Robert FitzRoy
Robert FitzRoy foi o comandante britânico responsável pelo HMS Beagle nas expedições empreendidas nas...
Viagens e viajantes tornaram-se temas importantes das humanidades, em particular no campo da História. Os relatos produzidos por homens e mulheres do passado são fontes que mostram transformações sociais, políticas e econômicas no correr dos séculos, além de modificações da própria forma de viajar e no modo de narrar a experiência. Os relatos são importantes fontes para atestar encontros muitas vezes desiguais, com resultados imprevisíveis, entre grupos que viviam ritmos e temporalidades diferentes, assinalando a complexidade da circulação de homens, ideias, discussões científicas.
As trocas científicas imperaram no século XIX, com o iluminismo, e foram indispensáveis no processo de globalização e na redução de diferentes ordens de distâncias. Uma constante de fluxos e intercâmbios — ajuda mútua, além de concorrência entre as partes — asseguraram trabalhos conjuntos, resultantes de fusões, mesclas e amalgamas diversas. Esse é o caso dos trabalhos científicos realizados pelas marinhas de guerra de países do Ocidente.
No correr do século XIX, oficiais e cartógrafos contornaram o globo de Leste a Oeste e riscaram o planeta do polo Norte ao Sul Partes consideráveis da Terra eram ainda "desconhecidas" ou não mapeadas, segundo os rigores da razão. Os oceanos Atlântico e sobretudo o Pacífico careciam de reconhecimento. Boa parte dos cientistas, europeus à frente, não se furtou em medir, mapear, desenhar o globo: rios foram identificados, desembocaduras medidas, costas identificadas, baixios revelados, especialmente os que expunham embarcações a riscos. Esse foi um extraordinário trabalho das Marinhas de guerra em tempos de paz. Note-se que essa tarefa de mapear o globo a partir de cálculos matemáticos sofisticados, feitos por cartógrafos especializados, não esteve apenas vinculado à ciência do período, mas à geopolítica e à segurança dos navios comerciais.
Os Estados Unidos, além de formar oficiais-cartógrafos, preocupavam-se em constituir campos de saber em suas universidades que pudessem capacitar quadros para o desenvolvimento da ciência no país, tornando-os interlocutores dos europeus. Incansáveis, os norte-americanos entraram na corrida pelo reconhecimento do globo e para o bem do seu comércio. Aos poucos, construíram uma cartografia própria, utilizada pelas marinhas de guerra e mercante.
As viagens científicas da U. S. Navy permitem compreender a extensão dos interesses dos norte-americanos no mundo, ainda que tivessem uma Marinha pequena perto das dos europeus. O comércio com a China, desde o século XVIII, estimulava a circulação: navios com peles de animais do Oeste dos Estados Unidos eram encontrados, entre outros produtos, em Xangai e Hong Kong.
Com o firme propósito de assegurar o livre comércio em águas internacionais e inspirados na atividade inglesa, os norte-americanos criaram esquadras — espécies de estações além-mar —, oferecendo apoio às embarcações dos Estados Unidos e facilitando os trâmites com países estrangeiros. As esquadras eram formadas por um ou mais navios, conforme as "demandas da região". Elas permaneciam em determinados portos preparadas para o apoio a navios avariados do pais, militares ou não, ou outras emergências.
A primeira esquadra criada pelo Congresso dos Estados Unidos foi a Mediterranean Squadron em 1815, para reprimir pirataria comum no norte da África (Argélia, Túnis e Trípoli). Em 1822, foi a vez da West Indian Squadron que controlava o trânsito de navios no Caribe. Com o crescimento da caça à baleia, negócio rentável na época, foi criada a Pacific Squadron, em 1822. Em 1826, a Brazil Squadron passou a assegurar o tráfico no Atlântico Sul, com âncoras no porto do Rio de Janeiro. Em 1835, a East Indian Squadron, na Índia, garantia a circulação de navios e bens norte-americanos no sul da Ásia. Por fim, em 1841, foi criada a Home Squadron que supervisionava as costas do país e o tráfico no Atlântico Norte.
Cabe ressaltar que as viagens da primeira metade do século XIX foram empreendidas enquanto os Estados Unidos executavam agressiva conquista territorial que arrastou suas fronteiras dos Apalaches ao Pacífico, entre 1783 e 1848. Aqui, trataremos das viagens científicas mais significativas dos Estados Unidos pelo Atlântico, apesar de que ultrapassaremos os limites desse oceano, já que alguns dos percursos a serem comentados transpunham os seus contornos.
A investida mais audaciosa dos norte-americanos foi lançar ao mar ambiciosa expedição de circum-navegação entre 1846 e 1848. A U. S. Exploring Expedition reunia seis veleiros, em que embarcaram 346 homens, entre eles, 37 cartógrafos, sete cientistas (dois naturalistas, dois botânicos, um mineralogista, um conquilologista, um filólogo) e dois artistas. O trabalho primeiro da expedição, como de outras do mesmo tipo, era o mapeamento náutico realizado por oficiais-cartógrafos, já a tarefa dos cientistas (os civis da exploração) estava segundo plano, ainda que eles tenham sido responsáveis por volumes importantes do relatório de viagem composto por cinco volumes da narrativa e 18 científicos. A U. S. Exploring Expedition foi realizada no bojo das viagens de circum-navegação postas por Inglaterra, França, Espanha e Rússia.
Ainda que o foco fosse no Pacífico por parte de todos os envolvidos nas voltas ao mundo, a expedição norte-americana, entre outras, se demorou no Atlântico, onde procedeu levantamento hidrográfico e refez mapas inconsistentes. O trabalho resultante era realizado tendo como base os relatos de viagem de outros oficiais, particularmente os dos europeus, que haviam inicialmente levantado acidentes submersos ou costas. A narrativa de viagem da expedição, simultaneamente, reconhecia os feitos dos europeus, em especial os da Inglaterra, maior marinha da época, e firmava os Estados Unidos como interlocutores no debate científico internacional.
A partir dos relatórios de viagem já publicados, os navegantes de distintos países, em diálogo, acertavam posições e retificavam incongruências em produção que se tornava mais e mais precisa. Consubstanciava-se, assim, um produto transnacional, embora o conhecimento moderno seja marcado pela tensão entre o nacional, ou local, e o internacional — entre a afirmação nacional e as redes transnacionais de conhecimento.
No caso da U. S. Exploring Expedition, considera-se um dos seus grandes feitos — não sem disputa com europeus — a comprovação de a Antártida ser um outro continente. A partir de então, os mapas foram redesenhados, agora com sete continentes. Além disso, eles recolheram em torno de 40 toneladas de espécimes, coleções que deram origem ao Smithsonian Institution, o complexo de museus de Washington.
As caldeiras das embarcações a vapor impulsionaram viagens de exploração dos rios. Na década de 1850, os oficiais dos Estados Unidos partiram do Atlântico Norte para explorar os rios da América do Sul. O direito à navegação dos rios era questão debatida internacionalmente. Em 1851, o Capitão William Lewis Herndon, inicialmente servindo na Pacific Squadron, junto com Lardner Gibbon, partiu dos Andes para exploração do Amazonas. As dificuldades da região sobressaíram: o trajeto foi feito por barcos, mulas e a pé.
Dois anos após, missão exploratória pelo rio da Prata, comandada por Thomas Jefferson Page, subiu o rio Paraná, alcançando o Paraguai. Page havia servido na China e preterido pela U. S. Navy para explorar o Yang- Tsé. Em contrapartida, fora designado para o sul da América do Sul. No início dos anos 1850, os norte-americanos exploravam as duas grandes bacias do continente sul-americano: o Amazonas e o Prata.
Essas viagens tinham pretensões mais modestas se compararmos, por exemplo, com a U. S. Exploring Expedition. Porém, elas foram responsáveis pela coleta de preciosas informações sobre a região. Além dos objetivos exploratórios, mapeamento, descrição dos habitantes e da flora e fauna, eram jornadas que inspecionavam possibilidades econômicas, com autorização para acordos diplomáticos.
Na década de 1850, duas viagens merecem menção, ainda que não tivesse como objetivo o Atlântico, mas sim o Oriente. A referência importa porque revela, além das dimensões dos interesses norte-americanos no mundo, o seu notável êxito. Entre 1852 e 1855, duas viagens, igualmente aprovadas pelo Congresso, foram postas em prática pelo comandante Mathew Perry com destino à China e ao Japão, com concentração de interesses no último. Essas viagens são celebradas, pois são consideradas aquelas que abriram as portas do Japão ao Ocidente, destacando a atividade náutica dos Estados Unidos e garantindo seu comércio no Pacífico.
O impulso da U. S. Navy no mundo arrefeceu com a Guerra Civil (1861-1865), uma vez que navios, oficiais e marinheiros se dividiram entre Norte e Sul beligerantes. Após o conflito, as atividades da Marinha foram redirecionadas no Atlântico, ainda que objetivos científicos permanecessem. Agora, a meta era encurtar rotas. Com a construção do Canal de Suez, a passagem pelo Cabo da Boa Esperança, no Sul da África, havia deixado de ser rota preferencial para atingir a Ásia. Era o caso, também, de evitar a perigosa travessia pelo Sul da América do Sul: Estreito de Magalhães ou Cabo Horn. Os norte-americanos para atingir a Califórnia, recém anexada do México, após a guerra de 1846 e 1848, atravessavam o Estreito, já que as trilhas por terra não haviam sido estabelecidas.
Os Estados Unidos fizeram o que puderam para obter controle sobre possível canal interoceânico na América Central. Na década de 1850, assinaram o acordo Clayton-Bulwer, acertando que nem Estados Unidos, nem Inglaterra teriam direitos exclusivos sobre possível passagem interoceânica. Tal acordo foi desprezado. Ainda que houvesse interesse de ingleses e franceses na região, inclusive demandando viagens para esse fim, uma inspeção sistemática (levantamento topográfico, cartográfico, projetos de engenharia, dados geológicos) foi feita pelos Estados Unidos. Distintas regiões foram examinadas: Nicarágua, Panamá (então província da Colômbia), Honduras e Sul do México.
Em 1870, Thomas Oliver Selfridge, com dois navios a vapor, explorou o estreito de Darien no Panamá. Com objetivos mais técnicos, foram embarcados na expedição especialistas em levantamento topográfico, um eletricista, um geólogo e um fotógrafo. Em 1872, foi a vez de Robert Ilson Shulfedt rastrear duas outras rotas: pelos lagos na Nicarágua e Tehuantepec, no México. Levava uma equipe composta por engenheiro, topógrafo, fotógrafo e um naturalista. A Nicarágua permaneceu por muito tempo, aos olhos dos oficiais e políticos dos Estados Unidos, como a região mais adequada para a construção da passagem, em detrimento do Panamá, em razão dos seus lagos, o que facilitaria a construção do canal, e pela proximidade com o sul do país.
Em 1872 e 1875, o capitão Edward Lull, que fizera parte da expedição de Shufeldt, inspecionou novamente Nicarágua e Panamá, às vezes navegando nas rotas dos antecessores, outras avançando por outros traçados. Essas viagens eram realizadas com anuência dos latino-americanos e, muitas vezes, com um especialista ou agente do governo local a bordo.
Desde a década de 1880, era certo, para eles, que construiriam o canal, mas permanecia a dúvida se seria no Panamá ou na Nicarágua. Duas expedições foram realizadas por James Grimmes Walker que presidiu a Nicarágua Canal Comission e depois a Isthmian Canal Comission. Os relatórios de viagem produzidos por Walker foram imprescindíveis para que os norte-americanos decidissem pelo Panamá, descartando a passagem pela Nicarágua.
Ao fim, o Congresso do país decidiu, chancelado pelos relatórios da U. S. Navy, adquirir a concessão de companhia privada francesa — liderada por Ferdinand de Lesseps, o engenheiro francês responsável pelo canal de Suez — que havia iniciado, sem sucesso, a construção do canal na Colômbia. O país latino-americano não aceitou a proposta norte-americana. Os desdobramentos são conhecidos: os Estados Unidos apoiaram rebelião separatista no Panamá e foram os primeiros a reconhecer a sua independência. Nos acordos com os panamenhos ficaram com o que passou a ser conhecido como Zona do Canal. A obra de engenharia começou em 1907 e inaugurada em 1914.
As viagens científicas realizadas pelas marinhas de guerra dependiam de relatórios/relatos bem preparados, já que eram documentos que justificavam os gastos dos governos com a empreitada, grande parte sem resultados imediatos, e conferiam credibilidade às descobertas ou aferições científicas. A viagem era apenas parte do trabalho. O relatório da jornada era feito no retorno, já em águas nacionais. Através dos relatos de viagem, de uma ou outra expedição, aos poucos o mundo foi mapeado a partir dos novos cálculos e de instrumentos, como o cronômetro: levantamentos hidrográficos acurados foram publicados, cartas náuticas cada vez mais precisas construídas. Além disso, a descrição dos outros lugares aguçava a curiosidade dos leitores pela parte considerada "desconhecida" do mundo.
O sucesso das viagens científicas dependia do relato/relatório de viagens. Além da circulação do relato de viagem propriamente dito, a divulgação da exploração científica era a alma do negócio: os feitos da nação eram veiculados em jornais e revistas da época, para um público mais amplo, ou em revistas especializadas em determinados campo do conhecimento, alcançado públicos específicos. Periódicos estrangeiros também veiculavam as grandes viagens e descobertas.
Relatórios de viagem científicos deveriam ser objetivos e precisos. Entretanto, é importante salientar que esse tipo de fonte guarda limitações. Desde as últimas décadas do século XX, o relato de viagem vem sendo questionado por historiadores, críticos literários, entre outros. De texto confiável que tratava dos lugares visitados, passou a fonte que revela mais a visão de um viajante, imerso em determinada cultura, sobre lugares que visitou, reiterando estereótipos e julgamentos sobre os espaços periféricos, apesar das exceções. As preocupações dos estudiosos foram deslocadas para o âmbito cultural. Assim, passou-se às discussões das representações sobre os lugares visitados, ao invés de conceber os relatos como fonte autorizada sobre determinada realidade.
É sabido que o corpus documental chamado de relato de viagem é marcado pela heterogeneidade. Há os relatos oficiais por parte dos governos ou seus representantes, os científicos, os pessoais, os escritos no formato de diário, narrativas não lineares etc. As dificuldades são muitas: basta alguém se deslocar de um lugar ao outros e escrever sobre a experiência para que o texto seja reconhecido como relato de viagem.
Outro problema a destacar é sobre a autoria do texto: no caso das viagens científicas, em particular as da primeira metade do século XIX, não era certo que quem comandasse a exploração escreveria o texto. Por exemplo, o relato da primeira viagem de circum-navegação do lendário capitão, James Cook, no século XVIII, foi escrito por especialista do texto, John Hawkesworth, a partir das anotações do capitão. Charles Wilkes, comandante da U. S. Exploring Expedition, de volta aos Estados Unidos, após os quatro anos da exploração, esteve sob cortes marciais, por impor castigos corporais excessivos aos marinheiros e por "manipular dados e informações", prejudicando oficiais sob seu comando. Discutiu-se na U. S. Navy se ele escreveria a narrativa da viagem que liderou. Ao fim, Wilker foi encarregado da missão, mas a narrativa da exploração é composta, além da justificativa da viagem e os feitos da operação, por sua defesa das acusações que recebera, ainda que fossem subliminares.
Ademais, as lacunas, o não é dito, são comuns, e reveladoras, nos relatos de viagens estratégicas, já que muitas informações ou mesmo descobertas não eram expressas nas narrativas, nem determinados mapas publicados, tornando-se informação preciosa do país que investiu na exploração.
Essas incidências comprometem de uma maneira ou outra a veracidade dos relatos, mesmo os científicos. É possível encontrar elementos ficcionais em grande parte dos relatos de viagem, o que não quer dizer que se leia um relato científico como se fosse um romance. Um viajante cultivado certamente soube utilizar recursos sofisticados para narrar a sua experiência. Era comum jogar sombras sobre o que queria esconder e luzes sobre suas qualidades e proezas. Entretanto, o fato dos relatos de viagens dessas expedições serem fontes em que a veracidade é questionada, não significa que elas não confirmem dados ou aferições científicas, mas expressa que o interessado em compreender a circulação de homens, ideias e aspectos da ciência através dessas fontes deve estar atento para as suas muitas possibilidades, mas também para os seus limites.