Edição
A rubrica reúne textos que enfrentam o desafio de refletir sobre a rede transnacional que, sobretudo a...
As Livrarias-Editoras Garnier e seus negócios foram, no que se refere à produção e circulação da cultura, a primeira empresa internacional especializada em livros.1 Ela atuou durante grande parte dos séculos XIX e XX, em sobretudo três línguas, francês, espanhol e português, ocupando espaços nacionais europeus e americanos.
O estudo da circulação dos bens culturais torna-se mais completo quando os contatos entre as diferentes partes do globo, aqui delimitadas por aqueles que cruzaram o espaço transatlântico, são pensados em conjunto. Nesse sentido, o "tempo do editores"2 abre-se em função do conhecimento das relações entre as transformações técnicas, a ampliação dos transportes e da comunicação, além dos os fenômenos decorrentes da urbanização crescente, que resultaram em programas de alfabetização em torno de uma língua nacional, e, consequentemente, na ampliação da escrita e da leitura. Em conjunto, tudo isso possibilitou aos editores, livreiros e empresários do século XIX a criação de redes comerciais, incluindo representantes e mesmo filiais em outros países aos quais se estendiam seu desejo de ação, além de oportunidades, sempre buscando "as melhores condições tipográficas e econômicas para impressão de obras, descentralizando (...) os polos da composição dos escritos, impressão dos textos e venda dos livros".3
O caso dos Garnier deixa claro como uma empresa atuando em nível internacional pôde, complementarmente, participar da emergência das literaturas nacionais. Na comunicação de espaços, empilhavam-se tempos como efeito das mudanças pelas quais foram responsáveis os atores do contato entre culturas. No rol das ações transatlânticas dos Garnier, o caso mais estudado é o das relações França-Brasil, mas o mesmo tipo de ação estava presente em uma parte da América hispanofônica.
Tendo-se tornado uma empresa internacional desde a primeira metade do século XIX, a livraria e editora dos Garnier Frères, com matriz em Paris, assumiu uma feição diferente das outras que anteriormente mantiveram matrizes na Europa e filiais nas Américas, como os Bossange4 e Paul Martin,5 ou de outros profissionais que fundaram livrarias pelo mundo afora, mas que eram mantidas independentes umas das outras, como as do editor especialista em medicina Jean-Baptiste Baillière.6 Para construir uma rede de distribuição americana e algumas livrarias-editoras, mais conhecida a do Rio de Janeiro e um representante dos Garnier no México, os irmãos Garnier, após o seu estabelecimento em Paris como livreiros-editores, constituíram um fundo misto entre os de editores franceses (Delloye, em 1841, e Dubochet, em 1848), Langlois-Leclerq (1839) e a aquisição da Libreria Española y Classica de Vicente Salva Pérez (1849). Esse último fundo se formou desde o aparecimento dessa livraria em Londres (1824) e de sua transferência para Paris (1835), mas a sua aquisição pelos irmãos normandos ampliou, aos Garnier, os caminhos rumo à América de colonização espanhola.
Naquela primeira geração de livreiro-editores, os irmãos Garnier eram nove, dentre os quais três foram muito importantes para a história da circulação internacional dos bens culturais nos séculos XIX e XX: Auguste Garnier (1812-1887), Hipollyte Garnier (1815-1911) e o caçula deles, Baptiste-Louis Garnier (1822-1893), fixado no Rio de Janeiro a partir de 1838 ou 1844 (as fontes divergem, Vapereau7 fala em 1838; Senna8 estabelece a data de 1844, replicada por outros historiadores do livro no Brasil). Juntos, os três tornaram-se os pioneiros dessa grande editora do século XIX, que vem sendo estudada por sua original inserção em um cenário mundial, com atividades importantes no Brasil, mas também em outros países da América Latina.
Embora ainda se conheça muito pouco sobre a atuação da Garnier nos países hispanofalantes das Américas, a Livraria-Editora Garnier acabou se tornando, entre as décadas de 1890 a 1920, uma editora fundamental para a literatura hispano-americana em todo o mundo. As pesquisas a respeito da atuação da Garnier no Brasil têm progredido rapidamente, mas o conhecimento das trocas entre Europa e América-Latina em geral precisa, nesse caso, ampliar-se e chegar a ser tão mapeado quanto as relações França-Brasil. Antonio Miguel Alcover (1912), historiador chefe do Arquivo Nacional cubano, já usando o conceito de "Latino-América", queixa-se da má organização das livrarias e casas editoriais de Cuba à época de publicação de seu ensaio, apontando também a ausência de livros cubanos nas grandes livrarias da Cidade do México, Buenos Aires, Rio de Janeiro, Montevidéu, Santiago, Lima, La Paz, Quito, Bogotá, Caracas e Guatemala. Essa afirmação traz à luz o fato de que, malgrado a ausência cubana, havia trocas intensas entre todas essas capitais de países americanos. O mesmo Alcover aponta que a literatura cubana era desconhecida nas Américas, mas que, quando havia essa circulação, como nos caso de certas recolhas de poemas de Heredia e Placido, isso era devido aos "Maucci, de Barcelona, e aos Garnier, de París", que "em suas grandes remessas à América Latina, faturaram com uma dúzia das edições especiais desses poetas. Europa abastecendo sempre o mercado da América, mesmo com livros de produção genuinamente americana!".9(y eso, porque los Maucci, de Barcelona, y los Garnier, de París, en sus grandes remesas á la América Latina, han facturado (sic) alguna docena de sus ediciones especiales de esos poetas. Europa abasteciendo siempre el mercado de América, aun con libros de producción genuinamente americana! ).
A indignação do historiador a respeito da escassa produção e circulação de literatura cubana, "genuinamente americana", tem coisas importantes a sugerir: havia repertórios de leitura compartilhados pelos americanos, ou mesmo uma indução desse compartilhamento de impressos e leituras, regida por editores europeus, que captavam a produção local, publicavam-na nas prensas europeias e devolviam-na às Américas, na forma "livro". Ou seja, o método empregado por Baptiste-Louis Garnier no Brasil, fartamente descrito, mandar imprimir manuscritos brasileiros na Europa, foi também empregado para a produção "nacional" de vários países americanos: pelos caminhos transatlânticos, manuscritos viajavam para o leste, de onde voltavam impressos, o que assegura, ao século XIX, a definição de que o "tempo dos editores" equivaleu ao de uma rede transacional de escritores, livreiros, revisores, tradutores e editores, entre outros profissionais, na constituição do objeto circulante "livro" e de toda sorte de impressos.
A revolução impressa que operaram os Garnier é notável por sua originalidade, frente à origem modesta que não deixa entrever facilmente o sucesso daqueles que manifestariam a clara intenção de dominar o comércio do livro em toda a América Latina.10 Filhos de agricultores, não se sabe exatamente de que modo Auguste e Hipollyte Garnier se instalaram como livreiros na prestigiosa galeria do Palays-Royal em 1833, depois de breves passagens, como empregados, por outras livrarias parisienses. Descartando o irmão Pierre de seus negócios em 1852,11 eles acumularam capitais, no início de suas atividades, graças à publicação e comercialização de itens proibidos, como os livros eróticos, que haviam estado sob forte censura até o final da Restauração (Justine ou les Malheurs de la Vertu (1791), de Sade, e Rideau levé ou L'éducation de Laure (1786), de Mirabeau, entre outros). Ao longo do tempo, também lucraram com a atividade de agiotagem, por meio da especulação na bolsa (missão de François-Hippolyte), de ganhos no campo imobiliário à época da reforma de Paris empreendida pelo prefeito Haussmanns e, finalmente, com as operações tradicionais de livraria. Para avaliar a riqueza amealhada, basta assinalar que, Hippolyte, ao falecer em 1911, teve sua fortuna avaliada em vinte cinco milhões de francos, somando-se o montante em espécie, imóveis, e considerando o capital e negócios da livraria-editora.12 Restrita ao início da carreira dos Garnier, a literatura licenciosa talvez se tenha estendido para o despertar das atividades dos Garnier no Brasil, na medida em que o irmão mais novo, Baptiste-Louis, teria cruzado o Atlântico para imprimir e redistribuir na América do Sul, entre outros, as brochuras proibidas. Mais importante que o capital do início é o montante final: para os vinte e cinco milhões de francos acumulados como fortuna pelos Garnier de Paris,13 contribuíram, após a morte de Baptiste-Louis no Brasil, mil e quinhentos contos de reis (um milhão e quinhentos mil reis), correspondentes, à época, a cerca de duzentos e cinquenta mil dólares, como mostram documentos relativos à sucessão de Baptiste-Louis Garnier, recentemente encontrados.
Gustave Vapereau, em seu dicionário bibliográfico redigido e revisto ainda em vida dos Garnier, informa-nos que Baptiste-Louis Garnier fixou-se no Brasil em 1838, dirigindo a principal filial da casa comercial dos Irmãos Garnier, da qual se tornou, mais tarde, proprietário. Teria havido outras filiais além dessa do Rio de Janeiro? Se não é possível neste momento responder a tal pergunta, sabe-se da associação entre os Garnier e Don Jose Maria de Andrade, no México, já nos anos 1852.14 Embora os princípios comerciais dessa parceria franco-mexicana sejam ignorados, os Garnier de Paris recuperaram as relações entre os Bossange e entre La Antigua Libreria del Portal de Augustinos no^ 3, estando presentes nesse espaço da Cidade do Mexico, e estabelecendo com Don José relações de representação e de coedição,15 como mostra, no Catálogo da Libreria de Garnier Hermanos, Sucesores de D. V. Salva, um anúncio de 1852: a coedição para os fins de edição de um Nuevo Diccionario de la Lengua Castellana.
Ainda que deva ser ampliada por novos estudos, essa última informação é crucial para que se compreenda parte das negociações transatlânticas entre o livreiro-editor Baptiste-Louis Garnier, outras livrarias nas capitais de novos países americanos ou em Paris, os Garnier Frères & Garnier Hermanos e, por fim, outras tipografias e editoras francesas e europeias. No que tange aos livros, na França, ao longo do tempo, os Garnier solidificaram seu trabalho em torno da oferta da coleção dos "Chef-d'oeuvre de la littérature française", que deu origem aos "Classiques Garnier" modernos, com sua capa amarela, que circularam amplamente no século XX, na Europa e nas Américas, e ainda circulam; fizeram o mesmo com a produção e oferta de livros escolares, dicionários e gramáticas. Assim, quando mais tarde, em 1930, Auguste-Pierre Garnier, sobrinho-neto herdeiro dos irmãos Garnier, recebeu a "Legião de Honra" francesa pelos serviços prestados para a expansão comercial francesa na França e no estrangeiro, a seguinte enumeração justifica a atribuição desse título honorífico: "difusão de autores clássicos franceses no exterior, especialmente nos países da América do Sul; edições em língua espanhola e portuguesa de autores franceses clássicos e contemporâneos; a mais importante coleção de obras para o ensino prático de línguas vivas; importante serviço de representação e exportação para os países de todas as obras publicadas por editores franceses, no centro comercial sucursal no Rio de Janeiro".16
No início dessa história, a parceria comercial internacional entre os irmãos criou intensa circulação de livros e de homens. No Brasil, até o final dos anos 1850, Baptiste-Louis construiu listas de livros à venda, das quais constavam assuntos variados, livros técnicos, escolares, religiosos e de literatura, oferecidos ao público por meio de catálogos e de todo tipo de publicidade nos jornais (anúncios de variados tamanho e destaque, resenhas encomendadas). Entre os livros que comercializava, muitos pertenciam ao catálogo dos irmãos editores em Paris, como atestam não apenas o documento logo acima citado, mas também a análise dos anúncios dos jornais do XIX e dos catálogos da Livraria de B. L. Garnier, evidenciando que Garnier atuou como representante de venda dos livros publicados por outros editores franceses, no Rio de Janeiro, aspecto ainda não destacado pela bibliografia especializada. A universalização do gosto pela leitura no século XIX esteve, portanto, inexoravelmente ligada à circulação e oferta comercial de livros e impressos por esse e outros editores.
Quanto mais os estudos sobre os Garnier avançam, mais se tem certeza de que houve uma ruptura entre os irmãos durante a década de 1850 e o início dos anos 1860,17 de modo que Baptiste-Louis deixou a condição de "representante" da Garnier Frères no Rio de Janeiro para se tornar um editor autônomo. Investindo em seu próprio negócio, ao longo de toda a segunda metade do século XIX, Baptiste-Louis passou a dominar, além do comércio, a edição de livros no Brasil, o que fez independente dos irmãos. A seu crédito, o editor teve, segundo indicam Senna e Hallewell,18 665 obras de autores brasileiros. Destacando-se das atividades dos irmãos franceses, Baptiste-Louis colocou em prática uma política editorial para sua casa, semelhante a de outros livreiros importantes de Paris àquela época. Investiu na relação com autores, na pesquisa de manuscritos, na formação de fundos próprios e de coleções, bem como na progressiva especialização de catálogos e na reunião de obras completas de autores eleitos como significativos. Figura paradoxal, como um editor moderno, publicou os escritores brasileiros da época, estabelecendo com eles contratos de remuneração por meio dos quais adquiria a propriedade literária das obras publicadas;19 ao mesmo tempo, à antiga, sob o mecenato do imperador D. Pedro II, construiu coleções dos clássicos brasileiros, ganhando importância ao se servir do prestígio da edição francesa.20 Baptiste-Louis Garnier enviava os manuscritos desses autores para composição e impressão em Paris e outras cidades europeias, associando-se à qualidade dessas edições, que teriam impressão nítida, bem cuidada, em papel superior, sem erros, isso em uma época na qual os homens de letras brasileiros se queixavam das dificuldades enfrentadas no processo de composição e de revisão, quando seus textos eram impressos nas oficinas do Rio de Janeiro.21 Desse modo, na casa de Garnier, com a profissionalização à moda europeia dos processos de edição, somada à experiência do editor, os problemas com a composição dos livros eram cada vez menores, o que exigia a presença de leitores do português cada vez mais competentes presentes em solo francês. Uma vez que a qualidade dos produtos era uma das estratégias de venda e de ocupação do mercado brasileiro, o editor manteve, morando em Paris, desde o início dos anos 1860, um revisor de provas, Jules Henri Gueffier, do qual se falará mais detidamente.
Diferentemente do que se deu com a Literatura Cubana, ao menos quando se considera o relato de Alcover, manuscritos iam, livros voltavam, mas não apenas isso: a consequência desse processo, ao longo do tempo, foi que a Literatura Brasileira publicada chez Garnier passaria a ser traduzida em línguas europeias. O Guarani, de José de Alencar (1829-1875), e Inocência, de Alfredo Maria Adriano d\'Escragnolle Taunay (1843-1899), foram traduzidos mais de uma vez para o alemão, entre 1872 e 1914, circulando no suporte periódico e em livros.22 O mesmo se deu em relação a ambos os romances, traduzidos para o francês, no período entre 1863 e 1907.23 Naturalmente, no caso do romance de José de Alencar, ele ganhou também a língua espanhola e dela passou à italiana, dando origem à opera Il Guarany, com música de Antônio Carlos Gomes e libreto de Antônio Scalvini, que estreou no Teatro Scala de Milão, na Itália, em 19 de março de 1870.
Baptiste-Louis Garnier operava com uma lógica de mercado bastante próxima à desenvolvida pelo editor Michel Lévy na França, imitada por outros editores franceses. Lévy criara, em meados dos anos 1850, um novo sistema de produção e venda de livros, que deu margem a uma revolução no preço do livro na França. Nesse sistema, os títulos eram publicados em coleções de formato econômico; ou seja, eram barateadas o mais possível em termos materiais (papel, forma de unir os cadernos, capa etc.), sendo comercializadas a preços extremamente populares (1 franco ou menos) e, por isso, com tiragens muito grandes (mais de três mil exemplares). No Brasil, a análise de algumas das primeiras edições do romance O Guarany, mostra que, a partir da segunda edição em livro (1864), o romance passou a ser editado por Baptiste-Louis Garnier, que adotou algumas das estratégias de Lévy: mandou imprimir em Paris e trouxe a público no Brasil duas novas edições de O Guarany, a segunda edição, in-8º, e a terceira, in-18º. Ao fazer, simultaneamente, duas edições do romance de José de Alencar, de modo a aproveitar a mesma composição tipográfica, Garnier endereçou a obra a dois públicos diferentes, ou, ao menos, a dois usos diferentes, o do manejo dos leitores e o da coleção em bibliotecas e gabinetes de leitura. Com os livros em mãos, vê-se que a segunda edição de O Guarany foi feita em papel de boa qualidade, formato in-8o, lombada costurada, com capa de qualidade (feita em papel cartão resistente), a ser vendida, no Brasil, a quatro mil réis. Já a terceira edição, feita no formato popular in-18o, foi impressa em papel-jornal, capa em papel colorido de baixa gramatura, a ser vendida a dois mil réis. Essa terceira edição pressupunha, portanto, uma ampliação de público e de vendagens. Ainda comparando as ações Michel Lévy e Baptiste-Louis Garnier, ambos compravam logo de saída os direitos de propriedade dos autores em definitivo e procuravam, na tiragem e/ou nas vendas, obter o lucro. Contudo, Garnier foi obrigado a adaptar o projeto de Lévy às práticas vigentes no mercado americano, tanto que operava com tiragens bem menores que as francesas e combinava o sistema de Lévy a outro mais antigo, anterior à popularização da edição em livro na França, quando o livro ainda custava caro. Por fim, Garnier imprimia suas edições em Paris, em tipografias habituadas a trabalhar com a Língua Portuguesa (Simon & Raçon, por exemplo) e os colocava à venda também na capital francesa, na Livraria Durand (e não na livraria dos Garnier), como se pode ler na capa interna das edições de O Guarany de que se tratou aqui.
Ao longo de sua trajetória de mais de cinquenta anos no Brasil, Baptiste-Louis Garnier foi condecorado pelo Imperador D. Pedro II com a comenda da Ordem da Rosa,24 principal título honorífico brasileiro, graças aos serviços prestados às letras pátrias, empenhando-se também pela obtenção de uma ordem portuguesa. Mesmo depois de seu falecimento, em 1893, uma vez retomados os negócios da livraria editora por seus sucessores, a casa Garnier continuou a catalisar homens de letras, jornalistas, escritores, intelectuais, bem como a funcionar como ponto de concentração e de debate de ideias. Em 1903, com a intenção de comunicar-se diretamente com seus leitores e de ampliar as vendas, lançou o importantíssimo Almanaque Garnier. Na sequência, a publicação, que persistiu até 1914, tornou-se, segundo Dutra,25 um espaço de debate de ideias políticas para os intelectuais organizados em torno da Academia Brasileira de Letras, recém-fundada em 1897, de modo que o Almanaque Garnier tornou-se "um instrumento de vulgarização de um projeto político e educativo, o de construção de uma nação republicana, para o que contaram com o concurso de vários notáveis das letras".26 No capítulo das condecorações, compreende-se, portanto, a importância da Casa Editorial Garnier para a vida pública brasileira, papel também desempenhado por outras editoras da América Latina, em torno das quais se reuniu um público culto ou semiculto. Como os Maucci , no México, e a Bilbioteca de La Nacíon, em Buenos Aires, a Garnier foi "um dos importantes redutos de intelectuais independentes que atuaram à margem do Estado, buscando um canal de comunicação direta com seu público". 27
Nos arquivos do Ministère des Affaires Étrangers (Nantes-França), documentos mostram a insistência com a qual Baptiste-Louis, no final de sua trajetória como livreiro no Brasil, dirigiu-se ao ministro plenipotenciário da França no Rio de Janeiro, pedindo a sua intervenção para a regularização do porte ou a atribuição de títulos honoríficos a si. Curioso esse hábito familiar de reconhecimento nacional, quando unimos tais esforços à condecoração honorífica francesa recebida em 1930 pelo sobrinho-neto dos irmãos Garnier, com Baptiste-Louis quem teve, afinal, pouquíssimo ou nenhum contato. Mas talvez tenha contribuído para essa última demanda de reconhecimento honorífico (a ordem portuguesa a Baptiste-Louis), o fato de ele ter participado da abertura do mercado de livros brasileiros em Portugal,28 em associação com o livreiro-editor Ernest Chardron – também de origem francesa, estabelecido no Porto, alguns anos antes de 1869, onde fundara a Livraria Internacional. Chardron, em meados dos anos 1870, dedicou-se a incluir em seu catálogo livros em português (traduções do francês ou títulos vindos da antiga colônia, ao lado das obras dos escritores portugueses), além de obras em francês. Comparando os catálogos de Chardron e de Garnier nos anos 1870, fica evidente o acordo entre ambos, pois, além dos títulos da "Livraria Clássica Portuguesa" (coleção iniciada pelos irmãos José e Antonio Feliciano de Castilho em 1845), ambos os livreiros-editores compartilharam todos os outros títulos dos brasileiros Joaquim Manuel de Macedo, José de Alencar, Pereira da Silva, Machado de Assis e Luís Guimarães Junior (Queiróz, 2017). Destaca-se, ainda, no tocante a essa parceria, que Chardron anunciava e vendia em Portugal o Jornal das Famílias, periódico literário que Baptiste-Louis Garnier publicava, imprimindo-o na França para circular no Brasil, entre 1863 e 1878. Dados do próprio jornal mostram que Chardron funcionava também como correspondente comercial de Garnier.
Baptiste-Louis expandiu, a partir de 1870, o negócio da tradução dos romances no Brasil. Suas ações deixam ver que, nas mãos dos editores do século XIX, o negócio do livro era internacional e a produção literária ultrapassava fronteiras. Durante a década de 1870, além de expandir os negócios via Portugal, Garnier inseriu no mercado brasileiro de livros cerca de oitenta títulos de ficção traduzida, na maioria de autores franceses e espanhóis, como lista Bezerra. Nesse último caso, pesquisas recentes sugerem que Baptiste-Louis Garnier trabalhava com os mesmos títulos na América hispanofônica e uma hipótese é de que a tradução de alguns romances para o português tenha sido decidida em função do que determinava o gosto dos leitores franceses e espanhóis, que sentiam apreço pelos romances de Miguel de Cervantes Saavedra, Emilio Castelar, Enrique Pérez Escrich e Manuel Fernandez y Gonzalez, entre outros. Esses quatro autores mencionados e suas obras circularam entre a Espanha, França, Brasil e os países americanos de Língua Espanhola, na mesma época. Diretamente da França, Julio Verne, autor da casa Hetzel, foi disparadamente o escritor mais traduzido por Garnier nessa época, mas também o foram Xavier de Montépin, Arsène Houssaye, Paul de Kock, Théophile Gautier, entre outros vinte e sete. As principais parcerias de tradução estabelecidas incluem os editores franceses Édouard Dentu, Michel Lévy, Ferdinand Sartorius e Jules Hetzel, que publicavam romances lidos por um público mais amplo que os clássicos dos irmãos Garnier.29 Por questões de direito autoral que, no Brasil, não protegia os escritores estrangeiros, algumas vezes Baptiste-Louis traduziu romances diretamente dos jornais ou franceses.30 Livros para um lado, homens para o outro, os tradutores de Garnier foram escolhidos entre os profissionais de letras brasileiros e aquele empregado que Baptiste-Louis manteve em Paris por pelo menos dez anos Jules Henri Gueffier. Um contrato até há pouco desconhecido,31 assinado entre Baptiste-Louis e Jules Henri, em 10 de fevereiro de 1864, esclarece que esse último foi recrutado, no Brasil, por Garnier para prestar, em Paris, por dez anos, serviços de impressor, representá-lo junto às livrarias e, quando necessário, atuar como tradutor, muito provavelmente, nesse último caso, para traduzir em português as obras escritas em francês, já que Gueffier morara no Brasil e conhecia bem a língua (os Gueffier estavam, no Brasil, ligados ao negócio da tipografia e associados a Laemmert; eram impressores, por exemplo, de alguns periódicos da imprensa em francês escrita no Rio de Janeiro).
Poucos anos antes de falecer, já doente, Baptiste-Louis Garnier procurou vender sua livraria, mas desistiu da empreitada por não alcançar os oito contos de réis em que avaliava bens e negócios. Depois de sua morte, em 1o^ de outubro de 1893, a firma voltou a ser propriedade, por herança, dos Garnier de Paris. Hippolyte Garnier tinha 77 anos quando seu irmão Baptiste morreu e ainda estava à frente dos negócios de Paris. Mas, paradoxalmente, uma sua atitude por essa época mostra que, quando do desaparecimento de Baptiste-Louis, o livreiro-editor parisiense talvez não tivesse consciência de todo o potencial comercial da livraria Garnier. Segundo uma procuração que Hippolyte passou a Lansac em Paris, dois meses após ao falecimento de Baptiste-Louis, esse Julien Emmanuel Bernard Lansac, descrito "empregado do comércio parisiense" seguiu para o Rio de Janeiro para acompanhar o inventário e liquidar os bens e negócios. Assinala-se aqui, portanto, que a chegada do futuro gerente da livraria Garnier carioca ao Brasil deu-se muitos anos antes do que se soube até hoje, de acordo com o que pôde descrever, à época em que fez sua pesquisa, Lawrence Hallewell.32 Essa procuração, por seus termos, indica-nos que a ideia inicial de Hippolyte era a de liquidar a livraria do Rio de Janeiro, mas, em pouco tempo, Hippolyte fez uma volta de 180 graus e tomou a decisão de manter a Garnier do Rio de Janeiro, novamente como filial da "Garnier Frères", de Paris. Desejando eclipsar a livraria Laemmert, Hippolyte encomendou a Bellissime e Parradieu, seus arquitetos franceses, a construção de um novo e magnífico edifício de quatro andares, na Rua do Ouvidor. Ele substituía a antiga, poeirenta e escura livraria de Baptiste-Louis Garnier, previa um apartamento para o gerente no quarto andar e foi inaugurado com festa de gala em janeiro de 1900. Nessa ocasião, cada convidado recebeu um exemplar autografado do romance Dom Casmurro, do então célebre escritor e presidente da Academia Brasileira de Letras, Machado de Assis.
No final dessa história, Hippolyte Garnier morreu aos 95 anos em 1911 e Lansac voltou à França em 1913; os negócios passaram para um sobrinho-neto dos Garnier, Auguste-Pierre Garnier, que enviou para o Rio de Janeiro outro gerente francês, Émile Izard (1874-?). Progressivamente, nesse período de tensões e guerras, a Garnier passou a publicar poucos livros e foi finalmente vendida a Ferdinand Briguiet, em 1934.
Toda essa circulação internacional de livros não pode ser compreendida fora de sua relação com os movimentos dos homens. Uma genealogia completa dos irmãos Garnier33 evidencia as ligações familiares entre os Garnier e os Fauchon (livreiros e comerciantes em Paris e no Rio), além dos Vivet (livreiros na França). Ao contrário do que se pensava até hoje, Baptiste-Louis Garnier manteve, a seu lado, como empregados, tal e qual sempre o fizeram os irmãos de Paris, alguns membros da família, que o ajudaram em seus negócios. Émile-Auguste Garnier, por exemplo, era um sobrinho dos Garnier livreiros-editores, por parte de seu irmão Jean-Baptiste, e esteve no Rio de Janeiro, trabalhando na livraria Garnier, na década de 1850. Além disso, um documento de 1859, associado a tal genealogia, mostrou recentemente que os Fauchon, que estiveram por décadas no Rio de Janeiro no negócio livro, trabalharam, em princípio, ao lado de Garnier:
Auguste Fauchon, que assina, conjuntamente com Garnier, o recibo de venda de livros em 1o^ de agosto de 1859, era filho de Sophie Rosalie, irmã de Auguste, Hipollyte e Baptiste-Louis Garnier, casada com um Fauchon (Granja, 2013). Nos anos 1890, vemos Ferdinand Fauchon estabelecido livreiro e editor no Rio de Janeiro, tendo herdado do pai Auguste os negócios, que administrava e tentava expandir. Esse outro sobrinho-neto dos irmãos Garnier é descrito em 1895 como livreiro, residente no Rio de Janeiro, à Rua do Ouvidor nº 125 (documento constante dos Archives Nationales de Paris, Minutier Central de Notaires, Étude XVI, 1493, 1º de outubro de 1895, Dépot par M. François Hippolyte Garnier d'une procuration à lui donnée par M. Fauchon), estabelecido a poucos metros, portanto, da Livraria Garnier. O pai e a mãe Fauchon teriam trabalhando junto a Baptiste-Louis, antes de se dedicarem à Livraria Enciclopédica Fauchon & Cia, mais tarde rebatizada Livraria Enciclopédica Viúva Fauchon e Filho, Fauchon e Dupont, Livraria da Casa Imperial. Dissenção não incomum à época, também Jean-Pierre Aillaud viera trabalhar nas oficinas de Didot Frères do Rio de Janeiro, para, em seguida, voltar a Paris, onde "fundou uma livraria, editando obras em língua portuguesa, destinadas em boa parte ao mercado do Brasil, e tendo como um dos seus mais ativos tradutores (...) Caetano Lopes de Moura".34
No caso de Fauchon, enquanto o tio-avô Hippolyte Garnier avaliava a situação dos negócios deixados por seu irmão no Rio de Janeiro, o sobrinho-neto Ferdinand avançava os seus próprios negócios. Ambos, aliás, entendiam-se bem, pois Ferdinand foi nomeado executor do inventário de Baptiste-Louis por Hippolyte Garnier, como mostram documentos depositados no Arquivo nacional (RJ). Importante observar que a expansão de Fauchon procurava se valer da metodologia internacional dos editores-livreiros, adaptada no Brasil por Baptiste-Louis Garnier. Para lançar-se à edição da Literatura Brasileira, tentando assumir o nicho de mercado da Livraria e Editora de Garnier, as escolhas comerciais e editoriais de Ferdinand Fauchon não foram diferentes daquelas que vinha fazendo – e praticando – Baptiste-Louis Garnier, desde os anos 1860: publicação, em Paris, da literatura escrita no Brasil, em edições de boa qualidade, descritas como luxuosas; investimento em vários gêneros textuais, com o objetivo de diversificar as coleções e atender ao público de forma geral; ainda, como consequência dessas duas observações, como se dera no caso de Garnier, a própria natureza do investimento editorial fazia, na mídia, a propaganda da casa comercial em geral.
Acompanhamos aqui alguns dos passos desses homens, durante quase um século, entre o continente europeu e o americano, em torno dos livros, prensas, tipos, provas, cadernos e toda sorte de matéria do mundo do impresso. Os movimentos descritos por tais atores, passadores culturais e mediadores mostram que a circulação dos impressos é um exemplo de que as fronteiras nacionais, enquanto se afirmavam em termos geopolíticos no XIX, eram constantemente quebradas e ultrapassadas pelas práticas culturais.
Jean-Yves Mollier, "Uma livraria internacional no século XIX, a livraria Garnier Frères", tradução de William Righi de Souza e Valéria Cristina Bezerra, in Lúcia Granja e Tania de Luca (dir.), Suportes e mediadores : a circulação transatlântica dos impressos (1789-1914), 2018, p. 33-54.
Roger Chartier, & Henri-Jean Martin, (dir.). Histoire de l'édition française. Le temps des éditeurs. Du romantisme à Belle Époque, 1990.
Marcia Abreu & Jean-Yves Mollier. "Nota Introdutória: circulação transatlântica dos impressos – a globalização da cultura no século XIX", in Marcia Abreu (dir.), Romances em movimento: a circulação transatlântica dos impressos (1789-1914), 2016, p. 9-14.
Jean-Yves Mollier, "Uma livraria internacional...", op. cit.; Diana Cooper-Richet. "La librairie Bossange et le commerce transatlantique du livre au début du XIXe siècle: retour sur les échanges du "centre" et "péripherie", in P. Luneau et al (dir.), Passeur d'histoire(s): figures des relations France-Quebec em histoire du livre, 2010, p.47-66.
Tania Ferreira & Lucia Neves. "Livreiros, impressores e autores: organização de redes mercantis e circulação de ideias entre a Europa e a América (1799-1831)", in Lúcia Granja e Tania Regina de Luca (dir.), Suportes e mediadores: a circulação transatlântica na literatura do século XIX (1889-1914), 2018, p. 62-85.
Jean-Yves Mollier, « Uma livraria internacional... », op. cit.
Gustave Vapereau, Dictionnaire universel des contemporains: contenant toutes les personnes notables de la France et des pays étrangers, 1858.
Ernesto Senna, O velho comércio do Rio de Janeiro, 1910.
Antonio Miguel Alcover. Los livros de produccíon latino-americana. Ensayo acerca del problema de su expansion comercial dentro dele continente, Havana, Imprenta "El siglo XX", 1912.
Jean-Yves Mollier, "Uma livraria internacional...", op.cit.
Jean-Yves Mollier, L'argent et les lettres, Paris, 1988.
Jean-Yves Mollier, L'argent...., op. cit., p. 218.
Jean-Yves Mollier, L'argent...., op. cit., p. 218.
Jean-Yves Mollier, "Uma livraria internacional...", op.cit.; Arnulfo U. S. Gomez, Edition et librairie françaises au Mexique au XIXè siècle, 2008.
Jean-Yves Mollier, "Uma livraria internacional...", op.cit.; Arnulfo U. S. Gomez, Edition et librairie françaises..., op. cit., 2008.
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