Bossa Nova & Latin Jazz
The article investigates the phenomenon of Bossa Nova, its most relevant aesthetic traces and the...
A canção “C'era un ragazzo che come me amava i Beatles e i Rolling Stones” foi composta por Mauro Lusini/ Franco Migliacci e consagrada pela gravação de Gianni Morandi (RCA, 1966). Naquele momento, Morandi era um cantor de 22 anos que já fazia sucesso como um dos grandes nomes da canzone romântica italiana dos anos 1960. O autor da música, Mauro Lusini, foi um dos responsáveis por convencer Morandi a incluir em seu repertório a canção, cujo tema e estilo destoavam das suas gravações anteriores. O clima de contestação generalizada contra a Guerra do Vietnã que contagiava os jovens da época, politizados ou não, foi bem captada pelo autor da letra, Franco Migliacci –na época com pouco mais de 30 anos–, ao contar a história de um jovem estadunidense, inocente e feliz, na primavera da vida, convocado a lutar na Guerra, o que o obrigou a trocar a guitarra pela metralhadora. O personagem da canção, um jovem comum, tipo ideal da juventude ocidental, que amava os Beatles e os Rolling Stones e gostava de namorar e aproveitar a vida, permitiria a identificação imediata da canção com seu público potencial, igualmente composto por jovens.
Naquele momento, boa parte da juventude italiana estava marcada pelo que se chamou movimento beat italiano, e Morandi, um cantor romântico consagrado desde 1963, tentava uma guinada temática em seu repertório para acompanhar um público dinâmico e em mutação, cada vez mais influenciado pela contracultura e pelo rock. No entanto, o diretor da RCA, Ennio Melis, recusou inicialmente a canção, justamente por não se adequar ao repertório romântico de Morandi.
Graças à insistência deste último e de Lusini, a canção foi apresentada em outubro de 1966 no III Festival dele Rose (Hilton Hotel, Roma), evento marcado pela presença de um público “jovem e contestador”, e teve boa receptividade. No mesmo mês, a canção foi gravada pela RCA em formato compacto (45 RPM). Melis e o diretor da RAI ainda tentaram impor algumas mudanças na letra, suprimindo as palavras "Vietnã” e "Vietcong”, por temer as reações do público e do governo italiano, aliado dos Estados Unidos na Guerra Fria. Ainda assim, Morandi optou por manter a letra original, e a canção se tornou um sucesso, chegando rapidamente às “10 mais vendidas” do hit parade italiano.
O single 45 RPM era composto por duas canções. Para compensar o clima pesado de “C'era un ragazzo che come me amava i Beatles e i Rolling Stones”, os executivos da RCA conseguiram que Morandi gravasse no lado B, a romântica “Se perdo anche te” (versão de “Solitary Man”, de Neil Diamond). Assim, tanto o público “alienado” quanto a juventude “rebelde” e politizada eram atendidos pelo produto, o que tranquilizava os executivos à frente da empreitada.
Na verdade, houve duas versões do single, ainda em 1966. A primeira apresentava um arranjo mais simples e eletrificado, no qual se destaca a guitarra de Lusini imprimindo uma sonoridade mais “beat”, como dizia a crítica italiana da época. Essa versão foi retirada do mercado logo depois do festival, substituída por outra, que apresentava um arranjo mais sofisticado de Ennio Morricone, com harmônica e instrumentos de sopro, além de um coro de vozes mais destacado.
A capa do compacto foi mantida, para não mudar a fachada, e a única e sutil diferença entre os dois produtos é o número da matriz. A primeira edição, mais rara atualmente, trazia a numeração RKAW 23327; a posterior, RKAW 23363. Essa nova gravação foi incluída no álbum long play de Morandi lançado em 1967, mas Lusini também gravou sua versão em 1966.
A canção “C'era un Ragazzo...” começou a circular pelo mundo, tanto cantada em italiano por Morandi, como regravada em outros idiomas, constituindo um caso muito peculiar de circulação cultural na música pop, tendo em vista que o original não vinha da língua inglesa.
Cantada na versão original em italiano, a canção foi lançada em vários países ainda em 1966 pelas filiais da RCA Victor: Espanha, França (onde a capa foi impressa com erro de ortografia na palavra “Amava”), mas também Alemanha e Grécia. Ainda em 1966, o fonograma com a canção cantada em italiano cruzou o Atlântico e chegou à Argentina. Neste país, bem como na Espanha, apesar da canção ter sido lançada no idioma original (italiano), as capas dos compactos 45 RPM exibiam o título em espanhol. Mauro Lusini, co-autor da canção, também gravou sua versão em 1966, sem obter o mesmo sucesso de Morandi. Em 1998, este último regravou a canção.
No começo de 1967, paralelamente ao crescimento da contestação mundial à Guerra do Vietnã que havia se tornado a grande pauta da juventude, a gravação de Morandi alcançou o primeiro lugar do hit parade italiano. Em janeiro de 1967, ao ser apresentada na TV estatal Raiuno, as palavras “Vietnã” e “Vietcong” foram censuradas pela emissora, obrigando os intérpretes a substituí-las por onomatopeias de metralhadoras.
Joan Baez também a incorporou em seu repertório,nas turnês de 1967 eJoan Baez também a incorporou em seu repertório, mas nunca apresentou uma versão em inglês da canção.
Entretanto, por ocasião de uma gravação ao vivo, em Viena (junho de 1967), ela traduziu as primeiras estrofes para o inglês. A canção foi incluída no LP Joan Baez in Italy (1967).
Ainda em 1966, foi também traduzida para o grego e gravada pelo conjunto We Five, caracterizado pela gravação de covers de rock britânico, e no qual cantava o jovem Demis Roussos (vinil Pan Vox, 1966).
No mesmo ano, surgiu a versão em espanhol gravada pelo cantor Manuel Escobar (Emmanuel), que incrementou ainda mais o tom já melodramático da letra e também teve problemas com a censura franquista. “Era un muchacho que como Yo queria ser Beatle e Rolling Stone” tornou-se um sucesso no continente latino-americano, com muitas gravações diferentes entre 1966 e 1967, sempre sob o selo da RCA Victor. O argentino Johnny Tedesco, acompanhando pelo conjunto Los Downtown, gravou a canção em espanhol (versão de Mário Pizzurno), fonograma que foi replicado pela RCA na Colômbia e na Venezuela. Outras versões em espanhol foram gravadas em 1967 pelos mexicanos Los Pingos e pelos peruanos Los Steivos, em umaversão em single 45 RPM, por Jean \"Paul\" El Troglodita (Perú), Pat Henry y Los Diablos Azules (Chile, também lançado na Nicarágua), e Los Supersónicos ( El Salvador). Esta última versão incluía estrofes de sucessos dos Beatles e dos Rolling Stones como músicas “incidentais" no meio da canção.
A “Nueva Ola” juvenil que marcava a música de vários países da América Latina incorporou a canção de Morandi, sobretudo devido à sua combinação de ritmo dançante, balada romântica e letra engajada, representando um jovem genérico e universal, que tanto poderia ser um norte-americano quanto um europeu ou latino-americano. Afinal, quem, entre 15 e 25 anos, naquela época, não gostava dos Beatles e dos Rolling Stones? No Brasil, que vivia o auge da chamada “Jovem Guarda", a versão local da “Nueva Ola”, a canção foi gravada pelo grupo de rock Os Incríveis em meados de 1967.
A versão em português escrita por Brancato Junior (empresário da banda), “Era um garoto que como eu amava os Beatles e os Rolling Stones”, tornou-se um grande sucesso e foi incluída no álbum da banda, chamado justamente Para os Jovens Que Amam os Beatles, Rolling Stones e... Os Incríveis, lançado em meados de outubro de 1967, também pelo selo da RCA Victor. Em 1968, um cantor pouco conhecido, Jean Carlo, também gravou a canção, alcançando menos sucesso do que Os Incríveis.
A carreira de sucesso da canção em português não se limitou aos anos 1960. Em 1990, outra versão em português voltou aos primeiros lugares das paradas, gravada pela banda de rock Engenheiros do Havaí e incluída no LP O Papa é pop, de 1990. Em 2007, a banda pop juvenil KLB também regravou a canção em seu álbum de estúdio KLB Bandas. No entanto, sem dúvida, o exemplo mais peculiar de versão da canção "C'Era um Ragazzo..." foi a gravação em russo pela banda de rock soviética Poyushchiye Gitary (Guitarras Cantando), em 1968. Em 1973, a canção foi gravada em tcheco pelo cantor Vaclav Neckar, com o título “Kytara a Pisen”.
Das línguas latinas às eslavas, a onomatopeia da metralhadora era a mesma, o pungente “ratátátá” sendo repetido inúmeras vezes. Embora o rock fosse desestimulado pelo governo da União Soviética, bem como de outros países comunistas, o fato de aquela canção específica criticar a política de intervenção militar no Vietnã por parte dos Estados Unidos contou com a tolerância dos dirigentes do Partido. Segundo relatos, nos acampamentos da juventude à época, “Havia um garoto” (o nome da canção em russo) era tocada frequentemente nos alto-falantes.
A grande circulação desta canção originalmente escrita em italiano em vários países e idiomas, aliada à inexistência de uma versão gravada em inglês, pode sugerir uma série de reflexões. Em primeiro lugar, cabe destacar o papel central de uma indústria fonográfica cada vez mais mundializada. A circulação da canção é inseparável da rede comercial centrada na RCA Victor para a difusão do fonograma original e do estímulo às gravações em outras línguas, sobretudo espanhol e português. Essas redes comerciais organizadas pelas grandes empresas transnacionais foram centrais na consagração da música pop internacional, devidamente adaptada e apropriada por sociabilidades culturais e escutas musicais jovens em países específicos.
“C'era un Ragazzo...” também pode ser vista como um exemplo de gênero musical transatlântico surgido a partir da mistura da balada pop estadunidense dominante na primeira metade dos anos 1960 (cujos maiores exemplos são as canções de Neil Sedaka, Paul Anka e Chubby Checker) com a balada romântica italiana. O resultado deste hibridismo é uma estrutura musical marcada por harmonias simples e pulso regular, emoldurada por instrumentos de sopro e guitarras sem distorção, com letras que abusam do fraseado longo e das narrativas melodramáticas. As marcas musicais e poéticas, ainda presentes em “C'era un Ragazzo...” e suas versões em outros idiomas, podem explicar o porquê da inexistência de uma versão em inglês da canção. Em que pese o arranjo de Morricone incorporar a harmônica associada às baladas de protesto de Bob Dylan, o resultado musical geral soava anacrônico para uma escuta já informada pelo experimentalismo e pela distorção dos Beatles, sugerida no LP Revolver, pelo rythm'n blues dos Stones e pelo surgimento do rock lisérgico americano em 1967.
O mais curioso é que este tipo de “balada-pop-rock” era tributário de uma era musical pré-Beatles, anterior portanto às inovações e sonoridades consagradas pelo rock britânico. O estilo marcou a gênese da produção musical voltada para a juventude de países latinos em meados dos anos 1960, como a Nueva Ola hispano-americana e a Jovem Guarda brasileira, sem falar no próprio Iê-Iê-Iê italiano (cujo exemplo de maior sucesso era Rita Pavone) expressões de uma musica pop latina e transatlântica.
O tipo de jovem presente nessas canções, seja como personagem poético das letras, seja como performer no palco, era resultado de uma aceleração do tempo social da juventude em países ainda muito conservadores e provincianos, mas que experimentavam um intenso processo de modernização de consumo e costumes. A expressão estética dessa juventude (roupas coloridas e extravagantes, cabelos longos, postura irreverente diante do mundo adulto) ainda se combinava com padrões comportamentais aceitáveis em sociedades altamente conservadoras e patriarcais.
“C'era un Ragazzo...” estava atrelada a uma representação de juventude genérica (branca, de classe média, moderadamente rebelde), de intensa circulação transatlântica, mas que encontraria seus limites entre 1967 e 1968. A partir de então, com a radicalização comportamental e política estimulada pela afirmação da contracultura e da rebeldia do “poder jovem”, a cultural musical jovem sofreria um abalo. No Brasil, por exemplo, o surgimento da Tropicália e de uma contracultura local mais transgressora, por volta de 1968, superou, em termos de mercado e comportamento social, os limites estéticos e comportamentais dessa juventude moderadamente rebelde da primeira metade da década.
As baladas românticas e o clima de ingenuidade dos bailes, as brigas adolescentes e os “namoros de portão” dariam lugar ao rock distorcido, lisérgico, transgressor que cantava novas experiências com drogas e sexo, a partir de um novo tipo de rock'n roll. A canção de Morandi, do ponto de vista poético, sugere exatamente essa perda de inocência e, no limite, a perda da própria juventude idealizada diante da violência da guerra. Nesse sentido, a própria canção pode ser vista como uma expressão limite de uma juventude em vias de desaparecimento nos próprios países ocidentais. Mas é bom lembrar que o binômio central desta representação simbólica e comportamental (“juventude e inocência") talvez jamais tenha expressado a realidade dos jovens não brancos dos "mil Vietnãs" mundo afora. Sintomaticamente, a narrativa da canção está centrada no jovem americano convocado para matar os jovens vietnamitas, os “vietcongs”, cuja tragédia está ausente da letra. "War, children/It's just a shot away, it's just a shot away”. Mas é justamente por conta destes limites que "C'era un Ragazzo...” expressa um momento da história cultural e musical transatlântica em processo de transição de valores e estéticas.