Estavam vestidos com roupas de seus senhores e senhoras, com correntes de ouro e brincos de ouro e de pérolas.2"
O viajante francês nada diz sobre "nações", mas deixa clara a conexão entre a eleição dos reis negros e o catolicismo. A conversão do rei do Congo ao catolicismo em 1491, pouco depois dos primeiros contatos com os portugueses, foi um evento marcante das relações entre este reino, que constituía a estrutura política mais poderosa da África Centro-Ocidental dos séculos XV ao XVII, e a expansão colonial portuguesa.
Aquela conversão levou à criação de um catolicismo congolês com características próprias, relacionadas ao sistema cultural então vigente na África Centro-Ocidental. A maior parte da elite congolesa se fez batizar, adotou nomes cristãos e renegou sacerdotes e objetos de cultos anteriores (que os portugueses chamavam de "fetiches"). Reis do Congo foram coroados por padres católicos, desde o final do século XV até o século XIX. Também o foram vários outros soberanos da região que lhes deviam vassalagem, ou eles submetidos naquele período. Em contato ora de aliança, ora de conflito com os portugueses, o Reino do Congo representava, na África Centro-Ocidental dos séculos XV a XVII, a epítome da realeza africana em seu auge. A difusão, na América Portuguesa e em seguida no Brasil, da coroação de "reis de Congo" entre os escravos, pode ser atribuída à fama e à memória deste poderoso reino.3
Pesquisadores brasileiros de meados do século XX, como César Guerra-Peixe e Luís da Câmara Cascudo, viram nos reis e rainhas de maracatu heranças dos reis de Congo. A historiografia mais atual mostra, no entanto, que não se pode traçar uma relação genealógica linear entre as coroações de reis negros dos séculos XVII-XIX e os maracatus. A razão para tanto é que, quando em meados do século XIX a palavra "maracatu" começa a aparecer nos documentos históricos, surge de maneira independente das referências contemporâneas aos reis do Congo e demais reis de nações africanas.
Um dos primeiros registros conhecidos da palavra "maracatu" aparece no Diário de Pernambuco de 22 de dezembro de 1840. Neste dia, um cidadão de Rio Formoso, então vila (e atual município) do litoral sul de Pernambuco, publicou no jornal da capital uma queixa sobre a política local. Denunciava procedimentos irregulares ocorridos na constituição da mesa para as eleições naquela localidade. A mesa teria sido constituída, segundo ele, "no meio da mais completa anarquia, contra todas as solenidades exigidas na lei." Conclui seu artigo escrevendo que tal mesa eleitoral, "a não conter pessoas tão respeitáveis, bem se podia denominar—mesa de Maracatu..."
O texto não permite perceber o que se entendia então por "maracatu", mas fica bem claro que a palavra tem ali função pejorativa, visando ridicularizar os adversários políticos do articulista. "Maracatu", em todo caso, sugeria ao escriba "completa anarquia" e pouco respeito. E este atribuía aos leitores a mesma concepção, já que esperava ser entendido.
Na segunda metade do século XIX, avolumam-se as referências ao "maracatu" na imprensa de Recife. Elas passam a deixar claro que, o que quer fosse o "maracatu", era algo que envolvia som e danças, despertando várias queixas de vizinhos que se sentiam incomodados pelo volume e pela persistência dos batuques. Lê-se, por exemplo, no Jornal do Recife, em 19 de outubro de 1878:
"Moradores das ruas do Lima e Fundição, em Santo Amaro, pedem providências a quem competir para por termo a um infernal maracatu que ali se reúne, nos domingos, desde as 3 horas da tarde até 7 da noite, incomodando os moradores circunvizinhos [...] com o barulho dos zabumbas, que são em número de dez ."
Dez anos mais tarde, o incômodo perdurava, e a menos de 3km dali, no bairro vizinho de Santo Antônio. A este respeito, lê-se no mesmo jornal, em 11 de março de 1888:
"Chamamos atenção do Dr. Chefe de Polícia para um maracatu existente à rua do Duque de Caxias, que leva num batuque infernal até altas horas da noite, e vem assim incomodando a vizinhança."
Em alguns casos, os leitores queixam-se também de que as danças do maracatu levam à ocorrência de conflitos perigosos, podendo haver derramamento de sangue. Não é surpresa portanto que a palavra seja encontrada em documentos administrativos ligados à manutenção da ordem pública, como leis e correspondências entre representantes da polícia. Uma lei promulgada em Olinda, em 1861, visando reprimir "Vozerias, obscenidades e indecências praticadas nos lugares públicos" proíbe "as danças dos pretos escravos, ou maracatu, pelas ruas e praças desta cidade". Em 1874, o delegado de Recife publica um despacho contrário à autorização solicitada para ensaios: "os ensaios de que ora se trata [atraíam] grande quantidade de escravos e desordeiros [...] o divertimento ou brinquedo chamado Cabinda Velha [...] nada mais é do que um maracatu, nos dias de carnaval".4
Quem associa o nome "Cabinda Velha" a "um maracatu, nos dias de carnaval", no documento de 1874, é o delegado que lhe recusa o direito aos "ensaios". Outros documentos do período sugerem que os maracatus seriam mais aceitáveis no carnaval do que em outras épocas do ano. "Estamos no carnaval?", pergunta ironicamente um missivista que se queixa dos maracatus nos anos 1870. No final da década de 1880, no entanto, o nome "Cabinda Velha" ou "Cambinda Velha" começa a aparecer na imprensa como aquele de um maracatu que recebe autorização da polícia para sair no carnaval. De fato, quando jornais pernambucanos começam a publicar listas de grupos que recebem autorização para o carnaval, vários maracatus figuram nas mesmas.
Em 1908, Pereira da Costa inclui em seu livro Folclore pernambucano5 uma descrição do maracatu que se tornou clássica. O maracatu em questão é justamente o "Cabinda Velha". Guerra-Peixe, em sua obra seminal Maracatus do Recife, aventa, com base no trabalho da musicóloga Oneyda Alvarenga, a hipótese de que "cambinda" seria a maneira mais antiga de denominar os maracatus. Em apoio a esta hipótese, cita letras de toadas do maracatu Elefante (com o qual realizou sua pesquisa), nas quais a agremiação é chamada de "Cambinda Elefante". Ele também traz informações sobre um maracatu chamado "Cambinda Nova", na cidade de Caruaru (100km a oeste de Recife).6
Muitos maracatus pernambucanos têm, até hoje, o nome "Cambinda" seguido de um qualificativo. Entre os maracatus-nação ativos em Pernambuco em 2019, temos "Cambinda Estrela" e "Cambinda Africana". Entre os maracatus de baque-solto, "Cambinda Brasileira" e "Cambinda Nova".
Em texto sobre os maracatus de Alagoas (estado vizinho, ao sul de Pernambuco), o folclorista Théo Brandão chega a afirmar que "cambinda" é um sinônimo de "maracatu". Para sustentar esta ideia, cita letras de toadas e vários nomes de maracatus alagoanos como "Cambinda do Porto", "Cambinda Nova", "Cambinda de Ouro".7 No mesmo estado há também referências a grupos de "cambindas" que não são considerados maracatus, mas que guardam muitas semelhanças com estes últimos: "Cambinda Nova", no município de Porto Calvo, e as "Cambindas do Nino", de Passo de Camaragibe. Estes grupos também desfilam com rei, rainha e corte.
No estado vizinho de Pernambuco ao norte, a Paraíba, também existem grupos chamados "cambindas". São eles: a "Cambinda Brilhante", de Lucena (no litoral), e a "Cambinda Nova", de Taperoá, no Cariri paraibano. Estas cambindas paraibanas desfilam em cortejo com rei, rainha, corte e calunga—ou seja, têm muitos pontos em comum com os maracatus. Segundo Oneyda Alvarenga, a Missão de Pesquisas Folclóricas de 1938 descreveu cambindas na Paraíba, considerando-as equivalentes aos maracatus de Pernambuco.8
"Cabinda" é uma região atlântica da África Central e, atualmente, uma das províncias da República de Angola sob forma de enclave na República Democrática do Congo. Quando os portugueses chegaram à foz do rio Congo, no final século XV, encontraram na margem norte os pequenos reinos de Ngoyo (ou Angoy), Cacongo e Loango, que como outros na região, prestavam vassalagem ao Rei do Congo. A baía de Cabinda fica na região do antigo reino de Ngoyo. No início do século XVII, o porto de Cabinda só servia "para aguada das naus que da Espanha e de S. Tomé por aí passam".9 Em meados do século XVIII, porém, Cabinda já havia se transformado em importante fornecedor de escravos da região ocidental ao norte do rio Zaire, com destino ao Brasil. Os escravos embarcados neste porto eram conhecidos na América Portuguesa e, em seguida, no Brasil como "Cabindas" ou "Cambindas". Eram ditos de "nação cabinda" (ou "cambinda").
O uso da palavra "cambinda" não é, evidentemente, o único elemento que relaciona os maracatus à história do tráfico humano no Atlântico Sul (e mais especificamente, na África Centro-Ocidental). Outro elemento significativo é o gonguê, sino metálico de batente externo, instrumento de grande importância no acompanhamento musical dos maracatus.
Certos sinos de ferro portáteis—simples, como os gonguês dos maracatus, ou duplos, como os agogôs das escolas de samba—foram importantes emblemas da realeza na África Central. Estes sinos africanos foram chamados por muitíssimos nomes diferentes, mas segundo José Redinha, ao menos na metade norte de Angola, seu nome nativo mais comum, quando duplos, era "gongue".
Redinha o escreve sem acento, o que deixa dúvida sobre o padrão de acentuação e de cor tonal vocálica usada na versão angolana da palavra. Na pronúncia atual em Pernambuco o "ê" final é fechado e acentuado.
Sobre seu fabrico, escreve Redinha: "As campânulas não são fabricadas de forma inteiriça, mas em duas metades que caldeiam por uma orla ou bainha rebaixada, que contorna cada uma das campânulas.10" Esta forma de se fabricar, dobrando uma folha de ferro e juntando os dois lados através de uma bainha rebaixada de contorno (à maneira das bordas de um pastel brasileiro), foi identificada por Jan Vansina como uma marca dos sinos de ferro reais centro-africanos.11
A conexão mais óbvia entre sinos de ferro e poder político-militar advém do fato que o domínio da metalurgia serve também para a construção de lanças e outras armas. A expansão banto na África Central certamente esteve ligada a esta questão, mas sem dúvida deve mais às lanças do que aos instrumentos musicais. Segundo Vansina, porém, o tipo de sino mencionado—que chama de flange-welded—é só uma entre inúmeras possibilidades de se fazer um sino de ferro portátil de batente externo, e não a mais óbvia. O fato de que exatamente este modelo seja encontrado regularmente, em uma área geográfica ampla, em conexão com a autoridade militar e política, seria um indício de transmissão cultural.
Luís da Câmara Cascudo, em sua viagem à África no início dos anos 1960, observou em Cabinda uma coleção de tampas de panela esculpidas.12 O antropólogo brasileiro Carlos Serrano estudou a mesma forma de arte entre os Bawoyo, em pesquisas feitas naquela região nos anos 1970.13 Ambos os autores explicam que os significados das tampas esculpidas (que eles chamam de "testos") são interpretados através de provérbios associados. Ambos mencionam testos que exibem instrumentos musicais, entre eles o sino duplo (que serve como alça para destampar a panela).
Cascudo transcreve assim o provérbio associado e a respectiva explicação: "Ngonge, mbembo fumo. Ou seja: a campainha, ngonge, é a voz anunciadora das ordens ou da presença do rei". Serrano, por sua vez, transcreve o provérbio para a representação do sino duplo em um outro testo:
"Ono ke ngonge nfumu nene Ono u kambua ngonge chi nfumu nenê ko"
"Quem tem duplo sino é chefe grande Quem não tem duplo sino não é chefe grande"14
Ambos os autores citados grafam ngonge, mas o segundo "g" da palavra deve ser lido em português como uma oclusiva, tal como em "gonguê".15
A diferença mais importante entre os ngonge ou gongue da África Centro-Ocidental e o gonguê pernambucano é que o primeiro é duplo, e o último, simples. Visualmente, os gonguês dos maracatus são mais parecidos com outros sinos africanos associados à realeza, os sinos simples gan da corte do rei Gbèfa de Porto Novo (República do Benin), estudados por Gilbert Rouget.16 Os sinos gan, como os ngonge, são sinos de ferro, portáteis, percutidos com batente externo de madeira, e flange-welded, correspondendo assim inteiramente à morfologia descrita por Vansina.
Também confirmam a tese do historiador por serem sinos próprios de uma corte real, mas são sinos simples e não duplos. No maracatu, o padrão rítmico mais conhecido do gonguê usa dois sons com alturas diferentes, que os tocadores obtêm percutindo mais perto da base ou mais perto da boca do instrumento.
A mais célebre rainha de maracatu do século XX foi Maria Júlia do Nascimento, conhecida como "Dona Santa", nascida no Recife, em 1877, e falecida na mesma cidade, em 1962. Quando Dona Santa morreu, todos os objetos de seu maracatu, incluindo roupas, adereços e instrumentos musicais foram doados ao Museu do Homem do Nordeste, em Recife. Entre os instrumentos musicais há um gonguê. Trata-se de um sino simples, de ferro, feito tal como descrito por Jan Vansina, com as bordas rebaixadas.
Em sua juventude, Dona Santa foi rainha do maracatu Leão Coroado, nação até hoje em atividade na cidade. Mais tarde abandonou este maracatu para se tornar, em 1947, a rainha do maracatu Elefante, à frente do qual permaneceu até morrer. Foi como rainha desta nação que alcançou prestígio notável, tanto entre maracatuzeiros, como na sociedade recifense em geral, obtendo também notoriedade nacional. Em 1947, foi tema de reportagem no Rio de Janeiro, então capital do país, nas páginas da maior revista semanal da época, O Cruzeiro. Nos anos seguintes, foi fotografada por alguns dos mais importantes fotógrafos então atuantes no Brasil, os franceses Pierre Verger e Marcel Gautherot, e o recifense Lula Cardoso Ayres.
Mais de dez anos após seu falecimento, ela foi tema de samba enredo de uma importante escola de samba do Rio de Janeiro, o Império Serrano ("Dona Santa, Rainha do Maracatu", terceiro lugar no desfile principal das escolas de samba, carnaval de 1974). Nos dias atuais, a memória de Dona Santa continua sendo reverenciada em canções populares e em toadas das nações de maracatu. Seu prestígio contribuiu para que o papel de rainha se tornasse, no maracatu, mais relevante que o de rei.
Depois de Dona Santa, mas sem projeção comparável fora do meio dos maracatus, a mais importante rainha foi Maria Madalena dos Santos, nascida na cidade do Recife no início do século XX e falecida em 2000.
Madalena (como era chamada) foi a princípio rainha, no Leão Coroado, de onde saiu no início dos anos 1960 para reinar no maracatu Indiano, nele permanecendo por quase vinte anos. No início dos anos 1980, ela deixou o maracatu Indiano e, por alguns anos, se tornou, por assim dizer, uma rainha sem reino—ou seja, continuou sendo vista como "rainha" pelos praticantes e aficionados do maracatu, não estando porém ligada a nenhuma nação, o que sugere, na prática, uma dissociação entre a função de rainha e a instituição na qual esta função se exerce. Em 1985, Madalena passou a ser rainha do maracatu Elefante, posto que ocuparia até seu falecimento.
Em entrevista conferida à imprensa em 1979, Madalena relata um encontro que teria tido com Dona Santa pouco antes de seu falecimento.17 Segundo conta, corriam boatos de que Dona Santa não gostava dela. Para desfazer os mal-entendidos, resolveu comparecer, com seu maracatu, à festa de aniversário do maracatu Elefante:
"Quando fui me aproximando da casa dela, foi apontando um grupo do maracatu Elefante. Ela tinha mandado o Rei de Congo com outra dama. Quer dizer, estava mandando me buscar. Fiquei mais calma, agarrei o cetro e a espada e fui até lá".
"Na presença de Santa, Madá fez as devidas evoluções, relatadas por ela, como dar a queda, cruzar a espada com o rei, que podem ser traduzidas como uma saudação respeitosa à mais antiga rainha de maracatu do Brasil. Santa [...] entendeu a mensagem reverente de Madá e entabulou a conversa com ela. [...] Estava desfeita a intriga [...] [Dona Santa] ali mesmo passaria a coroa—verbalmente, apenas—à rainha do Estrela Brilhante [Madalena], com a significativa promessa de sacramentar a sucessão na frente da igreja do Rosário.18"
O relato sugere que o papel de rainha envolvia (como ainda envolve) legitimação, transmissão ritualizada e comportamentos codificados. As "devidas evoluções" relatadas por Madalena, ao mesmo tempo em que usam linguagem gestual do candomblé ("dar a queda"), sugerem também os rituais de "embaixadas" tão presentes nas tradições de congados estudados por folcloristas ao longo do século XX e relacionados às embaixadas (estas, plenamente políticas) trocadas entre o Reino do Congo, seus reinos vassalos e as potências europeias (incluindo o Recife holandês) entre os séculos XV e XVII. Aponta no mesmo sentido o uso da expressão "Rei de Congo" e não "rei do maracatu" na reportagem citada (embora não possamos ter certeza se o uso dessa expressão se deva à Madalena, ou à jornalista que escreveu a matéria).
Talvez nunca venhamos a saber se de fato existiu a tal "promessa" de Dona Santa de consagrar pessoalmente Madalena como rainha, em frente à igreja de Nossa Senhora do Rosário de Recife, já que ela faleceu antes de poder cumpri-la. No entanto, a prática de a rainha mais antiga coroar a mais nova é atestada entre os maracatuzeiros. Nos tempos coloniais, coroações eram feitas por padres, mas ao longo do século XX, as coroações de rainhas do maracatu foram oficiadas principalmente por outras rainhas, ou por sacerdotes do candomblé. Há referência à coroação, em 1922, da rainha do maracatu Dois de Ouro pela rainha do maracatu Leão Coroado na frente da Igreja de Nossa Senhora do Rosário.19 Em alguns casos, fica claro que a coroação de reis e rainhas no maracatu é um processo que envolve o catolicismo, o candomblé e também o reconhecimento pelos pares. Marivalda Maria dos Santos (nascida em 1953), rainha do maracatu Estrela Brilhante desde meados dos anos 1990, faz um relato instrutivo nesse sentido:
"Quando eu precisei de me coroar (sic), quem tinha que me coroar já era outra rainha, né? Aí eu fui lá na casa dela (de Madalena), mas ela tava cansada, já não andava mais, numa cadeira de rodas. Aí ela disse a mim que eu tinha que fazer o obori, raspar [...] para depois entrar na coroação. Aí pronto, eu passei dois anos, foi o tempo que ela faleceu [...]. Eu fiquei sem ninguém para fazer minha coroação. Aí eu me lembrei de Elda, que é [rainha do maracatu] Porto Rico [...] Aí eu fui na prefeitura [da cidade do Recife] falando em fazer a coroação. [...] porque o padre mesmo, na igreja, os de agora não faz mais (sic) [...] [O padre] disse que podia fazer na frente da igreja, mas dentro não dava para ser. Então eu falei com Elda, com a prefeitura e fizemos todo aquele processo, e eu fiz minha coroação, mas eu passei 90 dias de quarto, entendeu, pra fazer minha coroação. [...] fiz todo meu preparativo, raspagem e tudo, dei minhas obrigações todas para poder receber a coroa.20"
O relato de Marivalda explicita a multiplicidade de atores necessários para a chegada à coroação. Convoca-se a rainha já coroada (se possível, Madalena, e na sua ausência, Elda), mas também os sacerdotes do candomblé, com todos os seus rituais ("fazer o obori, raspar", rituais relativos à consagração da cabeça na religião dos orixás); finalmente, apela-se à prefeitura e à igreja, para autorizarem o uso do espaço público em frente à igreja de Nossa Senhora do Rosário.
Outro caso interessante é o de Nadja Cristina Castro, rainha do maracatu Leão da Campina.
Assim como Marivalda, Nadja também já exercia a função de rainha do maracatu, antes de passar pela cerimônia da coroação, ocorrida em 2004. Já ficou claro que rainhas de maracatu exercem a função antes de passar pelos ritos de coroação. Estes últimos, no entanto, são indispensáveis para que o status de rainha seja "pleno", ou seja, para que se reconheça publicamente que a pessoa coroada é, em algum sentido, rainha de fato e em tempo integral, e não apenas no tempo e nas circunstâncias do desfile do maracatu. Em entrevista realizada pela equipe de Isabel Guillen, Nadja nos conta:
"Quem me coroou foi minha mãe de santo, com a presença da última rainha coroada, que hoje é falecida, Ivanise, do [maracatu] Encanto da Alegria. E a percussão que foi convidada foi o mestre Walter com a maioria dos batuqueiros juvenis, que estavam presentes, do Estrela Brilhante, na minha coroação".21
Nadja deixa subentender o prestígio de todos os personagens envolvidos na cerimônia para que ela surtisse o efeito desejado, e que ela pudesse ser plenamente reconhecida diante das outras nações e entre os seus pares, como uma rainha de fato do maracatu. Cada um dos participantes convidados emprestava seu prestígio relacionado a diferentes aspectos do mundo das nações de maracatu: a religião, a comunidade e a música. Ao final, Nadja podia enfim dizer em alto e bom som: "Eu sou rainha. Eu sou a mãe que toma conta da nação".
Embora nem todos os maracatus-nação hoje em atividade contem com rainhas ou reis tão engajados e respeitados como Marivalda e Nadja (ou ainda como Elda do Porto Rico), a presença de uma figura real que imponha respeito, não só nos desfiles, mas também fora deles, é algo que conta muito para o prestígio das nações de maracatu, pelo menos desde os tempos de Dona Santa. Este prestígio efetivo da rainha ou do rei, associado, como vimos, a um percurso religioso, é um dos fatores que diferencia os maracatus-nação dentro do contexto mais amplo dos grupos de música percussiva em Recife, como veremos a seguir.
Ao longo do século XX, músicas, danças e cortejos de maracatu de Pernambuco atraíram a atenção e o interesse de músicos profissionais e demais artistas. Canções populares e obras sinfônicas foram gravadas com inspiração no maracatu. Mas foi somente no final dos anos 1980 que jovens de Recife e Olinda criaram, com objetivos profissionais, um grupo de dança e música organizado sonora e cenicamente à maneira de um maracatu: surgia assim o Nação Pernambuco. Seus fundadores, Bernardino José e Amélia Veloso, tinham participado de uma companhia de dança folclórica, o Balé Popular do Recife, e desenvolveram uma "estilização" do maracatu voltada para a criação de espetáculos cênicos.
Em 1989, o grupo lançou o LP Batuque da Nação, o primeiro inteiramente consagrado à música dos maracatus, e realizou um espetáculo de mesmo nome. O disco teve ótima repercussão e contribuiu para integrar o Nação Pernambuco na onda de interesse da classe média pela cultura popular pernambucana nos anos 1990, cuja maior expressão foi o movimento mangue beat, iniciado pela banda Chico Science & Nação Zumbi em 1991. Não é por acaso que a palavra "nação" também aparece com destaque no nome desta importante banda. Poucos anos depois, a projeção do Nação Pernambuco o levaria à realização de turnês internacionais (pela Europa, pela China e pelos Estados Unidos). Em uma das viagens à Europa, o grupo permaneceu em cartaz por três meses na conhecida sala de espetáculos Divan du Monde, em Paris, realizando 34 apresentações ao total.
O Nação Pernambuco participou, assim, de forma significativa, de um movimento mais geral de difusão do maracatu para além dos espaços estabelecidos ao longo do século XX. Em meados dos anos 1990, grupos de classe média e universitários de Recife e Olinda começaram a se reunir para "tocar maracatu". Embora pudessem usar a palavra "nação" sem maiores compromissos nos nomes de seus grupos, havia por parte destes jovens a clara consciência de que o que faziam não era propriamente "maracatu-nação". Esta expressão designava para eles uma manifestação cultural que ia muito além da música, da dança e dos cortejos, envolvendo dimensões religiosas e rituais como as que foram brevemente evocadas na seção anterior deste artigo. Para marcar a diferença, estes novos grupos eram denominados como "grupos percussivos de maracatu".
Tipicamente, um grupo percussivo de maracatu se reúne uma vez por semana, sob liderança de um percussionista experiente, que recebe remuneração por parte dos integrantes, e os ensina como manejar os instrumentos, escolhe e/ou compõe as toadas a serem cantadas e faz arranjos para o grupo. Os primeiros líderes de grupos percussivos tinham adquirido experiência como integrantes do Nação Pernambuco ou, em outros casos, como batuqueiros de nações de maracatu como o Estrela Brilhante e o Porto Rico, pioneiras em admitir participantes de classe média em seus desfiles.
Divergindo, tanto em termos geográficos como em termos de composição racial e econômica, dos tradicionais maracatus-nação afro-recifenses, esse movimento de difusão do maracatu começou na própria cidade de Recife e logo ganhou outras capitais brasileiras, para alcançar mais tarde a Europa e os Estados Unidos. Com isso, grupos de maracatu passaram a integrar, desde meados do ano 2000, o panorama musical de Paris, Londres e Nova York (além de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte), tal como já o faziam, nestas e em outras cidades, escolas de samba, grupos de capoeira, steel-bands, fanfarras, corais e tantas outras formas coletivas e festivas de se fazer música. Nos próximos parágrafos, vamos tratar do caso específico da difusão do maracatu na França.
Os primeiros grupos locais de maracatu foram criados na França nos anos 2000. Em 2018, havia quase vinte grupos de maracatu franceses em atuação, incluindo ao menos cinco na região metropolitana de Paris.22 Esta rápida implantação do maracatu no país não se deve apenas às visitas de músicos pernambucanos, mas também à existência prévia de um ambiente já estruturado em torno de outras práticas musicais brasileiras e disponível para acolher novas propostas. Além disso, no caso da França, da Inglaterra e certamente de outros países europeus e norte-americanos, o interesse, desde os anos 1980, pela chamada world music e por vários tipos de pop-fusion (caribenhos, africanos e outros) se fez acompanhar pela expansão de novas práticas musicais locais e comunitárias de caráter cosmopolita. Assim, a popularização, muito anterior, de práticas de dança de salão que se cosmopolitizaram—como o tango, a salsa, a lambada etc.—encontrou eco na disseminação de práticas musicais, principalmente vocais (corais amadores interpretando polifonias da Bulgária, da Geórgia, da Itália) e percussivas (steel-bands do Caribe, djembês africano-ocidentais e conjuntos de percussão brasileira).
Inserindo-se neste quadro, o fenômeno de apropriação de músicas percussivas brasileiras na França, em geral denominadas batucadas, se desenvolveu a partir da década de 1970, com um número crescente de grupos e de participantes. A implantação do maracatu na França deu-se, portanto, em um duplo movimento: por um lado, constitui um desdobramento da propagação do maracatu pelas grandes cidades brasileiras e para fora do país e, por outro, é também parte de um movimento em torno da apropriação prévia de músicas e práticas percussivas brasileiras na França. Ambos devem ser compreendidos no quadro mais geral de reforço do interesse pelo cosmopolitismo musical exotizante, na virada do século XXI, para o qual os movimentos transatlânticos foram essenciais.
A palavra batucada (pronunciada à francesa, com a tônica na última sílaba) define, na França, grupos de percussão de inspiração brasileira. Esta definição ampla tem a vantagem de agrupar em uma só categoria grupos que tocam diferentes repertórios e instrumentos de percussão considerados "brasileiros". O mundo da batucada é formado por uma rede de músicos-instrutores, um público de participantes-"clientes", um calendário de eventos brasileiros (festas, shows e outros), estúdios para ensaios (adaptados a grandes coletivos de percussão), circuitos de apresentações musicais e oficinas de prática e de formação profissional. Este conjunto de redes e de estruturas já existia no momento em que a possibilidade de "tocar maracatu" despontou na França; graças a estas condições previamente reunidas, a "nova" proposta pôde prosperar rapidamente. Evidentemente, tais condições em nada se assemelham às práticas das nações de maracatu em Recife, mesmo aquelas criadas em Pernambuco após o ano 2000.
O grupo Nação Pernambuco foi, como vimos, o primeiro mediador entre músicos franceses e o universo sonoro e coreográfico do maracatu. Sua proposta estética "estilizada" inspira ainda hoje, mais ou menos explicitamente, a maioria dos maracatus parisienses. Com exceção do líder do Tamaracá, todos os líderes dos demais grupos parisienses de maracatu integraram em algum momento o Nação Pernambuco. Dois destes grupos interpretam o repertório do grupo pernambucano e põem em prática a metodologia de ensino de maracatu por ele imaginada. Nos anos 2010, porém, a importância do Nação Pernambuco diminuiu na França, já que vários grupos parisienses passaram a aprender diretamente com os maracatus-nação pernambucanos, em especial o Estrela Brilhante, o Porto Rico, o Leão Coroado e o Almirante do Forte. Este aprendizado direto é viabilizado por meio de viagens dos batuqueiros franceses ao carnaval de Recife, e sua integração, por períodos variáveis, ao cotidiano dos maracatus-nação, participando inclusive dos principais desfiles; e inversamente, por meio do convite a batuqueiros ilustres dos maracatus-nação para ministrar oficinas na França e em outros países da Europa.
A música do maracatu faz agora parte do mundo das batucadas francesas, por meio de grupos de percussão com instrumentos, repertórios e ritmos específicos do maracatu, distintos do samba, do samba-reggae e de outra infinidade de "ritmos brasileiros". Vários grupos de batucada interpretam "peças de maracatu", nas quais o baque de marcação, a matriz rítmica do gonguê e a gestualidade dos tocadores de tambores são importantes marcadores de identidade musical. Entretanto, o pertencimento do maracatu à categoria mais geral de batucada não é consenso entre os líderes dos maracatus parisienses. Alguns grupos, como o Oju Obá e o Tamaracá, recusam categoricamente esta associação direta. Para eles, a distinção entre o mundo das batucadas e o do maracatu está ligada a concepções de tradição religiosa ou expressiva. O caso mais extremo é do grupo Oju Obá, que afirma ser um maracatu-nação equivalente em todos os planos aos maracatus-nação pernambucanos.
Por ocasião do 4º Encontro Europeu dos Maracatus, ocorrido em 2012 em Colônia, na Alemanha, o diretor do Oju Obá, o pernambucano Letho do Nascimento realizou uma "consagração ritual como mestre do maracatu". Em Pernambuco, a passagem à atividade de mestre do baque de um maracatu-nação, embora certamente inclua a comprovação prática da capacidade exigida para tanto, não demanda qualquer ritual específico de consagração. Esta "consagração" teria assim sinalizado a passagem do Oju Obá do estágio de "grupo que toca maracatu" ao de "maracatu-nação". A proposta é controversa entre maracatuzeiros brasileiros que circulam na Europa e entre alguns participantes de grupos franceses, que não reconhecem a possibilidade de existência, fora das fronteiras de Pernambuco, de "maracatus-nação" no sentido estrito. Entre maracatuzeiros pernambucanos que não frequentam circuitos europeus, tal possibilidade é, por assim dizer, ainda menos reconhecida.
Letho do Nascimento baseia sua pretensão ao status de maracatu-nação (que no contexto europeu lhe confere um bônus de "autenticidade") no fato de ter sido iniciado espiritualmente ao culto xangô em Pernambuco. Outro aspecto alegado pelo Oju Obá é a presença em seu cortejo de calungas, bonecas sagradas que só podem desfilar depois de preparadas ritualmente no mesmo culto (sem essa preparação, seriam meras bonecas, como acontece no caso de grupos europeus e brasileiros que apresentam cortejo real sem fundamento religioso). Dessa forma, o grupo elabora uma narrativa de legitimidade a partir do vínculo com práticas religiosas afro-brasileiras, critério (entre outros) de fato vigente em Recife para demarcar a separação entre "maracatus-nação" e "grupos percussivos". Curiosamente, porém, o apego do Oju Obá à tradição do maracatu não é tão rigoroso em termos musicais, coreográficos e visuais. Em suas apresentações, o grupo acrescenta instrumentos e ritmos que divergem dos padrões vigentes do tradicionalismo maracatuzeiro.
Outros grupos parisienses, como o Tambores Nagô, o Pernambucongo e o Ens'Maracatu assumem plenamente a proximidade entre maracatu e batucada. Se o termo batucada esteve muitas vezes ligado à imagem do samba e do carnaval cariocas, o Tambores Nagô propõe um novo imaginário: o das "músicas nordestinas", igualmente carnavalescas e festivas. O grupo se auto-denomina batucada nordestine, e se apresenta como "uma formação única, ao mesmo tempo grupo musical, baile e batucada, que mergulha o público em sua alegria mestiça".23
Apesar das contestações inerentes aos jogos de identificação, para um observador externo é difícil negar que o maracatu na França integre plenamente o mundo das batucadas. Diversas razões justificam esta observação: a grande circulação de músicos entre os diversos tipos de grupos (maracatu, samba-reggae, escolas de samba e suas misturas); a participação no calendário comum de eventos e noites brasileiras em Paris; o compartilhamento de espaços de ensaio e de apresentação; a criação de um mercado para apresentações musicais e oficinas brasileiras de percussão; as colaborações entre os grupos, especialmente em torno de projetos específicos, como carnavais e shows; o estabelecimento de uma rede brasileira de produção e criação musical, diretamente associada aos grupos de percussão.
É evidente, porém, que a indissociação do maracatu pernambucano com culturas e religiões afro-brasileiras é muito menos proeminente na Europa, sendo antes a dimensão musical e convivial do maracatu que atrai a atenção do público europeu. Na França, o maracatu é praticado principalmente por e para franceses, entendendo-se aqui um "e" inclusivo. A "oferta" de maracatu, como possivelmente é o caso também em outros países europeus, é essencialmente voltada para as demandas por práticas musicais coletivas e festivas—o que o etnomusicólogo norte-americano Thomas Turino chama de "música participativa", e que muitos educadores musicais britânicos chamam de "community music". Estas demandas ganham na França seus próprios contornos, com características comuns ao mundo das batucadas como um todo. Os maracatus parisienses e europeus estão mais próximos dos movimentos de apropriação da música percussiva brasileira e da "community music" que do universo do maracatu-nação pernambucano no qual se inspiram, num processo que podemos chamar de batucalisation du maracatu.
Neste início de século XXI, a palavra "maracatu" refere-se a uma pluralidade de práticas musicais, grupos e repertórios espalhados pelo mundo. No Recife, cidade considerada por todos os envolvidos nesse universo musical como o centro nevrálgico destas práticas, mais de vinte nações de maracatu e dezenas de "grupos percussivos de maracatu" desfilam durante o carnaval, com participação de vários batuqueiros vindos diretamente da França, de outros países da Europa e da América do Norte. O concorridíssimo desfile principal dos maracatus-nação na segunda-feira de Carnaval, conhecido como a "Noite dos Tambores Silenciosos", acontece no pátio da Igreja do Terço, monumento católico erguido por escravos, na primeira metade do século XVIII.
À meia-noite, o desfile é interrompido para a realização de uma cerimônia com a participação de um sacerdote do culto xangô, de raízes africano-ocidentais. Cantos sagrados são entoados em iorubá para os ancestrais africanos, ao som de tambores apropriados (chamados "ilús", muito diferentes das alfaias do maracatu).
Entre os anos 2002 e 2017, a abertura solene do carnaval de Recife, na sexta-feira anterior ao Domingo de Carnaval, era feita por trezentos batuqueiros de maracatu regidos pelo famoso percussionista Naná Vasconcelos (1944-2016). Era a ocasião para que batuqueiros, vindos em sua maioria de bairros pobres da periferia da cidade, interagissem ano após ano com a Orquestra Sinfônica de Recife, com o cantor Milton Nascimento, com a cantora portuguesa Carminho, com o grupo nova-iorquino Stomp e muitos outros. Esta diversificação de atores, territórios, parcerias, significados e formas de apropriação foi proposta aqui como uma das dimensões mais importantes do maracatu contemporâneo. Ela corresponde também, como quisemos mostrar, ao processo histórico violento, polissêmico e transnacional no qual maracatus e outros reinados negros se inseriram a partir do século XVII.
Quando dizemos "Recife", neste texto, entenda-se sua região metropolitana, incluindo, entre outros municípios, Olinda, Jaboatão e Igarassu.
Urbain Souchu de Rennefort, Histoire des Indes orientales, (Leide, Frederik Harring, 1701 [1688]), 292-293.
Essa proposta foi amplamente argumentada pela historiadora Marina de Mello e Souza em Reis negros no Brasil escravista: a história da festa de coroação de Rei de Congo, (Belo Horizonte: UFMG, 2002).
Clarissa Nunes Maia, Sambas, batuques, vozerias e farsas públicas: o controle social sobre os escravos em Pernambuco no século XIX (1850-1888), (São Paulo: Annablume, 2008), 105.
Folk-lore pernambucano. Subsídios para a história da poesia popular em Pernambuco, (Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1908).
César Guerra-Peixe, Maracatus do Recife, (São Paulo: Ricordi, 1955), 27, 50-53.
Théo Brandão, "O maracatu," in Folguedos natalinos (Maceió: Museu Théo Brandão/UFAL, 2003), 148.
Oneyda Alvarenga, Música popular brasileira (São Paulo: Duas cidades, 1982), 144; Álvaro Carlini, Eglê Alonso Leite, Catálogo Histórico-Fonográfico—Discoteca Oneyda Alvarenga (São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1993), 39.
Alonso de Sandoval, Naturaleza, policia sagrada i profana, costumbres i ritos, disciplina i catechismo evangelico de todos Etiopes (Sevilla: F. de Lira, 1627), 55.
José Redinha, Instrumentos Musicais de Angola: sua construção e descrição (Coimbra: Universidade de Coimbra, Instituto de Antropologia/Centro de Estudos Africanos, 1988), 83.
"The bells of Kings," The Journal of African History 10, no. 2 (1969): 187-197.
Made in Africa (São Paulo: Global, 2002).
Carlos Serrano, "Símbolos do poder nos provérbios e nas representações gráficas dos Bawoyo de Cabinda-Angola," Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia 3 (1993): 137-146.
Serrano, "Símbolos," 142; Cascudo, Made in Africa, 175.
Agradecemos ao professor Robert Slenes que teve a gentileza de nos esclarecer sobre este ponto em comunicação pessoal por email.
Un Roi africain et sa musique de cour (Paris: CNRS, 1996)
Diário de Pernambuco, 18/02/1979.
Citado por Lima, Maracatus, 199-200.
Isabel Cristina Martins Guillen, "Rainhas coroadas : história e ritual dos maracatus nação do Recife," in Cultura Afro-descendente no Recife: maracatus, valentes e catimbós, ed. Ivaldo M. F. Lima, Isabel Cristina M. Guillen (Recife: Bagaço, 2007), 187.
Entrevista concedida a Isabel Guillen em 2004; publicada em Guillen, "Rainhas," 192-193.
Nadja Cristina Castro, entrevista [05 de novembro, 2010]. Acervo LAHOI (Laboratório de História Oral e da Imagem, UFPE). Agradecemos ao Laboratório a permissão para utilização desta entrevista.
Emília Chamone, Tradition, Pratique et Diffusion du Maracatu de Baque Virado (Brésil-France), (PhD diss., École des hautes études en sciences sociales, 2018).
Página Facebook do grupo Tambores Nagô, consultada em 13 de julho de 2016.