Franklin Book Programs: Guerra fria e imperialismo cultural norte-americano
O Franklin Book Programs foi um programa não governamental norte-americano dedicado à promoção do...
No alvorecer do século XX, o escritor, professor e jornalista inglês Arthur Mee (1875 – 1943) criou The Children's Encyclopaedia, editada originalmente pela casa Harmsworth, em fascículos quinzenais. Mee trazia consigo a experiência de outras publicações, em que se destacara pela escrita leve e atraente no tratamento de temas elaborados. O sucesso da nova coleção, lançada entre março de 1908 e fevereiro de 1910 assegurou a reedição dos fascículos em intervalos mais curtos, com variações ainda na definição do gênero e do título da publicação – New Children's Encyclopaedia, Children's Encyclopaedia Magazine ou Children's Magazine. A partir de 1910, já era possível se adquirir os fascículos encadernados conjuntamente. Vendedores saíam em busca de possíveis públicos, oferecendo a enciclopédia como leitura destinada ao uso escolar e à formação de professores, além de entreter.1
A história das coleções enciclopédicas remonta ao século das Luzes. Embora a França tenha se celebrizado pelo extraordinário empreendimento da Encyclopédie ou dicionnaire universel des arts et des sciences, de Diderot e D´Alembert, cujo primeiro, dos dezessete volumes que reuniria, veio à luz em 1751, o projeto derivou da inglesa Cyclopedia or an Universal Dictionnary of Arts and Sciences, de Ephraïm Chambers, de 1740. Como postula Robert Darnton em "Os filósofos podam a árvore do conhecimento: a estratégia epistemológica da Encyclopédie", "o que a diferencia [a Encyclopédie] de todos os compêndios eruditos que a precederam (...)? Era ela, como perguntou uma autoridade, trabalho de referência ou 'machine de guerre'?2
Darnton parte dessa constatação para analisar o problema da conexão entre conhecimento e poder, o problema da classificação do conhecimento como um exercício do poder.
Estabelecer categorias e policiá-las é, portanto, assunto sério. (...) Diderot e D´Alembert se arriscaram muito, ao desmancharem a antiga ordem do conhecimento e traçarem novas linhas entre o conhecido e o desconhecido.
(...) O debate sobre o 'método' e a 'disposição' correta na organização do conhecimento abalou toda a república das letras, no século XVI. Daí surgiu uma tendência a comprimir o conhecimento em esquemas (...) que ilustravam os ramos e as bifurcações das disciplinas de acordo com o princípio da lógica ramista. (...) Mas o diagrama colocado no cabeçalho as Encyclopédie de Diderot, a famosa árvore do conhecimento, tirada de Bacon e Chambers, representava algo de novo e audacioso.
(...) Diderot e d´Alembert alertaram o leitor para o fato de estarem empenhados em algo mais sério que as garatujas ramistas, e descreveram seu trabalho como uma enciclopédia, ou relato sistemático da ´ordem e concatenação do conhecimento humano´, não se tratando apenas de mais um dicionário, ou compêndio de informações arrumado de acordo com a inocente ordem alfabética. A palavra enciclopédia, explicou Diderot no Prospectus, provinha do termo grego correspondente a círculo, significando concatenação (enchaïnement) das ciências. Figurativamente, expressava a noção de um mundo do conhecimento, que os enciclopedistas podiam circunavegar e mapear."3
Para forjar The Children's Encyclopaedia, Arthur Mee reuniu uma afiada equipe de colaboradores, entre os quais distribuiu a responsabilidade pelas seções permanentes que integravam cada número – "The Earth", "Men and Women", "Stories and Legends", "Golden Deeds", "Familiar Things", "Things to Make and to Do", "Natural History", "Plant Life", "All Countries", "Our Own Life", "Poetry and Rhymes", "Famous Books", "School Lessons"... Reuniu, também, um corpo de ilustradores para a produção ou escolha dos mapas, fotografias, pinturas e gravuras. Cada fascículo trazia seções cheias de encanto assinadas por Mee – "Greeting", "Farewell" e "Book of Wonder". Nesta última, um sábio respondia perguntas feitas por crianças.
A coleção seguiu sendo publicada com grande êxito sob o título The Children's Encyclopaedia. Primeiramente em oito volumes, logo em reedições ampliadas. Não tardou em ser traduzida para outros idiomas da Europa continental e da Ásia e distribuída nos cinco continentes
The Children's Encyclopaedia assumia seu sentido pedagógico, mas professava uma aprendizagem fundada sobre o prazer, a curiosidade e a imaginação. Fundada, igualmente, sobre os princípios de formação do caráter e do senso de responsabilidade. Seus conteúdos e narrativas vinham imbuídos do orgulho pelo Império Britânico e sua missão civilizatória, da filiação ao Cristianismo e do entusiasmo pela Ciência. Na medida em que a coleção se transportou para outras regiões do mundo, esses sentidos foram ressignificados. Neste ensaio, observaremos com a coleção inglesa se reelaborou para, entre fins da década de 1910 e a década de 1920, ir ao encontro dos leitores e dos mercados americanos. Essa história tem como personagem central Walter Montgomery Jackson (1863-1923), um livreiro originário do estado de Massachusetts, nos Estados Unidos.
Jackson começara sua carreira limpando livrarias e escritórios da casa editorial Estes and Lauriat, em Boston. Ali aprendeu a manufaturar e publicar livros, ajudando a empresa a expandir sua rede de distribuição. Era um defensor das estratégias de venda diretas, por encomenda postal ou visita aos domicílios, apoiada em forte publicidade. Desenvolveu um sistema de vendas de alcance nacional, em que o comprador adquiria as obras de seu interesse e diluía o pagamento em cotas mensais.
O faro comercial de W. M. Jackson o levou, em pouco tempo, a alcançar a posição de diretor de vendas de Estes and Lauriat. Em princípios dos anos 1890, além disso, passou a acumular atividades paralelas a esse emprego. Em sociedade com Leavitt K. Merril, livreiro de Nova York, aventurou-se em projetos editoriais próprios, os quais não tardaram a estender-se à América Latina.
Em 1895, Jackson uniu-se também a Francis A. Nichols na criação da The Grolier Society, futura editora da The Children's Encyclopaedia para as Américas.
Em meados de 1897, em viagem à Europa, o editor decidira instalar-se em uma casa de campo próxima a Londres. No ano seguinte, desligou-se de Estes and Lauriat e transferiu The Grolier Society de Boston para Nova York, gerindo os negócios a distância, pois continuava vivendo na Inglaterra. Foram tempos de febril atividade e algumas batalhas comerciais. Em parceria com o editor norte-americano Horace Everett Hooper, Jackson obteve os direitos de reimpressão e venda da Enciclopédia Britânica. O retorno comercial da empreitada encorajou os sócios a preparar uma edição atualizada da coleção com dez novos volumes. Encomendaram-nos a professores de prestigiadas instituições de ensino britânicas. Em 1903, a Britânica ampliada estava concluída e em franca circulação.
Por variados caminhos, Jackson experimentava formas de conquistar mesmo os leitores de baixa renda. E como as perspectivas de expansão do mercado editorial delineavam-se não apenas verticalmente na pirâmide social, mas horizontalmente no mapa mundi, Jackson também deitara seus olhos sobre a América Latina e seu imenso potencial.
Com Leavitt K. Merril, fundou a empresa "Sociedad Internacional de Editores" para explorar o mercado hispanófono na América. Logo viriam as traduções de obras para o português. Em março de 1911, a coleção "Biblioteca Universal" era colocada à venda no Rio de Janeiro, e em maio, em São Paulo. A empresa foi rebatizada como W. M. Jackson em 1914, depois de órgãos de imprensa latino-americana acusarem a Biblioteca Internacional de Obras Famosas de publicar obras incompletas. A mudança de nome representava assim um fresh start, e a Casa Jackson teria vida longa em seu propósito de abarcar, a partir da Europa neste momento, o seu continente de origem.
Os negócios do editor foram alavancados pela publicação de El Tesoro de la Juventud, ou Tesouro da Juventude, pouco tempo depois de Jackson, sentindo os efeitos da Primeira Guerra Mundial, ter voltado a viver nos Estados Unidos, em 1916. Jackson comprara os direitos de publicação da coleção britânica, The Children's Encyclopaedia, por sugestão de um vendedor ligado a The Grolier Society, que se inteirara do fato da editora Harmsworths estar em busca de um distribuidor da obra no Canadá. A. E. Smith enviou um telegrama ao chefe em Londres, propondo que se comprassem os direitos para sua venda nos Estados Unidos. Jackson incluiu no contrato os direitos para os países de língua espanhola e portuguesa.
Perfazendo então dez volumes, a enciclopédia foi lançada por The Grolier Society nos Estados Unidos. Na Inglaterra, por circunstâncias que ainda não conseguimos precisar, The Children's Encyclopaedia passara a ser publicada pela Educational Book Company, que figura como co-editora, nos primeiros tempos americanos, da coleção rebatizada como The Book of Knowledge.
Holland Thompson (1873-1940), doutor em História pela Columbia University, especialista nos processos de transição da produção agrícola à industrial na Carolina de Norte, seu estado de origem, professor de História, desde 1901, do The College of the City of New York, aparece como editor-chefe da obra, ao lado de Arthur Mee. Para chancelá-la, assinava o texto de Introdução o renomado scholar na área de Ciências Políticas, John Huston Finley (1863-1940), o qual congregou, entre outras posições ao longo de sua trajetória, as de professor de Universidades como Princeton e The University of the State of New York, reitor do The College of the City of New York, editor associado do jornal The New York Times e presidente da American Geographical Society.
The Book of Knowledge logo ganharia uma versão específica para o público canadense, igualmente chancelada por especialistas de instituições científicas de prestígio no país. E uma tradução para o espanhol.
W. F. Kellogg, colaborador de Jackson, mudou-se para Barcelona para executar o plano. As sete mil páginas do original foram traduzidas com zelo ao longo de três anos. Era preciso conciliar a correção da língua e linguagem leve, clara e convidativa. Rebatizada como El Tesoro de la Juventud (inicialmente com o subtítulo, o Enciclopedia de Conocimientos), a coleção começou a ser vendida pela sucursal de Buenos Aires, em 1917.
Ainda que tivesse sido preparada em Barcelona, a coleção El Tesoro de la Juventud vendida na Argentina em 1917 trazia na folha de rosto a informação de que fora \"Compilador consultor, autor de la introducción y de la parte de la república Argentina, el Dr. Estanislao S. Zeballos...\" (1854-1923), escritor, geógrafo e jurista argentino. Zeballos fora um grande entusiasta das Campanhas do Deserto contra as populações indígenas dos pampas nas décadas de 1870 e 1880. Em defesa de políticas que pusessem fim aos malones indígenas e promovessem a modernidade do país, publicou, em 1878, Las quince mil léguas – estúdio sobre la translación de la frontera sur de la República al Rio Negro. Nos anos que se seguiram, escreveu textos e crônicas sobre a região patagônica e os caciques indígenas do "passado". Assumiu funções políticas e diplomáticas de destaque e, em 1918, tornou-se Decano da Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires, deixando uma vasta e polêmica obra publicada expondo suas teses sobre o Direito Internacional Privado.
El Tesoro de la Juventud entrava em circulação em uma Argentina povoada por obras de literatura infantil oriundas da Espanha e da França. Os Cuentos de Calleja, vindos da editora Saturnino Calleja em Madri, as edições vertidas do francês pela Editora Garnier ou a Casa Ollendorf, as quais publicavam, em Paris, livros em espanhol para serem exportados para a Espanha e suas antigas colônias na América. Na década de 1920, produções Argentina começaram a disputar um lugar ao sol, com o lançamento da revista Billiken, em 1919, e com as coleções publicadas por Constancio C. Vigil, fundador, em 1918, da Editora Atlántida.
A cidade de Buenos Aires já contava nesses anos com uma dinâmica rede de distribuição dos impressos, baseada não somente em livrarias, mas nas bancas de jornal, socialmente mais democráticas. Os editores e mercadores de impressos beneficiavam-se do público alfabetizado letrado do sistema de escolas primárias que se desenvolvera no país especialmente a partir das políticas públicas de Domingo F. Sarmiento, na segunda metade do século XIX.
Neste cenário, em que a circulação de livros e impressos se adensava, El Tesoro de la Juventud conquistou o seu lugar. A coleção era vendida acompanhada de uma pequena estante – para muitas crianças e jovens, trava-se de formar a primeira biblioteca.
Em memórias de leitores – especialmente de leitores que, tendo se tornado escritores, deixaram marcas de suas leituras de formação –, encontramos pistas da ascendência de El Tesoro. Julio Cortázar, na obra Los autonautas de la cosmopista. O Un viaje atemporal París-Marsella, que escreveu em 1982, já no final da vida, com sua mulher Carol Dunlop, cunha o seu testemunho.
Desde luego que en mi infancia suburbana no hubo alondras, pero alguien de mi familia decía que la alondra canta sobre todo mientras vuela, al revés de todos los otros pájaros, y esa peculiaridad le daba un prestigio especial a mi imaginación; además se hablaba mucho de alondras en El Tesoro de la Juventud que era mi reserva inagotable de realidad.
Versões da coleção foram lançadas para diferentes regiões das Américas, sempre sob a chancela de intelectuais bem respeitados localmente. As edições regionalizadas da coleção incorporavam conteúdos extras relacionados à história, à literatura, à fauna e à flora locais. E conservavam textos comuns à matriz britânica ou à adaptação norte-americana da enciclopédia.
Os escritórios da Casa Jackson se espalharam pelas Américas, Cuba e Porto Rico –além de Buenos Aires, estavam presentes nas cidades de Montevidéu, Rio de Janeiro, Caracas, Bogotá, México, Havana... Alguns dos escritórios deram origem a livrarias atraentes e bem localizadas.
Ainda assim, a empresa não deixou de se valer das vendas a distância, com base em encomendas postais e em viagens de representantes comerciais, à conquista de novos públicos.
Lançada no Brasil nos anos 1920, a coleção Thesouro da Juventude, na grafia correspondente às normas ortográficas em vigor, também foi chancelada por um nome de peso. Trazia uma introdução do jurista cearense Clóvis Bevilacqua (1859-1944), autor do Código Civil brasileiro publicado em 1916.
Um memorando ditado por Jackson em 24 de fevereiro de 1919, por ocasião do lançamento de outra coleção, indica haver então uma única sucursal permanente, no Rio de Janeiro, dirigida por D. C. MacArthur, e que se organizaram escritórios provisórios em São Paulo, no Recife, em Porto Alegre, Salvador, Belém e Manaus.4
A Introdução do Thesouro trazia no cabeçário o seguinte subtítulo, na ortografia da língua portuguesa da época: "Um livro para os meninos, adolescentes e homens do povo que teem sede de saber". Nas citações que se seguem, farei a atualização da ortografia.
(...) procurando instruir, sem discussões teóricas, inadequadas e fastidiosas para os espíritos juvenis, e para os que não dispõem do tempo necessário para se aprofundar nas ciências ou nas letras; não fazendo filosofia, não tendo preocupações técnicas, nem intuitos didáticos; narra os fatos mais notáveis da história, desenvolve o senso estético, ensina a moral por meio de exemplos, estimula o patriotismo, o amor da família e o da humanidade (...)
Uma página descreve a terra, o sistema planetário e o cosmos; outra se ocupa com os reinos da natureza; adiante fala-se dos países, com os seus costumes, as suas indústrias e os seus centros de população; além se trata do nosso continente americano e do nosso país, que devemos conhecer melhor e mais completamente do que os outros continentes e os países estrangeiros; os homens e as mulheres célebres, que facilitaram a vida por suas invenções, ou a iluminaram por seu pensamento, ou a enobreceram por seus atos (...)5
Como no depoimento de Julio Cotázar, encontramos, entre os leitores da coleção, no Brasil, registros do profundo impacto desse projeto editorial. O jornalista Luis Nassif, nascido em Poços de Caldas, Minas Gerais, em maio de 1950, publicou certa vez em seu blog, a respeito da coleção que seu avô comprara em 1928, que ele leu avidamente cerca de 30 anos depois e que, mais tarde, terminou por herdar.
Aprendi a ler no Thesouro da Juventude, assim mesmo com th, da W. M. Jackson Editores, com prefácio de Clóvis Bevilacqua. Era de meu avô Issa. Contava os minutos para chegar à farmácia do meu pai, subir as escadas externas que davam no andar de cima, onde morava vovô. Corria para a estante, tirava um volume, abria no chão forrado por um cobertor, e ficava de bruços devorando as páginas e as ilustrações a bico de pena. (...)
Mas o Thesouro me acompanhou a vida toda, e de toda a minha geração e de meus pais. Não chegou a meus filhos. (...)
Eram 18 volumes, todos contendo uma sequência de temas. A primeira gravura do primeiro tomo era uma pintura do sistema solar, com os astros de todos os tamanhos e trens se lançando ao espaço para alcançá-los. Um trem expresso, correndo a 1.600 km por minuto poderia dar a volta ao mundo em menos de vinte dias, dizia o texto. Mas levariam 177 anos para chegar ao sol.
De cara éramos apresentados à nossa insignificância, passeando por todas as lições de O Livro da Terra. (...)
Depois, pelo O Livro de Nossa Vida, destinado a desvendar a maravilha da humanidade. Havia o Livro do Novo Mundo, que tratava desde os homens primitivos, até à construção da América, e o Livro do Velho Mundo, falando das antigas civilizações, com amplo relato sobre a China, sobre seu isolamento que tirou-lhe a noção de progresso, e de como, pouco a pouco, voltou a se abrir para o mundo.
Em um período de grandes inovações, as invenções eram tratadas no capítulo Cousas que Devemos saber e as curiosidades em O Livro dos Porquês, talvez o tema mais popular da enciclopédia.
Meu tema predileto eram os Homens e Mulheres Célebres, Nobres Vidas, Nobres Feitos. Marco Pólo inaugurava o primeiro tomo da coleção. Depois, abordava-se criação da famosa Escola de Sagres em Portugal, e os navegadores portugueses. (...)6
Luis Nassif sublinhava: "Na Introdução, Clóvis Bevilacqua indicava a obra para meninos, adolescentes e homens do povo que têm sede de saber. Os editores definiam-no como uma enciclopédia popular, um livro acerca de tudo para todos e especialmente para jovens". De fato, à Introdução assinada por Bevilacqua seguia-se outro texto de apresentação, sem autoria, intitulado "Um livro de cultura média geral".
Ora esta enciclopédia que tens na mão, leitor, é uma enciclopédia de coisas. Aqui não se discute, não se polemiza, nem se trata de te imbuir qualquer filosofia; aqui refere-se o que, admitido por todos, constituí o mínimo que deve saber um homem culto. (...)
Além d´isso um livro como este substitui, e com vantagem, uma pequena biblioteca, sempre muito difícil de formar e de escolher. Uma coleção de livros que constitua um resumo dos principais conhecimentos não é muito fácil de formar, com efeito. E é indispensável, sobretudo fora das grandes cidades.7
Por um lado, o Thesouro da Juventude assumia o impulso enciclopédico de repertoriar e difundir "o conhecimento", sem polêmicas ou filosofias, ou seja, um conhecimento "neutro" e universal, de interesse de todo homem médio que aspirasse cultivar-se. Por outro lado, o impulso enciclopédico vinha aqui acompanhado de determinadas concepções de educação – não uma educação intelectualizada e abstrata, mas permeada pela imaginação, pela ação e pelo pragmatismo. Esse projeto pedagógico, em relação ao qual a coleção se colocava como guia, definindo a medida certa, selecionando a biblioteca mínima ao alcance de muitos, voltava-se não somente ao público infanto-juvenil, mas aos "homens do povo". Também estes demandavam orientação para adquirirem uma "cultura média", em sintonia com os ideais de democracia e de individualismo que permearam, no plano do imaginário político, das representações e práticas culturais, o processo de construção nacional dos Estados Unidos.
Os "Teso(u)ros" mantiveram, como The Children's Encyclopaedia, a estrutura de seções permanentes: O Livro da Terra, O Livro da Natureza, O Livro da Nossa Vida, Coisas que devemos saber, O Livro dos "Porquês", Cousas que podemos fazer, O Livro das Belas Ações... Entretanto, acompanhando a versão preparada por Jackson para a América de língua inglesa, determinadas seções haviam sido alteradas.
"The Bible", por exemplo, presente na coleção original, foi uma seção que deixou de existir nas adaptações americanas. E "All countries", seção concebida por Arthur Mee para The Children's Encyclopaedia, logo veio a desdobrar-se, na medida em que a coleção ganhava novos contornos ao cruzar o Atlântico, em "O Livro do Novo Mundo" e "O Livro do Velho Mundo". Antes que a solução fosse adotada, criara-se uma seção específica para os países norte-americanos aos quais se voltava primordialmente The Book of Knowledge: os Estados Unidos e o Canadá.
Nas diferentes versões da enciclopédia adaptada por Jackson, a seção que se reservou ao Novo Mundo apresentava os países americanos sempre de forma positiva e otimista – sua história avança rumo à modernização, repleta de conquistas materiais e culturais a serem repertoriadas. Episódios delicados da História, como o de guerras fronteiriças com perda de territórios, são abordados de forma suavizada, à sombra dos acontecimentos que se prestavam ao enaltecimento. As imagens selecionadas para ilustrar os textos também privilegiam os sinais de ação do Homem e da técnica sobre a paisagem.
Seria possível analisar as dimensões políticas dos discursos produzidos pela coleção por muitos prismas – o tratamento conferido à escravidão nas narrativas históricas sobre o período colonial e o século XIX, à presença de relações imperialistas, ao panteão de heróis e de repertórios culturais valorizados nas diferentes seções... Seria possível, também, problematizar as representações da mulher – as mulheres célebres são colocadas ao lado dos homens célebres. Ou, ainda, para levantar um último exemplo de caminhos exploratórios, indagar sobre que temas e conteúdos americanos foram incorporados às edições derivadas do projeto editorial de Jackson.
Para que este ensaio não se estenda demais, lançaremos luz sobre o olhar da coleção para as populações ameríndias. O primeiro volume do Thesouro da Juventude trazia, na seção "O Livro do Novo Mundo", um texto dedicado aos aborígenes da América do Sul. A narrativa se abre iluminado a tribo de indígenas guaranis que Pedro Álvares Cabral encontrou ao aportar no Brasil. Oferece uma minuciosa descrição de suas feições físicas, de suas habitações e artefatos materiais, alimentos e instrumentos musicais. Pareciam "doces" e "inocentes", aptos a rapidamente converterem-se ao cristianismo. Contudo, nem todos eram tão "fáceis de tratar", sublevaram-se e atacaram europeus de expedições posteriores.
O texto passa a apresentar populações indígenas da região do Prata, dos Andes, da Patagônia...
Os índios defenderam na maior parte da América do Sul durante mais de três séculos de independência e as suas terras, mas foram vencidos por fim. As populações incas, guaranis e araucanas, misturaram-se com as populações de origem europeia, cruzando-se com elas. Os cruzamentos sobrevindos entre os elementos aborígenes do país e os destemidos aventureiros portugueses do século XVI deram em resultado no Brasil uma raça admirável de bravura, de resistência e de coragem empreendedora, como provaram os ousados bandeirantes paulistas, que por suas longuíssimas caminhadas através das terras desconhecidas, e pelas suas vitórias nos combates travados com os próprios índios e com os espanhóis levaram o domínio português na América até mais de 4:000 km. do Atlântico. Apesar d´estes cruzamentos entre europeus e indígenas, para formar os mestiços, mamelucos e curibocas, os índios nunca se conciliaram confiantemente com os invasores da raça branca. E como os brancos vieram do mar, os índios foram recuando para o sertão do interior, até se encantoarem a Oeste, onde vivem atualmente em número de uns 800:000, dos quase 300:000 inteiramente selvagens, esquivos todos eles da civilização, evitando o convívio dos conquistadores.8
Descreve os confrontos que se travaram nessa fronteira, nos quais os indígenas, tendo incorporado o uso do cavalo com admirável destreza, muitas vezes levavam vantagem sobre a "cavalaria cristã".
No Brasil, alguns grupos "são canibais" e exercem essa prática no interior da tribo ou contra seus inimigos. "São geralmente traiçoeiros, vingativos e muito desconfiados. Enfeitam-se com penas de várias cores, peles mosqueadas, pulseiras e colares de ossos e dentes". Utilizam-se de arco e flecha para caçar e guerrear. Por vezes envenenam a ponta das flechas com o poderoso curari, "um veneno cujo segredo não lhes foi ainda arrancado. A vítima desse veneno morre vendo, ouvindo, compreendendo tudo o que se passa em sua volta, mas sem poder falar e mexer-se, numa situação que podemos classificar de verdadeiramente horrorosa".9
Uma narrativa com boas pitadas de literatura, imagens que se nutrem dos imaginários sociais há muito construídos em torno da "conquista". Em The Book of Knowledge, o diálogo dessa visão civilizatória com a obra do romancista Fenimore Cooper é explícito. A coleção realiza, na abertura de cada volume, chamadas para as emoções que aguardam o leitor:
Chieftains of a vanishing race.
The red men of North America, who held undisputed sway in the vast countries where now fly the Stars and Stripes and Union Jack, are no longer powerful. They must change their manner of life or they will soon be as extinct as the Aztecs of South America. A brave and picturesque race, they have always numbered among their tribes men with noble souls, like the chief described in the story "The Last of the Mohicans," on page 178.10
O saber que "não se discute" e "não se polemiza", nos termos do texto de apresentação ao Thesouro, mas que é "admitido por todos" como um repertório cultural médio mínimo, assentava-se sobre um claro lugar de enunciação, de ordenamento da árvore do conhecimento, para retomar a imagem proposta pelos primeiros enciclopedistas. Os meninos, por sua vez, entregavam-se a uma aventura, em que curiosidade, conhecimento, imaginação e emoção se misturavam e mantinham bem aceso o gosto pela leitura.
A transposição da enciclopédia britânica para a juventude das Américas realizava operações de apropriação dentro de determinados limites. Temas locais ganhavam um lugar na árvore do conhecimento, mas os galhos cresciam alinhados com concepções já desenhadas. A circulação do saber e da cultura atravessava o Atlântico, se nutria de traduções e novos conteúdos, redimensionava públicos ao mirar, além da criança, o homem mediano que a modernização possibilitava forjar. Talvez sejam essas as marcas mais fortes da americanização da enciclopédia de conhecimentos que fincou raízes profundas entre nós. O Novo Mundo era alçado a um lugar de civilização e ciência, equiparado ao Velho Mundo. Mas o Novo Mundo que se capturava por essas lentes espelhava, em muitos sentidos, a "velha" árvore do conhecimento.
Esta pesquisa contou com o apoio do CNPq e da Fapesp.
Robert Darnton, O grande massacre dos gatos: e outros episódios da história cultural francesa, (Rio de Janeiro: Graal, 1986), 247-248. Sobre a história das enciclopédias e da organização do conhecimento, ver também, entre outros, Robert Collison, Encyclopedias: Their History throughout the Ages. (Nova York, 1964) e Frank Kafker, Notable Encyclopedias of the Seventeenth and Eightennth Century: Nine Predecessors of the Encyclopédie, Studies on Voltaire abd the Eighteenth Century, (CXCIV, Oxford, 1981).
Robert Darnton, op. Cit., 247-251. O trivium referia-se às artes liberais e o quadrivium, às artes mecânicas.
Historia de la Casa Jackson, (Barcelona, W. M. Jackson, Inc. Nueva York Garriga Impressores, 1969), 66.
Thesouro da Juventude, (Clinton, Massachussets, The Colonial Press Inc., W. M. Jackson Inc., s.d.), 7.
Opinião & notícia, Blog do Luis Nassif, 18 de março de 2006. Consulta feita em 15 de julho de 2015.
Thesouro da Juventude, (op. cit.), 9-11.
Ibid., 178-179.
Ibid., 180.
The Book of Knowledge, The Children´s Encyclopedia, (New York, The Grolier Society; London, The Educational Book Co., v. XII, s. d.), "Contents of this Volume".