Atlantico Sul
O Atlântico Sul é um espaço de circulação abordado em três períodos distintos. O primeiro se inicia...
Amália Rodrigues (1920-1999) foi a mais importante intérprete do fado português e, iniciada sua carreira, rapidamente se tornou conhecida não apenas em Portugal como de resto em todo o mundo. Fruto de um período de modernização da indústria fonográfica de seu país, Amália se tornou uma espécie de porta-voz da nacionalização do gênero musical que tão bem interpretava. Entre os anos de 1930 e 1940 o crescimento da radiodifusão portuguesa fez com que de norte a sul do país, como também em seus domínios ultramarinos, este modelo de canção até aquele momento restrito quase que aos arredores de Lisboa se tornasse a expressão mais importante da canção popular portuguesa. Estrela Carvas, nascida em Vila Real, Trás os Montes, no ano de 1942, mudou-se ainda jovem para Angola. A menina Estrela acompanhava Amália pelo rádio e logo se apaixonou pela cantora. Aos dezoito anos, regressada a Portugal, foi bater à porta da casa de Amália, à rua de São Bento. A partir de então se tornou sua principal assessora, acompanhando-a por todo o mundo.1 O exemplo de Estrela é peculiar, claro. Apenas ela conseguiu a proeza de chegar à intimidade de Amália. Mas esse breve relato demonstra o quão o fado e Amália fizeram morada no além-mar.
Nem sempre foi assim: entre o seu nascimento como gênero musical no século XIX e sua aceitação, o fado caminhou pelas ruas estreitas e tortuosas do Bairro Alto, da Alfama e da Mouraria. Durante muito tempo esteve nos bairros limítrofes, "fora de portas", nos arrabaldes da cidade a esperar o momento certo de conquistar o espaço que lhe era devido. No século XIX, entre as elites pensantes de Portugal, não eram poucos os que desqualificavam o fado e o fadista. Citarei apenas dois exemplos que me parecem paradigmáticos da intelectualidade portuguesa naquele século: Rafael Bordalo Pinheiro e Ramalho Ortigão. O primeiro, notável ilustrador, ceramista e jornalista, assim se refere aos fadistas: "O genuino fadista de Lisboa tem até corte particular no cabelo: duas madeixas que caem dos lados cobrindo-lhe as orelhas, e sobressaíndo-lhe no chapéu ou no barrete, são-lhe indispensável complemento de figurino de bordel".2 Na mesma toada segue Ramalho Ortigão, escritor pertencente à "Geração de 70" em Portugal: "O fadista não trabalha nem possui capitais que representem uma acumulação de trabalho anterior. Vive dos expedientes da exploração do seu próximo. Faz-se sustentar por uma mulher pública que ele espanca sistematicamente".3
A despeito das desconfianças o fado foi aos poucos e lentamente se profissionalizado, sobretudo entre os anos de 1910 e 1920 com a criação de casas e cafés que se especializavam na execução do gênero. Logo a seguir ao início da ditadura militar de 1926 uma legislação adotou mecanismos de controle e censura a fim de evitar mensagens subversivas ou "inadequadas" à moral vigente.4 Ainda assim, mesmo depois de todo um processo de "domesticação", ele demorou a ser aceite integralmente pela ditadura do Estado Novo. Aos poucos, a censura e as políticas de regulação adotadas tiraram do fado o seu tônus de protesto e de sarcasmo típicos do final do século XIX e as primeiras décadas do século seguinte. Segundo Joaquim Pais de Britto, "o fado não foi uma canção do regime, mas no final dos anos 30 foi para este possível apresentá-lo já depurado de muitos dos atributos que o marcavam e o arrastavam para zonas que o poder instituído não controlava".5 Percebemos aqui, portanto, dois movimentos distintos, ainda que enredados um no outro: por um lado o fado é em parte controlado pelos aparelhos de censura de tal modo que em suas letras passam a prevalecer temas românticos e nacionalistas em substituição à sátira e ao protesto; por outro, a modernização do país nacionaliza o gênero até então restrito aos espaços urbanos de Lisboa, Porto e Coimbra. Flávia Branco, em seu estudo de mestrado sobre as fadistas no Rio de Janeiro e São Paulo demonstrou que a quase totalidade delas não conhecia o fado quando saíram de suas aldeias, quase todas originárias das áreas rurais do norte do país. Conheceram-no apenas no Brasil, dada a sua franca difusão a partir dos anos 1930.6
Quando Amália começou a cantar profissionalmente, em 1939, o Estado Novo vivia um período de relativa estabilidade. Ainda assim, os incertos desdobramentos decorrentes da guerra iniciada naquele mesmo ano provocaram temores entre as elites do regime; não apenas com em relação à continuidade da ditadura, mas também à soberania sobre seus territórios ultramarinos. O cartaz abaixo, publicado pelo Secretariado Nacional de Propaganda (SPN) e datado de 1934, com as colônias portuguesas sobrepostas ao território europeu e a afirmação de que Portugal não é um país pequeno é demonstrativo desta pulsão colonialista não apenas do regime, como também -- ao menos à época -- de suas elites opositoras. E aqui ainda um breve detalhe, na década de 1950 o sociólogo brasileiro Gilberto Freyre visitou as colônias portuguesas financiado pela ditadura estadonovista e escreveu textos sobre sua experiência africana que garantiram certo aporte teórico em torno da ideia de que Portugal era um país "multirracial, pluricontinental e indivisível".7
Voltemos a Amália. Sua carreira profissional teve início no conhecido restaurante lisboeta "O Retiro da Severa" e em pouco tempo sua fama se consolidou tanto no país quanto além das fronteiras portuguesas. Muito já se falou de Amália e de sua importância para a cultura em Portugal. Muito se falou também de sua suposta aproximação para com o regime autoritário do Estado Novo. Entretanto, sendo à época Portugal um país colonizador, e que manteve seu império ultramarino até 1975, pouco se falou ou se escreveu sobre a presença de Amália Rodrigues nos antigos territórios africanos para onde se deslocou em seis ocasiões entre os anos de 1951 e 1972.8 Nos diversos jornais e revistas de Angola e Moçambique, principalmente quando de suas visitas, mas não só, longas matérias destacavam a figura de Amália e sua importância para a cultura portuguesa. Gostaria de fazer notar, antes de qualquer coisa, a qualidade editorial desses periódicos. Qualidade essa que evidencia a presença em África de elites e de classes médias que compravam e liam jornais e revistas tão bem editados. E que traziam em suas páginas temáticas bastante variadas, da política internacional à cultura à música popular, aos esportes etc.
Sobre este público, uma breve observação. É difícil identificar com maior exatidão quem assistia aos espetáculos de Amália. Curiosamente, nas matérias dos jornais e revistas africanos, inexistem fotografias do momento do concerto ou do público presente. E igualmente inexistem, infelizmente, estudos mais aprofundados sobre cultura e práticas culturais entre as elites e as classes médias desses territórios. O trabalho de André Victorino Mindoso, pioneiro neste sentido, demonstra as dificuldades que sofriam os assimilados, brancos ou negros alfabetizados e que recebiam o estatuto de cidadão português; por exemplo, a presença destes em salas de cinema era ínfima, havendo inclusive relatos de constrangimentos físicos.9 Para o caso angolano, no período do chamado "colonialismo tardio",10 ou seja, aquele que já é contemporâneo das guerras coloniais, alguns estudos nos campos demográfico e sociológico apresentam-nos dados indicativos daqueles que, em tese, poderiam assistir a esses concertos. Quando da independência angolana, em 1975, havia cerca de 5,4 milhões de habitantes. Destes, entre 320 a 350 mil eram brancos residentes no território.11 Ainda que importante, a informação sobre o número de brancos diz pouco, posto que muitos deles pobres e/ou residentes em áreas tão longínquas que teriam difícil acesso aos espaços urbanos. Mas esses dados podem dialogar com o levantamento do que Paulo de Carvalho chamou, para o ano de 1970, de "enquadramento dos cidadãos economicamente ativos". A "burguesia e os grandes fazendeiros" constituíam cerca de 5.000 pessoas; a "pequena burguesia e pequenos fazendeiros" constava de 35.000 indivíduos, o mesmo número para os "funcionários públicos e técnicos". As demais classes arroladas pelo autor, "mestre e capatazes", "proletariado", "protoproletariado", e "operários agrícolas" não teriam condições de aceder a espetáculos e nem lhes seria permitida a entrada em clubes ou nas grandes salas de concerto.12 Para o caso moçambicano, segundo Mindoso, o Estado Novo português estabeleceu um conjunto de categorias sociais, sendo as mais importantes as de "Colono", "Assimilado" e "Indígena". Em Moçambique, em 1960, o número de cada uma dessas classificações era, respectivamente, 63.386, 34.427 e 5.646.957. Quanto à condição social do assimilado, ela é de difícil precisão, e pode variar muito. Ainda para o ano de 1960, o número de indivíduos com estatuto de cidadão português era de 109.707 pessoas assim distribuídas: 1. De origem branca e portugueses 63.386; 2. Mestiços: 29.586; 3. De origem indiana: 11.044; 4. Negros "civilizados": 4.530; 5. Amarelos: 1.153.13 O estudo de José Luís Cabaço, embora sem maiores dados estatísticos, reforça a tese do constrangimento do assimilado, de seu status permanente de "cidadão menor", "menos português" que o branco, nascido em África ou na Metrópole. O tão propagado empenho do regime em favor de políticas assimilacionistas esbarrava na resistência do branco, que nunca deixou de classificar os nativos, mestiços ou negros, assimilados ou indígenas, de pretos. Nas palavras do autor: "O racismo que impregnava essa classificação fundada no senso comum do dominador naturalizava a vida social e a percepção do outro".14 Enfim, havia classes médias e elites capazes do consumo de bons jornais, boas revistas e bons espetáculos. Mas a condição de classe, ainda que importante, não é suficiente para entender as distinções, nestes casos, determinadas pela cor da pele.
Na leitura que fiz dos jornais angolanos e moçambicanos salta aos olhos a repetição de uma série de temas que, em seu conjunto, quase que concebem Amália como uma espécie de um "monumento nacional".15 O primeiro desses temas é a condição essencialmente portuguesa de Amália. E esta essência se mostra tanto no gênero que cantava como também em seu comportamento. Quando de sua primeira viagem à África, em 1951, o Diário de Luanda exaltava a simpatia da cantora como também o sentido de portugalidade de sua música, a unir a metrópole e o ultramar: "Amália será a mensageira carinhosa a dar-nos notícias de irmãos, das suas alegrias, dos seus sentimentos de amor e das suas melodias expressivas que se aglutinam com o sangue que nos corre nas veias. E, assim, sente-se o segredo de uma canção a dizer-nos, Portugal!". Amália seria, assim, a expressão de uma portugualidade capaz de aproximar os diversos lugares em que se falava o português: "Amália, a grande Amália, alma do fado, a maior artista portuguesa da actualidade por ser aquela que consegue arrastar multidões que a aplaudem delirantemente quando a ouvem cantar...". Em seguida fazia referência a uma declaração do escritor brasileiro José Lins do Rego: "Amália aperta os corações dos brasileiros fazendo-os gemer numa confissão de que nós somos ainda portugueses".16 Em dois momentos distintos e distantes um do outro uma década, Amália, em entrevistas concedidas à imprensa do ultramar, exaltava as paisagens que entrelaçavam Portugal, Brasil e as províncias africanas. A primeira dessas entrevistas data de 1951. Inquirida sobre o que mais havia gostado em Luanda Amália falou, seu padrão arquitetônico demonstrativo do legado português:
"Para mim constituem um admirável padrão da presença lusitana nesta grande terra, e uma marca afectiva da antiguidade e da ocupação da colonização pelos portugueses. Essas casas não deveriam ser demolidas, deveriam ser conservadas. Fiquei também encantada com a vossa praia balnear. Aquilo é uma maravilha, é uma praia previlegiada [sic]".17
Em 1962, o discurso se repetia. Amália apontava as semelhanças de Luanda, vista a partir da Fortaleza de São Miguel, com Lisboa e a Guanabara. E elogiava as mudanças da cidade: "Está muito mais bela, mais cidade. Mas no público que me acolheu, que generosamente me aplaudiu sem me ouvir cantar e me pediu autógrafos, esse é exatamente igual ao outro de há anos. Público de Luanda, gente de Portugal. Igualzinho em toda a parte. Meu querido público!". Neste mesmo ano de 1962, Amália lamentava o fato de que uma revista de Lisboa havia dito que ela não era mais portuguesa e tornara brasileira. "Gosto muito do Brasil, repito, mas não troco a minha Pátria por qualquer outra. E no Brasil, onde vivemos alguns meses do ano, sabem-no perfeitamente. Primeiro que tudo e acima de tudo defendo Portugal". 18
A seguir a sua primeira experiência em África, Amália teve que esperar pelo início da década seguinte para regressar ao continente. Sua chegada a Luanda, em agosto de 1962, foi saudada pela imprensa angolana. O Diário de Luanda enaltecia o sorriso e a boa disposição da cantora "cujo nome passou, há muito tempo, as fronteiras do nosso país". Lamentava, entretanto, o fato de que os jornalistas haviam sido proibidos pelas autoridades de se aproximarem da pista de pouso do aeroporto, numa clara tentativa de impedir que a imprensa entrevistasse a principal "vedeta" portuguesa. Ainda assim, para contentamento dos homens de imprensa de Luanda, Amália concedeu-lhes uma breve entrevista de modo que "além duma grande artista, faz o favor de ser uma simpática amiga desde o primeiro dia que veio a Luanda". E o mesmo jornal mostrava-se agradecido à forma cortês com que Amália e marido haviam recebido uma delegação de jornalistas angolanos quando de uma recepção oferecida pelo casal no Rio de Janeiro.19 Nova matéria, no dia seguinte à sua chegada, relatava o encontro de Amália com a imprensa angolana. Naquele mesmo dia, dez de agosto, Amália se apresentaria no Cinema Avis e o jornal já antevia o seu sucesso: "Será, sem dúvida, um grande e novo êxito, porque Amália continua a ser, no género, não só a primeira artista portuguesa como uma grande artista portuguesa de renome mundial. Este foi conquistado, sem favor, a golpes de talento, um talento que se fez simplicidade". A entrevista ocorrera no hotel Continental onde se encontrava hospedada. Amália se pôs "a conversar amenamente, alegremente por vezes, sempre com aquela nota natural de simplicidade que é seu timbre a conversar -- dizemos - com toda essa gente da rádio, dos jornais ou a ela ligada, até muito depois das 20 horas". Também de agosto de 1962, a Revista de Angola trazia a cantora em sua capa.
A matéria sobre sua exibição foi, como de costume bastante elogiosa. O texto falava da chegada da cantora a Luanda acompanhada de seu marido, César: "uma recepção triunfal, a provar que o apreço e a simpatia de que desfruta nesta Província, onde a sua voz, impregnada de calor humano, tem o valor de uma mensagem de saudade para as gentes da Metrópole que aqui vivem". Elogiava também a simpatia da cantora que, mal chegada a Luanda, fez questão de receber jornalistas e radialistas para um "beberete" em recepção no Hotel Continental. A estreia foi, segundo o periódico, um êxito absoluto, "com a lotação esgotada e o público a vibrar de entusiasmo, com a sua interpretação de quadros típicos da vida tradicional portuguesa, na sua voz inigualável, na sua voz de ouro, que vai direita ao coração de todos os portugueses de raça que a ouvem". E reafirmava a opinião já quase que consensual entre metropolitanos e ultramarinos: "Amália é, na verdade, a grande intérprete da 'canção nacional'".20
Uma portuguesa que, e este é o segundo tema, sem abandonar suas raízes, ganhava fama e reconhecimento internacionais. Uma artista que levava Portugal a todo o mundo. Na edição da primeira quinzena de fevereiro de 1960, por exemplo, a Revista de Angola trazia longa matéria sobre Amália. O título: "Amália: a mais internacional das nossas artistas". O texto, bastante elogioso, falava de seu retorno a Portugal depois de uma temporada no Brasil e do encanto que proporcionara aos brasileiros. "Amália, a grande Amália, a artista portuguesa de maior projecção internacional, na actualidade, voltou há dias a Portugal, depois de uma longa estadia no Brasil, onde tem feito vibrar os corações lusitanos que ali vivem e sentem Portugal nos seus fados e canções". Naquele ano faria uma temporada em Paris, "onde um crítico consagrado disse que 'todos os pássaros da melancolia cantam em sua voz'". Ainda segundo o texto, os franceses conheceram Amália a partir da exibição da película Os Amantes do Tejo de Henri Verneuil (1954).
No vídeo acima Amália Rodrigues aparece interpretando Barco Negro, de Caco Velho e David Mourão Ferreira, a canção mais conhecida dentre as que figuraram no filme.
A partir de então, "quiseram vê-la e ouvi-la a viva voz, e hoje têm-na como uma das grandes artistas que visitam Paris". O disco Lisboa Antiga chegara à cifra das 600 mil cópias vendidas entre os franceses. Além disso, cerca de trinta mil turistas oriundos da França visitavam Portugal para poderem conhecer o bairro da Mouraria, onde Amália nasceu.21 De fato, seguir às filmagens de Os Amantes do Tejo, de 1955, Amália se consolidou como ídolo em França. No ano seguinte, cantou pela primeira vez no Olympia de Paris, com estrondoso sucesso. Decorre deste concerto a gravação de um disco ao vivo, Amália à l'Olympia, um dos mais importantes de sua carreira.
Questionava ainda o periódico: "Que mais seria necessário dizer para provar a extraordinária popularidade de Amália, em França?". Mas a importância da cantora extrapolava os limites da Europa. "Amália é tida em Paris, como na América do Norte, como uma existencialista, no bom sentido, um pouco semelhante às personagens de Dostoievski, - segundo um jornalista brasileiro". E era assim, com certa melancolia algo "dostoievskiana" e "profundamente portuguesa" que Amália se apresentava ao mundo:
"Amália voltou à Europa, voltou a Portugal e vai cantar de novo em Paris, que a adora. Os ingleses querem que ela volte a cantar 'Coimbra', em Londres. Os belgas querem que ela cante 'Coimbra' em Bruxelas. Os americanos querem que ela cante 'Coimbra' em Nova Iorque. E ela diz que sim, e não se ensaia nada para, a seguir, dizer que não, numa inconstância naturalíssima, própria de quem, como ela, tanto tem trabalhado, deambulando constantemente pelo mundo tornando mais conhecido o nome de Portugal através da sua voz..."22
Como dizia o Diário de Luanda em publicação de 1962: "Nas montras [vitrines] das grandes capitais da Europa e da América, os seus discos com o grande título 'Amália', figuram a par das outras criações que deslumbram o Mundo".23 E, como coroamento de suas inúmeras viagens ao estrangeiro, sua arte reproduz a existência portuguesa: "Lá está ela, a dar existência à alma portuguesa, abrindo o peito dos amantes, na sua poesia íntima, cantada em jeitos de quem sofre incompreensões e desenganos, fazendo vibrar, através de sua voz inconfundível, os corações daquela multidão imensa que não se cansa de a ouvir...". 24
O Diário de Luanda informava ainda que Amália partiria em seguida para Edimburgo onde cantaria no Festival Internacional da Escócia e em seguida Paris, onde permaneceria por dois meses em contratos com casas noturnas locais.25 Os concertos de Amália em Paris foram notícia no mesmo jornal. Informava o periódico sobre a entrevista concedida ao diário France Soir. Inquirida como se sentia na capital francesa, Amália respondeu que "cada vez que se ausenta do país, as saudades fazem-na sentir-se sempre 'irremediavelmente portuguesa'". 26
Amália, tanto na África como na Ásia, era também reconhecida em territórios não colonizados por Portugal. E este era um tema permanente dos periódicos africanos de língua portuguesa. Assim, em abril de 1966, Amália cantou na África do Sul, em evento denominado "Republic Festival Show", ocasião em que a representação portuguesa foi totalmente dedicada a Angola. Por determinação do júri do referido festival, o pavilhão português recebeu a medalha de ouro. "Triunfo portanto para Portugal e para Angola, que se viu subitamente muito falado na África do Sul", dizia o Notícia de abril daquele ano. Mas a razão do sucesso português ia além. De acordo com o jornal: "Explorando a situação tivemos ainda um novo trunfo: a presença de Amália, que ali - como em todo o mundo - alcançou êxito rotundo". O jornal referia-se ainda à visita de Amália ao pavilhão português:
"Uma das mais atentas e surpreendentes visitantes foi Amália Rodrigues. Encontrar em Joanesburgo um pavilhão português com a categoria do nosso era coisa que se menos esperava. À hora do jantar outra surpresa a esperava: um restaurante típico (que está terrivelmente na moda em Joanesburgo) onde a nossa cozinha é apresentada de forma excelente. Caldo verde com vinho verde e churrasco com cuca sabem de maneira diferente quando se encontram no estrangeiro. Amália sabe-o bem e possivelmente cantou ainda com mais sentimento depois dum jantar assim".27
Meses depois, em outubro, a Revista de Angola noticiava uma tournée de Amália à África do Sul e seu impacto. Para registrar o sucesso da cantora, o magazine angolano reproduzia matéria publicada no AS Financial Gazette, jornal de Johanesburgo:
"Amália é uma grande dama do palco -- uma instituição como a Dietrich e a Piaf. Possui uma voz extraordinária, uma voz fatalista.
Quando ela canta estão bem patentes toda a filosofia e todo o sentimento das almas simples. A sua apresentação é planeada tão cuidadosamente como a da Dietrich, mas com uma técnica mais escondida.
Os traços da sua fisionomia repousante auxiliam muito os trechos fatalistas que canta. O seu estilo dá um sabor às canções populares portuguesas que interpreta, a sua voz é quente e sincera, a sua dicção precisa e os seus gestos delicados e tocantes.
Amália é uma artista rara - uma artista em sintonia com as alegrias e as tragédias da vida. Toda ela é coração, toda ela é beleza e resignação integral".
Por fim, a revista afirmava seu contentamento em divulgar uma crítica do exterior tão elogiosa à nacional Amália: "Um belo e tocante e entusiástico 'retrado' da nossa - portuguesa - grande Amália, tratado com alma por um reputado crítico sul-africano - eis o que aí fica".28
A unificar a simplicidade com o internacionalismo, o Notícias da Beira, jornal moçambicano, publicou um texto no qual tratava de um jantar de Amália com um grupo de norte-americanos. A combinação de inteligência e simplicidade "cativara os forasteiros", como dizia o poeta.
"O sol de Lisboa e a simplicidade das suas gentes perpassaram pelas palavras também coloridas e também simples de Amália.
Começou por falar da humildade do seu nascimento, da sua mocidade alegre e despreocupada.
Quando perguntada como tinha aprendido inglês respondeu:
"Quando pequena vendia bugigangas aos turistas. Ia aprendendo assim o nome das coisas que vendia, e até palavras de agradecimento e algumas saudações de amizade. Aprendi assim a dizer Thank you, Yes sir... Daí em diante tudo foi fácil. Mas, como veem, nunca consegui mais do que este inglês em que estou a falar-lhes".
Note-se que o inglês em que Amália se exprimiu foi excelente, melhor até - disseram-no alguns presentes - do que o que muitos, salvo ingleses e americanos, têm usado nestas reuniões caracterizadas pelo alto nível dos seus participantes.
Amália foi êxito. Foi-o daquela maneira simples que nasceu com ela".29
A maneira simples e também sofisticada; a espontaneidade e o domínio da língua estrangeira; o "método" próprio que lhe permitiu falar o inglês.
O terceiro tema, por fim, é aquele que unifica metrópole e colônias. Em um momento de crise, iniciada a guerra colonial em 1961, o discurso do regime passava necessariamente pela defesa do ultramar. Por este motivo, na viajem de 1962, o Diário de Luanda confirmava que, além dos espetáculos previstos, haveria também um concerto para os soldados portugueses.30 Amália de fato cantou em Carmona, hoje chamada Uíge, localizada cerca de 340 km ao norte de Luanda. A então Carmona foi palco importante do conflito anticolonial, razão da presença de grande contingente militar. A apresentação seria gratuita e destinada tanto à população local como para os militares naquela região alocados. Dizia o jornal:
"A querida vedeta desloca-se, amanhã, a Carmona, conforme noticiamos..., a fim de dar um espectáculo, com entrada franca, dedicado à população militar e civil. Mais uma vez pomos em justo destaque a atitude generosa de Amália que sacrificou um dia de repouso para satisfazer o desejo de a ouvirem em pessoa em Carmona, onde se prepara uma grande recepção à intérprete n.º 1 da Canção Nacional".31
A última tournée de Amália pelas antigas colônias - 1972, como vimos - ocorreu entre abril e julho daquele ano. O Notícia informava que Amália, assim como nos anos 1960, fizera um concerto para os militares portugueses deslocados para a guerra colonial e visitara os enfermos no Hospital Militar.32 O Diário de Luanda também se referia à apresentação de Amália aos soldados portugueses: "Amália vai a Angola propositadamente para cantar para os briosos soldados que aí se batem pela defesa da integridade da Pátria".33 Sobre o fato de cantar para os soldados em guerra, convidada que fora pelo Ministério do Ultramar, Amália tratou de esclarecer que cantava gratuitamente para as Forçar Armadas Portuguesas:
"Estou imensamente feliz em voltar a Angola e, muito especialmente com o fim de vir cantar para esses bravos rapazes que tanto admiro e aos quais já dediquei uns versos onde ia toda a minha admiração.
[...]
E para os soldados, atua graciosamente? [pergunta o repórter]
Sim! - responde Amália - Posso dizer-lhe, não para que tal sirva de propaganda mas apenas para que tudo fique devidamente esclarecido, que os "cachets" dos meus quatro guitarristas são pagos por mim.
Às Forças Armadas cabe sòmente as deslocações e hospedagem. É esta a minha homenagem a esses moços que tanto admiro e que bem gostaria de, o mais breve possível, ver regressar a suas casas, ao convívio dos familiares. Era sinal que a guerra teria acabado". 34
Amália, entretanto, não era uma "porta-voz" do regime. E se o fado, da forma como foi concebido a partir dos anos de 1930 era, de fato, palatável aos interesses da ditadura, Amália soube se comportar com alguma independência, ao menos a partir da década de 1960. É o que chamei de "desvio". Consagrada como a mais importante artista portuguesa, Amália não "se quedou paralisada" no formato que a consagrara. Ao contrário, foi diretamente responsável por inovações demonstrativas de sua ousadia e sensibilidade artística. Em meados da década de 1960, ao lado das canções tradicionais de seu repertório, Amália aceitou o desafio de cantar poetas consagrados da língua portuguesa, como Luis de Camões, além de diversos outros ligados à oposição ao regime salazarista, como David Mourão Ferreira, Pedro Homem de Melo, Ary dos Santos, Alexandre O'Neill e Manuel Alegre. Esta mudança de rumo deveu-se em larga medida à influência do pianista e compositor franco-português Alain Oulman. E a viragem estética de Amália deu o que falar. Os mais conservadores, incomodados com o hermetismo das letras interpretadas por Amália reclamavam: "canta letras à Picasso".35 Este é, pois, um momento de transformação importante dos versos fadistas que, ainda que não abandonando temas românticos ou bucólicos, voltava a tratar de questões ora mais "engajadas", ora mais "existenciais". Em geral, na diversidade dos segmentos letrados, pairava certa ideia de heresia em tentar associar o fado à "alta cultura". Esta polêmica também se fez ouvir em África. E assim, em novembro de 1965, a revista Notícias, de Angola, publicava matéria sobre o tema com o título "A poesia saiu dos livros". Assinada por Angerino de Sousa, o texto aparece ilustrado com um desenho onde Amália aparece em primeiro plano com Camões ao fundo.
A crônica refletia sobre as possíveis reações dos populares diante deste "novo canto" de Amália:
"O merceeiro gordo, sebento, com barba por rapar, suspendeu a abertura de mais um saco, e escutou. O homem do fato cinzento, amarrecado pelo constante procurar nas bibliotecas e arquivos, cerrou os olhos de raiva: qualquer dia toda, gente tinha de cor, os versos que ele, com tanto sacrifício, estudava. O pintor incompreendido, traçou no papel branco umas formas estranhas, mas sentidas, que eram a sua glosa do poema, que a cantadeira de tão escabroso (diziam) passado ativara para aqueles que o queriam, que sabiam o que era poesia, não por andarem nas bibliotecas e arquivos, mas por terem no sangue o riso das crianças e na pele a fome da beleza.
E quando tudo se esquecer, ficará apenas a poesia, liberta dos livros, no olhar do povo que a esperava".36
Também a Revista de Angola fez referência e exaltou a modernização do fado protagonizada por Amália:
"Amália evoluiu. Do velho fado choramingão para novas facetas da "canção nacional". Teimam em chamar-lhe canção nacional - e - é mesmo. Somos fadistas por atavismo... Mas evoluiu porque, continuando a cantar como só ela canta, escolhe novos ritmos e novas letras e é sempre ela. Camões? Se ele devia andar, mais do que anda já, pelas escolas, entre as crianças, e na rua de braço dado com o Povo. Pois não foi ele, "traga-mouros" e "trinca-fortes" povo também?
[...]
Ficámos satisfeitos. Amália evoluiu. O Fado também. E desta simbiose de ambos nascem altos momentos de Arte, que os espectadores e os simples ouvintes apreciam.
Parabéns, Amália. Volte mais vezes. Mais vezes... e com mais vagar".37
Amália Rodrigues é fruto de uma época de desenvolvimento e modernização que lhe permitiu uma notoriedade ímpar na história da cultura popular de língua portuguesa. Claro está que seu inegável talento foi determinante. Outras cantoras e outros cantores de fado surgiram na mesma época e não tiveram o mesmo reconhecimento, nacional ou internacional. Mas é também verdade que sem aquele impulso modernizador a ressonância de seus atributos artísticos seria sensivelmente menor. Ao mesmo tempo, na medida em que seu crescente reconhecimento combinava com o advento do Estado Novo, o gênero foi, em certa medida, apropriado pelo regime.
Esses mesmos meios de comunicação exerceram papel decisivo na formatação de um discurso oficial nacionalista que soube se utilizar do fado como instrumento constituinte da identidade nacional portuguesa. Amália foi alçada à condição de principal representante do que mais de genuíno, de mais puro, havia da cultura popular de seu país. Uma cultura, parafraseando Eric Hobsbawm e Terence Hanger, inventada, mas nem por isso menos eficiente ou menos legítima. Representante deste Portugal imaginário, Amália, segundo a imprensa africana, nunca perdera as suas raízes. Viajara pelo mundo e falava inglês com perfeição, sem nunca abdicar da condição de portuguesa. Quanto à ideia de um Portugal grande, de um território contínuo além-mar, ela ganhou corações e mentes das pessoas tanto na metrópole como nas colônias. De certa forma ela é consequência de uma identidade colonialista que não foi, em Portugal, exclusividade dos conservadores. E quero crer que Amália, em suas viagens à África, serviu como um dispositivo importante a fortalecer o nacionalismo luso no além-mar. As reiteradas ocasiões em que se afirmou "portuguesa acima de tudo" ou buscou aproximar as cidades africanas de Lisboa ou do Rio de Janeiro assim o comprovam. A mim parece que ela sabia qual discurso deveria fazer. E o fazia bem.
Por fim, resta refletir sobre as diversas ocasiões em que, sem receber pelos seus serviços, cantou para os soldados em guerra. Neste caso, como é evidente, trata-se de uma escolha. Ou de um aceite frente a um convite das autoridades, o que não deixa de ser uma escolha. Feita esta observação, creio que outras me parecem igualmente importantes. Como disse e reitero, a identidade colonial unificou durante anos portugueses das mais diferentes colorações políticas ou ideológicas. Portanto, não era estranho compreender o ultramar como pertencente ao território português. Além disso, não estamos a falar aqui de uma pessoa engajada num ou noutro campo político. Amália pertenceu àquele universo que, para o caso da França de Vichy, Pierre Laborie chamou de "zona cinzenta", ou seja, a parcela majoritária da população que optou, frente à ocupação nazista, por não se engajar diretamente no conflito.38 Foi assim também em Portugal como igualmente em diversas outras ditaduras. O comportamento humano, como disse o filósofo David Hume, tende a escolher a vida comum, a vida ordinária.39
Estrela Carvas, Os meus 30 anos com Amália (Lisboa: Guerra e Paz Editores, 2009), 15-22.
Citado por Joaquim Pais de Brito. "O fado: etnografia da cidade." In Antropologia urbana: cultura e sociedade no Brasil e em Portugal, ed. Gilberto Velho (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999), 30-31.
Ibid, 31.
Rui Vieira Nery, Para uma história do fado (Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2012), 228-240.
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