Revista Cine Cubano
A revista Cine Cubano, criada em 1960, promoveu por mais de quatro décadas a circulação de notícias e...
História em quadrinhos (HQs) é uma das principais formas de comunicação gráfica do mundo contemporâneo. A força do seu alcance junto a leitores de diversas faixas etárias a partir da leitura de HQs editadas em jornais, revistas, livros ou online, demonstra a vitalidade de tal linguagem. Fruto de intercâmbios culturais que se desenrolaram de forma mais ou menos espontânea ao longo dos séculos XIX e XX, as variadas denominações sugerem uma primeira interpretação sobre esta linguagem. Ao integrá-las desde uma perspectiva transatlântica, poderíamos esboçar uma definição: seriam narrativas curtas (historietas, em espanhol) distribuídas em sequências de imagens enquadradas (história em quadrinhos no Brasil; bande dessinée, em francês) e articuladas a textos inseridos em balões de fala (fumetti na Itália), não raro lançando mão do humor (comics, em inglês).
Um caminho para pensar historicamente as HQS passa pela ênfase à historicidade de determinados formatos de edição e publicação, abordando-os desde recortes temporais específicos. De início – entre fins do século XIX e as primeiras décadas do século XX – a ênfase recai sobre o estabelecimento da leitura e consumo de HQs em periódicos, sob o formato de tiras cômicas; em seguida, o surgimento e consolidação das revistas em quadrinhos a partir do êxito comercial dos super-heróis, num recorte que abrange as décadas de 1930 a 1960; por fim, a ascensão das graphic novels, numa trajetória que se inicia nos anos 1970 e segue até hoje. É preciso ressaltar que o surgimento de novos modelos de edição de HQs implica mais em acréscimos de outras práticas de edição e leituras sobre outras já estabelecidas do que em substituição e desaparecimento – tanto é que o mesmo leitor do século XXI pode consumir tiras cômicas em jornais ou internet, comprar revistas em quadrinhos em bancas de jornal ou comics shops e adquirir graphic novels em grandes redes de livrarias. Mas nem sempre foi assim.
Definir as HQs a partir da presença ou ausência de elementos formais foi interpretação assumida por muitos estudiosos dedicados ao tema. Trata-se do debate acerca da "verdadeira origem" das HQs, que alega serem elas herdeiras de manifestações tão variadas no tempo e no espaço como pinturas rupestres, hieróglifos egípcios e inscrições pré-colombianas, por exemplo. Em comum, a presença de imagens "lidas" em série, o que ajudou a consolidar a expressão "arte sequencial" enquanto abordagem conceitual, até hoje adotada por segmentos da imprensa e alguns especialistas. Acima de tudo, a noção difundida por Will Eisner (1917-2005) contribui para legitimar socialmente uma expressão gráfica tida como desvalorizada culturalmente por parte dos agentes envolvidos com HQs. Ela termina, porém, por perder de vista especificidades técnicas e culturais que se associaram a elas – como novas tecnologias de impressão e práticas de olhar – e desenvolvidos ao longo do século XIX.
Ainda segundo tal interpretação, as HQs teriam surgido não nos EUA, mas sim na Europa, a partir do artista suíço Rodolphe Töpffer (1799-1846). Publicada em 1833, a obra Histoire de M. Jabot continha imagens em série acompanhadas de legendas. Töpffer definia seu trabalho como littérature en estampes.
A partir de tal abordagem, observa-se a descoberta de novos "pioneiros" das HQs. Cada país passou a ter o seu "primeiro autor de HQs". Listá-los seria longa tarefa; vale destacar aqui a obra de Angelo Agostini (1843-1910). As Aventuras de Nhô Quim ou Impressões de uma viagem à corte (1869) é o marco que se toma para considerá-lo o "pai das HQs brasileiras", ao ponto de um dos principais prêmios dedicado às HQs brasileiras levar seu nome. De origem italiana, viveu infância e adolescência em Paris e migrou para o Brasil com dezesseis anos. Em seus últimos anos, Agostini trabalhou na revista ilustrada para crianças O Tico-Tico (1905-1962), que introduziu no Brasil tiras cômicas de sucesso nos EUA do início do século XX, como Little Nemo in Slumberland (1905), de Winsor McCay (c. 1867-71-1934) e Krazy Kat (1913-1944), de George Herriman (1880-1944), entre outras.
Tais interpretações contestam o título de primeira HQ creditado a The Yellow Kid (1895-1898), publicado no suplemento ilustrado do jornal The New York World (1860-1931), dirigido por Joseph Pulitzer (1847-1911). A criação de Richard Outcault (1863-1928) é resultado direto do desenvolvimento e barateamento do maquinário gráfico e das impressões em cores, bem como do público consumidor de impressos em expansão. O pijama amarelo do personagem título – que ganhou tal coloração a partir da ideia de testar a qualidade da impressora gráfica do jornal – chama tanto a atenção a ponto de se tornar o suporte das falas do próprio personagem. De origem irlandesa, as falas atribuídas ao menino eram grafadas de forma a buscar reproduzir o que seria o linguajar popular e o sotaque dos imigrantes pobres que ocupavam a Nova York de fins do século XIX. Foi importante para o surgimento da "imprensa de massas", ao ponto de inspirar a expressão yellow journalism, usada de forma crítica para classificar periódicos sensacionalistas e tidos como pouco sérios.
Outcault também criou a série Buster Brown (1902-c.1921), que abordava as estripulias cotidianas de um menino loiro e de feições burguesas. Ao contrário do que ocorrera com The Yellow Kid, desta vez Outcault conseguiu, após disputa judicial, assegurar os direitos sobre o personagem. O personagem logo se espalharia por todo o país.
Além de estrelar peças de teatro, programas de rádio e filmes, Outcault licenciou o personagem para publicidade: a partir de 1904, Buster Brown se tornaria uma espécie de garoto propaganda da Brown Shoe Company (1917-), contribuindo para a venda de sapatos com intervalos entre as décadas de 1960 e 1970 – até os anos 1990. Nos EUA, o personagem-título passaria a denominar um estilo de terno popular entre crianças das primeiras décadas do século XX.
O personagem logo ultrapassou as fronteiras dos EUA. No Brasil, sofreu apropriações culturais bastante peculiares. Publicado n' O Tico-Tico, o personagem-título é rebatizado e passa a se chamar Chiquinho. Passados alguns anos de tradução e adaptação das HQs originais, artistas brasileiros assumiram a produção da série, adicionando novos amigos em histórias ambientadas no Brasil. A série sobreviveu por décadas ao encerramento da publicação das tiras cômicas originais nos EUA. Ainda que tais adaptações tenham ocorrido com outras importantes HQs, Chiquinho é quem assumiu o posto de carro chefe d'O Tico-Tico, ao ponto de muitos leitores acreditarem tratar-se de uma HQ legitimamente brasileira. E não era?
A circulação de HQs fora dos EUA se deve, em grande medida, aos syndicates, agências distribuidoras especializadas em produzir e distribuir tiras cômicas para jornais e revistas. O rápido sucesso comercial das HQs desde fins do século XIX estimularia sua expansão rumo a América Latina e Europa, que logo se tornariam consumidoras de comics. Afinal, se uma HQ como Mutt and Jeff (1907-1983), de Bud Fisher (1885-1954), atestava que um evento como a Revolução Mexicana não podia mais ser ignorado, as HQs também não podiam deixar de lado o público leitor para além das fronteiras dos EUA. Em fins dos anos 1960, o teórico belga de inclinação marxista Armand Mattelart (1936-) destacaria que um syndicate como o King Features Syndicate (1904-) conseguia traduzir seus comics para mais de 30 idiomas em mais de 100 países, publicando em mais de cinco mil periódicos.
1903 | 1908 | 1913 | |
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Número de periódicos com tiras cômicas de *syndicates* | 45 | 81 | 115 |
Porcentagem da população em cidades onde se leem tiras cômicas obtidas via *syndicates* | 15,00 % | 19,18 % | 21,00 % |
Tabela 1: Distribuição de tiras cômicas nos EUA, 1903-1913. Dados extraídos de GORDON, Ian. Comic strips and consumer culture, 1890-1945. Washington and London: Smithsonian Institution Press, 1998, p. 168.
Releituras como as sofridas por Buster Brown parecem ter sido recorrentes a partir da maior circulação de tiras cômicas via syndicates. No México, a série Happy Hooligan (1900-1932), criada por Frederick Opper (1857-1937), torna-se Aventuras del papá de Pancholín (1917-?) quando publicada no jornal El Universal. O protagonista passou de um sofrido, mas feliz, membro das classes populares dos EUA para um pai mexicano à procura de seu filho desaparecido, protagonista de tira cômica mexicana encerrada no mesmo ano. Tantas transformações no enredo levaram a severas adaptações nos textos dos balões de fala, que passaram a fazer menção direta a aspectos da vida cotidiana no México.
Outro caso de circulação e apropriação cultural na América Latina ocorreu com a série Bringing up father (1913-2000). A tira cômica de George McManus (1884-1954) tratava com humor as experiências de imigrantes e novos ricos nos EUA, mostrando as dificuldades do casal de irlandeses Jiggs e Maggie para se adaptarem à nova realidade. Na América Latina, a série contribuiu para representar a modernidade urbana das primeiras décadas do século XX, assim como a ascensão de setores médios em diversos países da região. No Brasil, o casal passou a se chamar Pafúncio e Marocas, inspirando programas de humor até os dias de hoje; na Argentina, a série foi publicada pelo jornal La Nación sob o título Pequeñas delicias de la vida conjugal. Além de uma bem sucedida adaptação para o teatro, inspirou canções como Sisebuta y don Trifón, um "Charleston humorístico" composto por Modesto Papávero (1899-1965) em 1925 e que descrevia a esposa de don Trifón nos seguintes termos: "Sisebuta con su empeño/de er dueña del hogar/con especial dedicación/quiere a su esposo modelar./Sisebuta a millares/si usted quiere encontrará/pues la mujer en la actualidad/es un autoridad!/Ella manda y nada más". No Chile, El Mercurio publicou a série em 1922 sob o título Amenidades del diário vivir o Educando a papá, inspirando um filme de animação – Vida y milagros de don Fausto (1924), de Carlos "Espejo" Borcosque (1894-1965), tida como a segunda animação chilena de que se tem registro – e Don Fausto (1924-1964), revista que publicaria HQs e ilustrações por quarenta anos. Crisanta, a esposa, tornou-se sinônimo de mulher dominadora, preferencialmente lançando mão de um rolo para massas como argumento final.
Tais apropriações culturais não se restringiram ao conteúdo, mas atingiram elementos técnicos da linguagem das HQs, como os balões de fala, representativos da tensão que as tiras cômicas introduziam num contexto como o latino-americano, onde predominava a tradição francesa das revistas ilustradas e suas publicações contendo imagens em série acompanhadas de legendas. Não raro os balões eram suprimidos e substituídos por legendas. Situação análoga ocorreu em países da Europa, conforme aponta Ítalo Calvino (1923-1985) a partir do caso italiano. Para Calvino, leitor de comics norte-americanos como Happy Hooligan, Katzenjammer Kids, Felix the Cat e outros, até a publicação de Mickey Mouse na Itália, adotava-se a solução de suprimir os textos nos balões de fala. Em seu lugar, cada quatro vinha acompanhado de uma espécie de legenda, sob a forma de versos rimados – solenemente ignorados pelo autor. A solução editorial de adotar legendas no lugar de balões de fala teria sido fundamental para expandir a imaginação de Calvino quando criança, ao "pensar por imagens" enquanto as interpretava com enredos diferentes a cada nova leitura.
Logo as tiras cômicas ultrapassariam as fronteiras da própria HQ, impactando escritores e pintores. Exemplos como os dos escritores brasileiros Monteiro Lobato (1882-1983) e Benjamin Costallat (1897-1961) e as releituras que realizaram sobre, respectivamente, Felix The Cat (1919-) e Mutt and Jeff apontam para a intertextualidade presente nas diversas facetas do Modernismo brasileiro.
O impacto das HQs nas artes plásticas pode ser demonstrado a partir da experiência leitora do casal Pablo Picasso (1881-1973) e Fernande Oliver (1881-1966), conforme descrita por Gertrude Stein (1874-1946) em Autobiografia de Alice Toklas (1933). A tira cômica norte-americana The Katzenjammer Kids (1897-1968), criada por Rudolph Dirks (1877-1968), catalisa sentimentos como raiva, alegria e tristeza entre o jovem casal, que disputava quem seria o próximo a ler a HQ nos suplementos entregues a eles por Stein. O caráter anárquico e explosivo de Katzenjammer Kids, cujo enredo centrava-se no humor físico envolvendo uma família descendente de alemães de baixa renda, parece representar uma metáfora do relacionamento entre Picasso e Oliver.
O êxito da tira de Dirks pode ser atestado pelos vários desenhos animados lançados desde o ano seguinte à sua estreia. Entre 1916 e 1918, por exemplo, 37 animações chegaram a ser produzidas quando, devido à Primeira Guerra Mundial e as animosidades com a Alemanha, a série passou a ser chamada de The Shenanigan Kids. Porém, devia ser difícil ignorar que Katzenjammer Kids tomara como inspiração a obra ilustrada infantil alemã Max und Moritz (1865). Os vínculos com a Alemanha foram reforçados poucos anos antes a partir de Lyonel Feininger (1871-1956), hoje lembrado por sua atuação junto à Bauhaus. Mesmo tendo nascido e vivido boa parte de sua adolescência em Nova York, Feininger compunha um time dos "mais famosos desenhistas alemães" recrutado pelo Chicago Sunday Tribune (1847) para se dedicar à série The Kin-Der-Kids (1906-1907).
A atuação de Feininger na imprensa e nas HQs é uma passagem pouco conhecida da sua trajetória artística. Não é mesmo possível apontar até que ponto ela influenciou diretamente suas pinturas ou sua definição de arte. O mesmo se pode dizer em relação à obra de Pablo Picasso, cuja relação direta com as HQs é conhecida principalmente a partir das passagens presentes na obra de Gertrude Stein. Pode-se objetar que o interesse de Stein e Picasso em relação às HQs se devia à fascinação sentida pelos artistas modernistas em relação à cultura de massas, o que teria levado o norte-americano Stuart Davis (1892-1964) a reproduzir um desenho de HQ em seu quadro Lucky Strike (1892-1964), de 1924.
Por outro lado, uma série de desenhos que serviu de estudo para a criação do mural Guernica aponta que o interesse de Picasso pelas HQs resultou em efetivas obras visuais. A partir das novas tecnologias gráficas e visuais, o pintor espanhol dialoga com a história da arte e da imagem: dos trípticos de Francisco de Goya (1746-1828) dedicados aos horrores da invasão napoleônica sobre a Espanha, passando pelas narrativas de imagens em sequência muito presentes na região da Catalunha a partir da época moderna e conhecidas como aucas, chegamos aqui à visualidade fragmentada para abordar a violência e as consequências do bombardeio nazifascista. Datados de janeiro a junho de 1937, constroem uma narrativa de imagens dispostas em sequência crítica a Francisco Franco (1892-1975) e a destruição do projeto republicano a partir da Guerra Civil Espanhola, incorporando o bombardeio de Guernica ao longo da elaboração da série. Poucas décadas desde sua disseminação transatlântica, as HQs entravam de vez no mundo da política.
A produção e leitura de HQs sofreram uma verdadeira revolução a partir dos anos 1930, quando alguns distribuidores de HQs tiveram a ideia de dobrar um suplemento de jornal e vendê-lo como uma revista. A solução barata e sem maiores preocupações em adaptar as técnicas de impressão ao novo formato tornaram a qualidade gráfica das revistas em quadrinhos próxima do sofrível. As cores tinham de ser primárias e berrantes para aparecerem bem destacadas; as letras pequenas no balão não tinham a mesma sorte, o que tornava desafiadora sua leitura e preocupava educadores quanto aos malefícios que poderiam causar à visão. Tudo isso levava a uma seleção pouco rigorosa de histórias de qualidade – mesmo porque vincular-se às revistas em quadrinhos poderia significar o comprometimento de qualquer carreira com pretensões literárias ou artísticas. Tais revistas em quadrinhos acabavam se aproximando mais da literatura pulp, publicadas desde o início do século XX em livros e revistas que utilizavam papel de baixa qualidade – produzido a partir da polpa da celulose, daí a expressão pulp – e que publicavam histórias de fantasia, horror e aventura estampadas em bancas de jornal com capas exageradas e chamativas.
A partir de tais especificidades técnicas, as revistas em quadrinhos passaram a serem chamadas por alguns de four colour nightmares. Surgia também a moderna indústria de revistas em quadrinhos a partir de seu personagem-ícone: Superman, criado em 1933 por Jerry Siegel (1914-1996) e Joe Shuster (1914-1992). O personagem só conseguiu se tornar um sucesso de público quando publicado no formato de revistas em quadrinhos; seus autores tentaram publicá-lo anteriormente como tiras cômicas, mas sem sucesso. Talvez sua combinação de roupas espalhafatosas e superpoderes dependessem de um formato tão exagerado quanto.
A partir da revista em quadrinhos Superman (1938-), inventou-se um gênero narrativo específico no interior da linguagem das HQs, centrado na figura do super-herói. A explosão de personagens que se seguiu a Superman permite vislumbrar algumas das possibilidades narrativas deste gênero. Afora a ficção científica que inspirou a criação do personagem de Siegel e Shuster, a literatura policial hard boiled presente em títulos pulp como Black Mask (1920-1987) e Detective Fiction Weekly (1924-1951) serviu de pano de fundo para Batman (1939-), personagem mascarado que, nos seus primeiros anos, não se furtava a assassinar vilões para limpar Gotham City do crime. Um menino vendedor de jornais ganha os poderes de um mago ao gritar as iniciais dos "deuses" Salomão, Hércules, Atlas, Zeus, Aquiles e Mercúrio – Shazam! – e se tornar Captain Marvel (1939-1953), sucesso que logo se tornaria o principal rival de vendas de Superman. Wonder Woman (1941-) integrava narrativas mitológicas sobre as amazonas gregas de Temiscira às ideias da sufragista Emmeline Pankhurst (1858-1928). E Captain America (1940-) valeu-se das questões políticas envolvendo os EUA e a guerra contra o nazi-fascsmo que tomava seu curso na Europa e que demandava a entrada dos super-heróis no front – não por acaso a capa de estreia da revista apresentava o personagem esmurrando o rosto do ditador alemão Adolf Hitler (1889-1945). Ao lado destes mais conhecidos, inúmeros outros de existência menos gloriosa acompanharam a explosão dos impressos causada pela entrada dos super-heróis no mercado. Estima-se que mais de 700 super-heróis povoaram revistas em quadrinhos de fins dos anos 1930 até a primeira metade da década de 1940, chegando à marca de 40 títulos diferentes em 1944.
Além de consumidas no interior dos EUA, o contexto da Segunda Guerra Mundial explica boa parte do rápido êxito das revistas em quadrinhos e a profusão de títulos que se observa a partir do fim da década de 1930. Revistas em quadrinhos eram enviadas aos fronts de batalha e lidas por soldados como entretenimento e forma de aplacar as saudades da terra natal.
Um conflito de dimensões tão dramáticas parecia exigir personagens fantásticos para ser superado de uma vez por todas. Talvez tenha sido esta percepção do periódico nazista Das Schwarze Korps ao denunciar em sua edição de 25 de abril de 1940 as origens judaicas de um dos criadores de Superman. Descrito como um "jovem israelita" e "física e intelectualmente circuncisado", "Jerry Israel Siegel" criara uma "figura colorida" de "corpo superdesenvolvido e mente atrofiada". A partir do personagem, Siegel "semeava o ódio, a suspeição, o mal, a preguiça e a criminalidade no coração dos jovens leitores". Em resumo, conforme denúncia de Joseph Goebbels (1887-1945), "Superman é judeu" e precisava ser combatido.
Assim como o cinema norte-americano, comics foram censurados e proibidos na Alemanha nazista. Processo similar ocorreu na Itália a partir de 1937, com a criação de um "Ministério da Cultura Popular" dedicado à promoção da cultura italiana e da latinidade como princípios formativos para crianças e jovens. O que de fato é curioso é Mickey – traduzido como Topolino – manter-se em circulação até 1942 a despeito da censura às HQs dos EUA. As explicações variam entre o gosto pessoal da família do ditador italiano Benito Mussolini (1883-1945) pelas aventuras do famoso personagem dos estúdios Disney a acordos estabelecidos entre o regime fascista e Arnoldo Mondadori (1889-1971), responsável pela edição exclusiva dos títulos Disney no país e editor de confiança de Mussolini. Como bem percebe Yambo, protagonista de La misteriosa fiamma dela regina Loana (2004), do italiano Umberto Eco (1932-2016), ecos do fascismo ficam mais claros entre 1942 e 1943, quando legendas passaram a substituir os balões de fala e "Mickey [Topolino] foi assassinado" para ceder lugar a Tuffolino, um espécie de Mickey antropomórfico. Interrompida de vez em 1943, Mondadori retoma a publicação em 1945, com destaque para publicação de artistas italianos que adaptavam os personagens da Turma do Mickey em obras como A Divina Comédia, Otelo e Guerra e Paz.
Apesar de a Segunda Guerra Mundial não ter implicado em grandes transformações nas técnicas e práticas de edição em torno das HQs, a partir dela é inevitável pensar a dimensão política presente na leitura de imagens em sequência. Um país como a França veria a profusão de impressos em quadrinhos associados a grupos tão distintos como o Partido Comunista – Le Jeune Patriote, publicada na França ocupada pelo exército alemão e que depois se tornaria Pif Gadget (1969-) – e a Igreja Católica, por meio de Coeurs Vaillant (1929-1981), que introduziria o personagem Tintin (1929-1976), de George "Hergé" Remi (1907-1983), ao público francês. Era o primeiro passo de sucesso daquele que levaria o general Charles De Gaulle (1890-1970) a confidenciar ao então Ministro de Assuntos Culturais, André Malraux (1901-1975): "No fundo, você sabe que meu único rival internacional é Tintin!"
"Bipolaridade" é a palavra de ordem para designar o alinhamento dos países aos regimes capitalista e comunista a partir do fim da Segunda Guerra Mundial. Uma ideia análoga pode ser pensada desde as HQs se levarmos em conta que, ao lado do polo representado pelos comics norte-americanos, observa-se o estabelecimento gradual – visto que data da década de 1930 – e definitivo de outro polo definidor desta linguagem a partir de então: a bande dessinée de origem franco-belga. Do repórter anticomunista que relata histórias repletas de conotações imperialistas a jovem aventureiro ao redor do mundo, o mundo franco-belga do pós 2ª Guerra Mundial encontraria em Tintin o modelo por excelência de como produzir bande dessinées, a partir do uso de traços e contornos marcantes em cor preta e de pouco sombra, elementos que se passaram a compor aquilo que se classifica como estilo ligne claire. Hergé era um leitor de HQs dos EUA – obtidas via México através correspondente do jornal Le Vingtième Siècle, Léon Degrelle (1906-1994), para o qual viria a trabalhar em 1928 como diretor do suplemento juvenil Le Petit Vingitème – encantado com as novas técnicas e o recurso dos balões de fala difundidos pelas HQ. No suplemento, publica suas primeiras páginas protagonizadas por um jovem rapaz, acompanhado de seu cachorrinho branco. Logo o diretor do Le Vingtième Siècle, o abade Norbert Wallez (1882-1952), sugere uma parceria: Hergé elaboraria uma história onde Tintin faria uma viagem enquanto repórter do jornal para cobrir a realidade de um local escolhido por Wallez, e o resultado da "reportagem" seria publicado de maneira serializada entre 1929 e 1930 em Le Petit Vingitème. De perfil anticomunista e inclinações fascistas, Les Aventures de Tintin, reporter du Petit Vingtième au pays des Soviets foi pensada enquanto uma crítica à recém-criada U.R.S.S. A série se tornou um sucesso: logo foi distribuída para outros países da Europa e editada em formato álbum já em 1930.
Títulos como Phantom, de Lee Falk (1911-1999), as adaptações de Tarzan para HQs produzidas por nomes como Hal Foster (1892-1982) e Burne Hogarth (1911-1996) e, de forma mais ampla, as incontáveis revistas em quadrihos ambientadas nas selvas africanas que tanto representaram a decadência cultural norte-americana de fins dos anos 1930 para Henry Miller em seu Air-Conditioned Nightmare (1945), ajudaram a consolidar representações bastante específicas sobre o continente africano nas HQs. Tais imagens oscilam entre uma natureza selvagem habitada por homens igualmente selvagens, carentes de lideranças e de ordenação para lidar com os problemas de uma realidade ainda distante de qualquer projeto civilizatório. Outra série que contribuiu para reforçar tal olhar colonizador foi a terceira saga de Tintin, dedicada a levar o personagem-repórter para o Congo Belga. Publicada em série entre 1930 e 1931 e editada em volume único em 1931, a HQ é repleta de construções etnocêntricas e de exaltação do projeto imperialista sobre a região, sendo não raro acusada de racista, ao ponto de ter sido a última série de Tintin traduzida para o inglês, dadas as resistências de editores devido ao seu contéudo. Não menos curiosa é a história da recepção de Tintin au Congo na República Democrática do Congo, antes e depois da sua independência da França, em 1960, onde gozou de grande popularidade, ainda que a dimensão colonial não tenha sido perdida de vista por alguns. Quando encontrou-se com o pintor congolês Tshibumba Kanda-Matulu (1947-1981) para discutir suas obras de perfil histórico que iriam compor a obra Remembering the Present: Painting and Popular History in Zaire, o antropólogo Johannes Fabian (1937-) foi comparado pelo próprio Tshibumba a Tintin – possivelmente por sua postura de etnógrafo e pelo olhar curioso de europeu perante a experiência colonial.
Outro admirador dos comics foi o parisiense René Goscinny (1926-1977) que, após viver a infância e adolescência na Argentina, em 1946 segue para os EUA em busca de oportunidades como ilustrador. Lá conhece Harvey Kurtzman (1924-1993) e Jack Davis (1924-2016) – nomes que atuaram na revista Mad – e é introduzido ao humor satírico e ao mercado de HQs dos EUA. Em 1951 retorna a Paris, onde conhece Albert Uderzo e inicia a produção de clássicos das HQs, dos quais merece destaque Astérix (1959-2010). A saga da dupla de bravos gauleses que resiste às investidas romanas que avançam pela Europa conquistou legiões de admiradores por todo o mundo, curiosos em escavar os jogos de linguagem que articulam passado e presente ao longo da série. A localização das histórias em realidades essencialmente ligadas à história europeia levou a muitos a considerar que, assim como Roma não atravessou o Atlântico, a série Astérix também teria se deparado com similar barreira para avançar rumo ao público norte-americano – o que explica a fria recepção da série nos EUA. Nem mesmo um álbum dedicado à ida de Asterix e Obelix aos EUA – La Grande Traversée (1975) – ajudaria a popularizar o personagem. Cabe destacar, porém, que Tintin também conta com fria receptividade nos EUA, o que aponta para diferenças nas formas de circulação e recepção de mídias entre os dois lados do Atlântico. Se a introdução de elementos associados à cultura de massas norte-americana na Europa veio sob a esteira de celebrár-los como objetos artísticos, tais como filmes de crimes – filmes noir – e jazz, por exemplo, o caminho foi um tanto quanto distinto quando as BDs franco-belgas saíram rumo aos EUA. Oriundas de um meio cultural que as produziram para consumo interno e sem pretensões de torná-las uma commodity a ser exportada, tal barreira se simboliza pela estruturação de um formato editorial bastante específico – o álbum de BD, de capa mole – e que não se adequavam às expectativas de comerciantes e leitores de comics nos EUA. Grosso, eram elaborados demais para serem comercializados nos espaços então consolidados para comic books, mas também não encontravam guarida nas seções de livrarias dedicadas a humor e cartum.
Afirmar tal bipolaridade de maneira tão categórica não daria conta de abranger outras vias que atestam a diversidade da experiência transatlântica dos comics. As primeiras editoras dedicadas a publicar revistas em quadrinhos na América Latina surgiram, de forma geral, no pós-2ª Guerra Mundial, como nos casos da Editora Brasil-América Limitada (EBAL-1945-1995), da mexicana Editorial Novaro (1948-1985) e da Editorial Abril (1947-1992), entre outras. A EBAL era dirigida por Adolfo Aizen (1907-1991), imigrante judeu russo que migrara aos dez anos de idade para o Brasil e que para muitos se tornaria o "pai das revistas em quadrinhos no Brasil". A mexicana Editorial Novaro (1948-1985) logo se tornaria uma gigante das revistas em quadrinhos e difundiria suas revistas por boa parte da América Latina. Já a Editorial Abril foi fundada em 1941 pelo ítalo-americano Cesare Civita (1905-2005) na Argentina, responsável pela distribuição de diversos personagens Disney na América Latina. De origem judaica, Civita teve de sair da Itália em 1938, emigrando para a Argentina e levando para lá sua experiência enquanto editor de HQs Disney na Mondadori. Logo direcionaria a editora para a produção de revistas em quadrinhos, abrigando muitos desenhistas italianos após a Segunda Guerra Mundial, dentre os quais Dino Battaglia (1923-1983) e Hugo Pratt (1927-1990), entre outros. Era o primeiro passo daquilo que se convencionou chamar de "tradição ítalo-argentina" de HQs. Ao lado de nomes como os argentinos Alberto Breccia (1910-1993) e Hector Germán Osterheld (1919-1977) e do brasileiro João Mottini (1923-1990), Pratt se tornaria um dos celebrados artistas a compor o "curso dos doze famosos artistas" ofertado pela Escuela Panamericana de Artes, sob a direção de Enríque Lipszyc. Após retornar à Europa em fins da década de 1950, as experiências de Pratt enquanto viajante seriam incorporadas ao seu trabalho sob a figura do marinheiro Corto Maltese, cujas histórias ambientavam-se em locais tão distintos quanto Brasil, Etiópia e Guiana Francesa.
Em 1945, Aizen entrou em contato com Civita na Argentina, com vistas a produzirem uma edição em português de uma revista em quadrinhos com personagens, textos ilustrados e passatempos Disney. Ainda que de fraco retorno comercial, Seleções Coloridas e Coleção Walt Disney introduziram Aizen de vez no mercado das revistas em quadrinhos. Mas, no Brasil, a Disney ficaria também nas mãos dos Civita. Em 1949, Victor Civita (1907-1990), irmão de Cesare, migrou para São Paulo, assumindo a tarefa de montar uma editora no país. A Editora Abril logo estrearia em maio de 1950 com Raio Vermelho, revista em formato horizontal contendo HQs de origem italiana já publicadas na Argentina. Em julho do mesmo, saía a revista em quadrinhos O Pato Donald, publicada de forma ininterrupta até hoje.
As HQs relacionadas ao universo de personagens Walt Disney também farão sua estreia em diversos países do mundo transatlântico a partir do fim da Segunda Guerra Mundial. Afora o já citado caso italiano, uma exceção bem conhecida é a França, onde a consolidação dos personagens Disney data de meados dos anos 1930, a partir da publicação do Journal du Mickey, revista editada por Paul Winkler (1898-1982), diretor da Opera Mundi e representante do King Features Syndicate na Europa. Um país como a Alemanha terá sua primeira revista em quadrinhos com personagens Disney em 1950, cinco anos após a queda do III Reich e da proibição de comics Disney durante o nazismo. A partir de meados dos anos 1950, Na África do Sul, revistas inteiras de personagens Disney originalmente publicadas pela Dell Publications foram reimpressas e traduzidas para o africâner pela Zebra Publications, que também passou a publicar trabalhos da DC Comics e adaptações literárias da série norte-americana Classics Illustrated. Se suas origens remetem ao cinema de animação, as HQs Disney logo atraíram uma legião de leitores, contribuindo para a consolidação transatlântica da linguagem e de práticas de edição em torno da HQ.
HQs em formato de tiras cômicas para jornais e em revistas em quadrinhos tinham recepções bastante distintas. Enquanto a uma reservava-se o reconhecimento da crítica cultural e o entretenimento da leitura partilhada em família através do jornal, as revistas em quadrinhos rapidamente passaram a ser vistas com cada vez mais desconfiança. Vejamos o caso da série The Spirit (1940-), de Will Eisner. Ao contrário de Superman, Batman e outros super-heróis publicados em revistas em quadrinhos, a HQ e seu autor não seriam importunados pelos críticos que se seguiram às vendagens cada vez mais expressivas destas publicações. Por quê? The Spirit era uma espécie de revista em quadrinhos de super-herói publicada como um suplemento dominical de jornais. Ao ingressarem em outros contextos, as fronteiras entre tiras cômicas e revistas em quadrinhos poderiam ser borradas, causando algumas interpretações bastante específicas em torno das HQs e seus personagens. O caso dos super-heróis em alguns países da América Latina pode nos servir de exemplo. Eles ingressaram no mercado de impressos em alguns países da região em paralelo com outros heróis carentes de atributos "super-heroicos" e de gênero tão distintos como detetive, aventuras na selva e ficção científica. Saíam juntos em suplementos de jornais e as revistas em quadrinhos mantiveram tal indistinção de gêneros. Vejamos o caso da EBAL. Seus primeiros super-heróis veiculados em revista em quadrinhos própria foram lançados em 1947, sob o título de Herói. Poucos meses depois, a editora publicou a revista em quadrinhos Superman. Na capa, o conhecido super-herói é acompanhado por Batman e Robin. Porém, chama a atenção o editorial apresentando a revista, que aponta ser Super-homem um dos "Superman", assim como também são Batman, Joel Ciclone – nome adotado para o personagem Flash (1940-) – e outros personagens mais ou menos dotados de superpoderes.
Personagens tão distintos como Superman, Batman, Dick Tracy (1931-) e Mandrake The Magician (1931-), entre outros, foram compreendidos de forma indiscriminada, como se todos contassem com o mesmo super poder: o poder de pertencerem ao império norte-americano. Os EUA se tornavam uma espécie de Kripton, terra de origem de Superman – cuja sucursal latino-americana era o México. Por intermédio da Editorial Novaro (então Editorial SEA) e de autorização especial que lhe permitia distribuir HQs dos syndicates para outros países latino-americanos de língua hispânica, HQs dos EUA editadas no México tomaram o mercado latino-americano de revistas em quadrinhos ao longo dos anos 1940-1950. De acordo com os referenciais marxistas dos anos 1960-1970, para o intelectual chileno Manuel Jofré (1944-) a Editorial Novaro representava "(...) uma instituição chave dos aparelhos hegemônico-ideológicos dos Estados Unidos, utilizados para expandir a adesão aos EUA na América Latina".
Obtidos a preços bastante reduzidos, possivelmente os super-heróis eram considerados um produto bastante específico da cultura dos EUA e valorizados enquanto tal. Tais personagens nunca mais desapareceriam do horizonte cultural, bem como as revistas em quadrinhos, a despeito de eventuais quedas de vendas que se intensificaram nos anos 1950 graças a fatores tão distintos como a chegada da televisão nos lares norte-americanos, a regulamentação da distribuição de revistas em quadrinhos e o esgotamento da demanda, entre outros. À queda no número de super-heróis publicados ao longo dos anos 1950 – que sofrem uma derrocada no pós-2ª Guerra, quando perdem espaço para publicações como revistas em quadrinhos de romance, faroeste e horror, por exemplo – logo se observa o seu retorno na década seguinte, a partir do êxito dos personagens da editora Marvel Comics. Por outro lado, é marcante a ausência de super-heróis nacionais de sucesso em contextos tão distintos como o francês, o argentino, o espanhol e o mexicano, entre muitos outros.
Se, para muitos, o Congo resume-se às distantes e exóticas paragens descritas por Tintin, muito poderia ser dito sobre suas HQs e, mais especificamente, sobre um super-herói nascido na região, dos primeiros que se têm registro no continente africano. Publicado em 1957 no jornal L'Avenix, Sao é um típico super-herói: hipermasculinizado, defensor da ordem e combatente dos vícios presentes no Congo Belga. Formas originais de circulações dos super-heróis também ocorreram em Gana, nas cidades de Accra e Kumasi, em meados dos anos 1970, quando personagens da editora Marvel Comics foram misturados a figuras bem conhecidos do folclore axante/twi. Como no caso do personagem Spiderman, que dialoga numa dada HQ com Anansi, personagem mitológico que assume forma de aranha e é considerado o espírito de todas as narrativas do mundo. Ambos se unem para defender os ganenses da violência de soldados e da ganância de políticos mas, perseguidos por estes, precisam se esconder entre a própria população de Gana. Juntos, movimentam-se a favor da justiça e da defesa de valores associados ao passado glorioso do país, valendo-se de superpoderes e/ou da mobilização popular. Publicadas sob a forma de panfletos mimeografados, assumem conotação efetivamente sincrética ao incorporarem figuras de origens tão distintas a favor de outras narrativas, ressignificando referências mitológicas e propondo uma interpretação crítica a partir de elementos da cultura de massas.
Captain Africa, publicada em meados nos anos 1970 na Nigéria, é outro exemplo de apropriação cultural da estética e linguagem dos super-heróis fora do contexto norte-americana. Obra do artista de origem ganesa Andy Akman e editada pela African Comics Ltd., a revista em quadrinhos Captain Africa foi concebida como uma resposta à serie norte-americana de TV homônima dos anos 1950, onde Captain Africa era enviado à África para resolver conflitos na região, bem como colocava em xeque HQs "imperialistas" como Tarzan e Phantom. Com um personagem devidamente uniformizado – o que incluía uma capa para suer velocidade e a silhueta do continente africano estampado em seu peito –, a revista Captain Africa contava a história de um empresário bem sucedido que vivia numa espécie de África idealizada e que assumia a identidade super-heroica para combater problemas bem conhecidos do leitor nigeriano dos anos 1980, como sequestros e assassinatos de crianças. A publicação ganhou popularidade entre críticos após elogioso artigo no jornal New York Times, mas detalhes aprofundados sobre sua produção, periodicidade e circulação são desconhecidos até hoje.
Outros trabalhos buscaram despontar a partir da crítica ao imperialismo cultural representado pelos comics norte-americanos e do modo de vida que representariam. Entre 1964 e 1973, Mafalda é publicada e torna-se uma das personagens latino-americanas de maior êxito no mundo transatlântico das HQs. Concebida originalmente para servir de propaganda de uma marca de eletrodomésticos, a ideia não vingou e, já livre das prerrogativas publicitárias, a personagem de Quino (1932-) seria uma espécie de Peanuts latino-americana, levando a cabo as aflições da Guerra Fria segundo o olhar de uma criança.
Quando questionado sobre a famosa personagem, o escritor argentino Julio Cortazar (1914-1984) disse: "aquilo que eu penso sobre a Mafalda não tem a menor importância. Realmente importante é aquilo que a Mafalda pensa de mim". Posicionamento bastante distinto assumiu quando soube que ele próprio fora transformado numa HQ, quando fez uma participação especial numa edição da revista em quadrinhos mexicana Fantomas, la Amenaza Elegante (1966-1985), publicada pela editora Novaro. Apesar de toma como referência o famoso personagem da literatura popular francesa criado por Marcel Allain (1885-1969) e Pierre Souvestre (1874-1914), no México e em parte da América Latina Fantomas se tornara mais conhecido no pós-2ª Guerra Mundial através de sua versão de revista em quadrinhos. Nela, o personagem supera as características originais do personagem associado ao mundo do crime e assume perfil híbrido: é um pouco de super-herói, de James Bond, de Robin Hood e carrega alguma pretensão intelectual. Numa HQ em especial, Fantomas deve impedir que um desconhecido apreenda e destrua todos os livros do mundo. Para tal, busca ajuda dos escritores Alberto Moravia (1907-1990), Octavio Paz (1914-1998), Susan Sontag (1933-2004), e do próprio Cortazar. Quando avisado sobre a revista, Cortázar a lê e decide produzir outra revista em quadrinhos protagonizada por Fantomas, desta vez apontando que o "bibliocídio" que investigara não se devia tanto a uma espécie de lunático, mas sim à cultura imperialista das grandes corporações multinacionais. Daí resulta um dos seus trabalhos mais criativos, onde mescla fotografia, prosa e HQs, intitulado Fantomas contra los vampiros multinacionales.
A promoção de políticas de Estado de perfil autoritário sobre as HQs se prolongaria ao longo dos anos, como ilustra o caso da editora Afri-Comics, que publicou revistas em quadrinhos simpáticas ao Apartheid. As informações são um tanto vagas, sobretudo devido ao fato de terem sido publicações de vida breve – de 1975 a 1977 – e parte de uma política de produção de conteúdo midiático em inglês como forma de defender o projeto de segregação racial ora em voga – ou, nas palavras de um dos colaboradores, "para ajudar a educar os homens negros no caminho da sociedade ocidental, das preocupações sociais e da livre iniciativa". As HQs teriam sido produzidas por um norte-americano, que vendeu sod direitos para um editor de jornal pró-Apartheid, o que teria levado à exclusão de HQs simpáticas a lideranças como Amílcar Cabral (1924-1973), substituídas por adaptações de folclore e biografias de jogadores de futebol. Publicaram dois títulos: Mighty Man e Tiger Ingwe, com tiragens mensais que ultrapassavam as 40.000 cópias. Falando apenas de Mighty Man, os enredos eram protagonizados por personagens negros, incluindo o personagem-título, um policial que fora baleado ao tentar evitar um assalto e que adquire superpoderes ao ser levado para as profundezas de um lago localizado numa caverna secreta. A partir de então, torna-se Mighty Man e assume para si as prerrogativas de livrar sua cidade – muito parecida com Soweto, cidade contígua a Joanesburgo e criada para segregar a população negra – de traficantes de drogas e bandidos locais. O fim das atividades da Afri-Comics deve guardar relação com o escândalo que estourou em 1978 envolvendo o desvio de verbas do Ministério da Informação para favorecer publicações simpáticas ao regime, mas a versão oficial adirma que, durante os levantes de Soweto, muitas bancas de jornal foram queimadas por veicularem a revista e outras publicações pró-Apartheid. Não deixa de ser irônico imaginar que um personagem como Mighty Man foi derrotado justamente por aqueles que tanto buscou defender.
Inicia-se o gradual reconhecimento cultural das HQs a partir de debates em torno das circulações possíveis entre cultura erudita e cultura de massas, já prenunciado por nomes importantes de campos como o cinema e as artes. Em Toute la Mémoire du Monde (1956), de Alain Resnais (1922-2014), HQs do personagem Mandrake são dispostas próximas à bibliografia disponível na Biblioteca Nacional da França. Nos EUA, Robert Rauschenberg produz uma série de obras entre 1953 e 1955 que integra páginas de HQs a anúncios publicitários, tiras de pano e rajadas de tinta, numa estética violenta que parece dialogar com os debates sobre os malefícios causados pela leitura de HQs.
Produzida durante o período em que viveu com Rauschenberg em Nova York, Alley Oop (1958), de Jasper Johns, parte da famosa tira homônima de Vincent Hamlin (1900-1993) para produzir uma obra de orientação abstracionista a partir de elementos próprios da linguagem das HQs, como balões de fala e quadros em sequência. Isso para não falar da exposição Bande dessinée et figuration narrative no Musée des Arts Décoratifs (Paris, 1967), antecedida pela 1ª Exposição Internacional de Histórias em Quadrinhos no Brasil (1951), contendo originais de Eisner, Milton Caniff (1907-1988) e outros nomes das HQs tidos como representantes da estética própria das HQs.
Enquanto a exposição francesa gerou um catálogo que se tornaria referência obrigatória para o estudo de HQs no país, a exposição brasileira contou com o então e futuro professor universitário Álvaro de Moya. A intelectualidade já se rendera às HQs anos antes a partir de Umberto Eco e sua coletânea de ensaios Apocalittici e Integratti (1964). Na América Latina, Para Leer al Pato Donald supera as expectativas iniciais de seus autores, Ariel Dorfman (1942-) e Armand Mattelart. Escrita como um libelo político ácido e bem humorado, a obra se difundiria pelas faculdades de Comunicação da América Latina, tornando-se bibliografia básica em muitos cursos.
Ainda no campo das artes plásticas, alguns trabalhos que abordaram de forma pioneira temas que seriam desenvolvidos pelos artistas pop norte-americanos foram antecipados na Europa. O alemão Kurt Schwitters (1887-1948) incorporara HQs a uma colagem de 1947 que mais parece um cartão-postal fragmentado da presença norte-americana no continente logo após o término da Segunda Guerra Mundial. A inspiração para a colagem teria vindo da também dadaísta Kate Steinitz (1889-1975) que, tendo emigrado há pouco mais de dez anos antes para os EUA, embrulhava cartas enviadas para Schwitters com páginas de HQs, de forma a apresentar-lhe um pouco a vibração da sociedade norte-americana de então.
Em diálogo com Rauschenberg e sua defesa da multiplicidade dos códigos de representação e sentidos sociais de cada mídia reunidos em uma só obra, Just what is it that makes today's homes so different, so appealing?, de Richard Hamilton introduz uma maior carga icônica na elaboração de discursos no interior da obra. Atualmente é considerada fundamental para a compreensão da Pop art por seu diálogo com práticas como a publicidade e o design, o debate em torno da sociedade de consumo e a utilização de processos criativos como a colagem e a justaposição de referências históricas e culturais distintas.
Dentre os vários elementos que compõem o mosaico pop de Hamilton, destaca-se citação à revista em quadrinhos Young Romance, item definido por sua "informação pictórica", de acordo com listagem feita pelo artista para a composição da colagem. Lançada em 1947 pela Crestwood Publications, Young Romance consolidou o gênero de revistas em quadrinhos de romance a partir dos roteiros e desenhos de Joe Simon (1913-2011) e Jack Kirby, os mesmos criadores de Captain America. Tida por muitos como trivial, uma publicação como Young Romance ajudou a consolidar um estilo de desenho que inspiraria a composição das narrativas dos super-heróis Marvel – criados, em sua maioria, a partir da parceria de Kirby com Stan Lee – na década de 1960 e serviria de inspiração para a Pop Art e, mais especificamente, Roy Lichtenstein (1923-1997).
O conjunto dos trabalhos de Lichtenstein é reconhecido por ressaltar os aspectos formais da arte das HQs, obtendo expressivos resultados plásticos. Elementos das HQs como cores berrantes, traços grossos e bem definidos e os pontos Ben-Day se constituem em uma estética massificada e naturalizada a partir do consumo diário; Lichtenstein as reproduz manualmente e promove alterações formais sobre elas, num meticuloso exercício de diálogo com a sociedade de consumo do seu tempo. Porém, nem sempre a apropriação da Pop art sobre as HQs foi bem recebida pelos artistas envolvidos na produção de revistas em quadrinhos. Acusações de plágio são comuns ainda hoje, mobilizando artistas e fãs de HQs a valorizarem os artistas que serviram de inspiração para os quadros de Lichtenstein. Jack Kirby, Gil Kane (1926-2000) e Irv Novick (1916-2004), apenas para ficar nos nomes mais conhecidos, nunca foram creditados por Lichtenstein. Porém, as HQs não permaneceram inertes às questões estéticas e culturais colocadas pela Pop art sobre elas e logo referências a ela passaram a ocupar páginas de algumas revistas em quadrinhos; a série de TV Batman, por exemplo, inspirou-se diretamente na estética pop e, graças ao seu grande sucesso, ajudou a alavancar as vendas da revista em quadrinhos do personagem em fins da década de 1960.
Outra inovação editorial no universo das HQs se iniciou a partir de fins dos anos 1960, com publicações difundidas à margem das grandes editoras de revistas em quadrinhos, na esteira da atmosfera contracultural dos EUA. Autores como Robert Crumb (1943-) e Gilbert Sheldon (1940-) começaram a publicar suas HQs em veículos alternativos e independentes, consolidando o que se associaria a uma cultura de fanzines nos anos 1970. Suas obras passaram a compor o que foi classificado por underground comix, categoria que engloba trabalhos de perfil satírico, traço sujo, ataques ao American way of life e com distribuição independente. Isso lhes permitiu driblar censura prévia de editores e normas de publicação como o Comics Code Authority, regulamento criado em 1954 pelas principais editoras dos EUA para atender as críticas sofridas durante os anos 1940 e 1950. Isso significou reposicionar os underground comix não mais em bancas de jornal ou farmácias, mas em lojas especializadas em HQs, produtos de contracultura ou head shops. É o embrião do chamado Direct Market vigente até hoje, baseado em pedidos prévios e em menor escala, vendidos em locais especializados. A lição dada por William Gaines (1922-1992) nos anos 1950 parece ter sido bem aprendida pela geração seguinte: em meio às pressões que sofria por suas revistas de terror e à beira da falência, o responsável pela EC Comics (Educational Comics e depois Entertainment Comics) adaptou sua Mad (1952-) e a transformou de uma revista em quadrinhos para um magazine contendo textos ao lado de HQs. Isso fez Mad escapar do Comics Code e se transformar num fenômeno internacional.
O direcionamento das HQs para um público adulto se consolidou nos anos 1980, a partir de trabalhos contendo enredos complexos, tramas elaboradas pensadas como obras fechadas e que ganhariam a alcunha de graphic novels. Dentre os formatos discutidos até aqui, a graphic novel é certamente um dos que mais se beneficiaram das trocas artísticas transatlânticas. Podemos pensar a partir de dois movimentos: o primeiro, de artistas europeus que buscaram inserção no mercado norte-americano; o segundo, de impressos europeus que se difundiram nos EUA. Em relação ao movimento de artistas europeus, cabe exemplificar com o processo que se convencionou chamar de "invasão britânica" nos comics. Uma geração de nomes que já atuava na produção de HQs na Inglaterra encontrou espaço para atuar nas grandes editoras norte-americanas Marvel Comics e DC Comics, promovendo uma efetiva reviravolta em termos estéticos. Nomes como Alan Moore (1953-), Neil Gaiman (1960-), Dave Gibbons (19149-) e Brian Bolland (1951-), entre outros, contribuiriam para reformular HQs de super-heróis a partir de enredos de tons sombrios e violentos, com inclinações filosóficas. Para a editora Karen Berger, responsável pela criação do selo Vertigo – linha da DC Comics dedicada a HQs de perfil adulto –, a geração de artistas britânicos apresentava uma "frescor distinto, uma esperteza e uma sensibilidade subveriva" que era distinta da maioria dos artistas norte-americanos.
Já em relação ao caso dos impressos europeus nos EUA, chama atenção uma revista como a francesa Métal Hurlant (1974-2004), publicada originalmente por Les Humanoïdes Associés, editora criada por artistas de HQ como Jean "Moebius" Giraud (1938-2012), Jean-Pierre Dionnet (1947-) e Philippe Druillet (1944-). Traduzida, passa a se chamar Heavy Metal e é publicada nos EUA, com intervalos, desde 1977. A partir de Heavy Metal, o público norte-americano pôde entrar em contato mais permanente com uma série de artistas franceses dedicados a obras de ficção científica – além dos já mencionados, Enki Bilal (1951-), Philippe "Caza" Cazaumayou (1941-), entre outros – e italianos, como o autor de HQs eróticas Milo Manara (1945-) e a dupla Stefano Tamburini (1955-1986) e Gaetano "Tanino" Liberatore (1953-). Tamburini e Liberatore são os criadores de RanXerox (1978), uma espécie de anti-herói punk que é criado a partir da junção de peças de máquinas fotocopiadores da empresa Rank Organization, distribuidora da Xerox Corporation na Europa. O personagem faria tanto sucesso que levaria até mesmo Frank Zappa tornar-se uma espécie de RanXerox, conforme ilustrações de Tamborini para o disco The Man from Utopia (1983). Integrando os dois movimentos que levaram artistas e impressos da Europa aos EUA, vale destacar que a direção atual da revista Heavy Metal está sob o comando do escocês Grant Morrisson (1960-).
Se Eisner é um dos nomes que ajudou a estabelecer o graphic novel enquanto formato privilegiado para a elaboração de narrativas em HQs, a obra de Art Spiegelman (1948-) representa uma significativa consciência dos limites e possibilidades desta linguagem. Em Maus: a survivor's tale (1978-1991), os limites da representação do Holocausto são abordados a partir da linguagem das HQs, colocando-se a seguinte questão: é possível enquadrar ou representar "comicamente" – ou seja, em formato de comics – a experiência do Holocausto? Vencedora de um prêmio Pulitzer em 1992, a obra é representativa da circulação das HQs entre a cultura erudita e a cultura popular, ao discutir a memória do Holocausto a partir de um amplo trabalho de pesquisa iconográfica, bibliográfica e de arquivo e de entrevistas com o pai do autor, sobrevivente de Auschwitz que migrou para os EUA após a guerra.
Uma das formas de perceber as graphic novels como um momento de afirmação do caráter autoral das HQs é através da profusão de obras de perfil autobiográfico e que se dedicaram a articular experiências pessoais e questões políticas. Persepolis (2000-2003), de Marjane Satrapi (1969-) é referência importante desta vertente. A obra descreve as percepções da autora sobre as transformações políticas e culturais advindas da Revolução Iraniana a partir de suas memórias de infância. Entre idas e vindas, o leitor acompanha Satrapi em Teerã, Viena, e, para escapar da atmosfera cada vez mais sufocante do regime iraniano para o qual retornara, Strasbourg. Com sua estrutura de bildungsroman, Persepolis foi sucesso de público e críticas, chegando a ser adaptada para o cinema de adaptação.
Os conflitos no Oriente Médio também alimentam a obra de Joe Sacco (1960-). Nascido em Malta, migrou para os EUA após passar a infância na Austrália. Envolveu-se com underground comix e se formou em Jornalismo pela Universidade de Oregon. A ele é associada a expressão comics journalism devido a obras como Palestine (1996), Footnotes in Gaza (2009), Safe Area Goražde (2000) e The Fixer (2003). As duas primeiras se dedicam aos conflitos entre palestinos e judeus a partir de amplo trabalho de campo realizado em Gaza, ainda que Footnotes in Gaza seja uma investigação jornalística e histórica em torno da crise do Canal de Suez (1956). Já Safe Area Goražde e The Fixer tratam da Guerra da Bósnia (1992-5), focando respectivamente em entrevistas realizadas pelo autor e nas memórias de uma espécie de guia de jornalistas pelas zonas de conflito bósnio.
O formato das graphic novels mantém a orientação transatlântica que norteou a construção histórica das HQs enquanto prática cultural. Insere-se nos processos de desamericanização das HQs experimentados nos anos de Guerra Fria na Europa, sobretudo no mundo franco-belga das BDs, ao ponto de poderem ser tomados como uma espécie de "europeização" das HQs. Enquanto formato específico de edição e publicação, ele indica a influência de práticas editoriais mais próximas à edição europeia e, mais especificamente, franco-belga, de publicação de HQs em álbuns. Se os trabalhos de Hergé, Goscinny e Uderzo permitiram estabelecer as bases de uma estética sóbria e limpa associada à ligne claire – e que podiam ser reunidas em álbuns coerentes, a geração de novos artistas que atuaram nos quadros de revistas como Pilote (1959-1989) e Métal Hurlant contribuiu para a produção de HQs com temáticas mais densas e de perfil filosófico.
Ao lado das graphic novels, as últimas décadas presenciaram a disseminação de práticas editoriais e de leitura associadas aos mangás japoneses, com novos modos de ler associados a uma visualidade própria de tal escola de HQs. Trata-se de mercado bastante lucrativo e que movimenta bilhões de dólares no Japão e outros milhões em países como França, Canadá e EUA. As novas gerações de leitores ocidentais parecem já ser alfabetizadas desde cedo na leitura de mangás, lidando de forma bastante natural com o fato de a leitura se orientar da direita para a esquerda, ao invés do padrão ocidental inverso. Aos saberes em circulação e que conformaram noções transatlânticas em torno das HQs, o cenário atual aponta para uma dimensão global desta linguagem.
O deslocamento da produção, circulação e consumo de HQs para além do contexto norte-americano permite reconfigurar uma nova geografia desta prática cultural, assumindo o espaço transatlântico como referência fundamental para as trocas culturais. Com isso, da New York que viu surgir os primeiros suplementos dominicais e sediou – e sedia – até hoje editoras de revistas em quadrinhos, temos hoje uma cidade como Lagos, na Nigéria, como um verdadeiro polo da produção contemporânea de HQs africanas. Lá são produzidas HQs de inúmeros gêneros e formatos, com destaque para releituras criativas de super-heróis a partir de referências da cultura dos povos africanos.
O conjunto de práticas editoriais em torno das HQs aqui apresentado por ser sintetizado a partir da carreira do brasileiro Mauricio de Sousa (1935-). Desde meados dos anos 1960, Sousa é o grande nome da indústria de HQs no Brasil, forjando um império de entretenimento que não raro o levou a ser comparado a Walt Disney (1901-1966). Seu êxito se deve a uma estratégia de inserção no mercado editorial de HQs que consistiu em lançar suas primeiras tiras cômicas e cuidar pessoalmente da sua distribuição em diversos jornais. Em paralelo, organizou equipe de produção de HQs para avançar rumo ao segmento específico das revistas em quadrinhos e outros produtos licenciados – de fraldas a extrato de tomate. Mais recentemente, porém, destacam-se outras duas iniciativas de fôlego: a celebração das memórias de seus principais personagens junto ao público adulto com a coleção "Graphic MSP", dedicada a publicar graphic novels de personagens da sua Turma da Mônica; e a série Turma da Mônica Jovem, que acrescentou teor juvenil aos personagens infantis de Sousa a partir da estética mangá. Percebe-se, pois a riqueza de informações presentes nas HQs quando tomamos sua edição, publicação e leitura desde uma escala global das circulações culturais.