Ruy Guerra, o “cineasta viajante”
Ruy Guerra (RG) nasceu em 22/08/1931, em Lourenço Marques (hoje Maputo), capital da colônia portuguesa...
Cenas, episódios e personagens relacionados a deslocamentos transatlânticos se fizeram presentes na história do cinema norte-americanos, de modo diferenciado, desde os primórdios do cinematógrafo, sobre a forma de pequenos e simples registros da vida urbana.
Em um segundo momento, com a progressiva consolidação da indústria de cinema norte-americana, nas duas primeiras décadas do século XX, a temática da vinda de emigrantes europeus para a América, e as questões a ela relacionadas, vai servir de base para a elaboração de tramas ficcionais, pelo seu potencial valor comercial junto à nova audiência de classe média também então em formação.
Estátua da liberdade [Statue of Liberty], pequeno filme de aproximadamente cinqüenta segundos, produzido pela Thomas Edison Company, pode ser considerado como um dos primeiros registros cinematográficos da chegada de uma travessia transatlântica no porto de Nova Iorque.
Efetivamente, neste filme, composto de um único plano, e datado de 3 de setembro de 1898, o ponto de vista da câmera é de alguém situado na proa de um navio. Quando o filme se inicia, a câmera já enquadra o conjunto da ilha da Liberdade, que abriga a proeminente estátua do mesmo nome.
O colossal monumento está localizado, no inicio do filme, bem no centro do quadro. À medida que o navio vai avançando, o enquadramento se altera. No final do travelling e do filme, a estátua encontra-se posicionada no canto esquerdo do quadro.
Não sabemos, entretanto, de qual embarcação foi registrado o plano e se o cinegrafista encontrava-se, quando efetuou o seu registro, em um navio oriundo da Europa, efetivamente prestes a finalizar a sua travessia naquele instante decisivo. Não há tão pouco, no quadro, qualquer outra figura humana com a qual o espectador possa se identificar.
A proposta da gravura Nova Iorque - Bem vindo a Terra da Liberdade, publicada dez anos antes, em 2 de julho de 1887, na revista semanal Frank Leslie Illustrated Newspaper, é claramente a de oferecer aos leitores desta publicação ilustrada, de ampla circulação, um ângulo de visão da Estátua da Liberdade assemelhado ao dos passageiros do navio que os transporta do Velho ao Novo Mundo.
O ponto de vista oferecido é dos imigrantes, retratados no momento da entrada no porto de Nova Iorque, quando se defrontam, a esquerda do convés onde se encontram, com a visão da estátua, que lhes deseja simbolicamente boas vindas. O portentoso monumento, doação do Estado francês ao povo norte-americano, tinha sido inaugurado pouco meses antes, em 28 de outubro de 1886.
Na sua rota em direção ao principal porto de entrada do Novo Mundo, após passarem pela Ilha da Liberdade, os navios aportavam em Ellis Island, ilha onde ficou localizado, entre 1892 e 1954, o centro de controle de imigração do porto de Nova Iorque, e pelo qual se estima que passaram de 12 a 16 milhões de imigrantes, sobretudo nas duas primeiras décadas do século XX.
Entres os primeiros registros cinematográficos existentes da entrada de imigrantes no solo norte-americano, destacam-se dois pequenos filmes, ambos centrados no desembarque de pessoas em Ellis Island, desembarques registrados a partir do ponto de vista de quem esta no cais do porto, a espreita da chegada do navio ou observando a circulação do fluxo de imigrantes que chegam dentro de alguns espaços do território da ilha.
Os dois filmes pertencem a categoria de filmes então denominados local actuality film. Mostram cenas do dia a dia da cidade, muito populares neste inicio de século, na medida, em que o público da cidade onde tinham sido rodados podia esperar se reconhecer na tela ou identificar a presença de alguém próximo dentro do quadro.
O registro mais antigo, de 24 de julho 1903, Emigrants [i.e. Immigrants] Landing at Ellis Island, produzido pela Thomas Edison Company, mostra, em dois minutos e meio, três cenas.
O filme se inicia com uma vista do navio William Myers, apinhado de passageiros, se aproximando do cais da estação de imigração de Ellis Island. Em seguida, após a chegada, vemos uma passarela ser colocada, para permitir a descida dos passageiros. Os primeiros viajantes descem. Logo após, desembarcam muitas pessoas, freqüentemente, com crianças no colo, cheios de bagagem. Não se vê nenhuma figura controlando o direcionamento do fluxo de imigrantes dentro do quadro.
O segundo filme, de 9 de maio 1906, Arrival of Emigrants [i.e. Immigrants], Ellis Island, produzido pela American Mutoscope and Biograph Company, e ligeiramente mais longo (3mn45), contem um número pouco maior de planos, e mostra a circulação de grande massa de pessoas, também carregados de malas e pacotes, em espaço ao ar livre da ilha.
Aqui, em todos os planos é flagrante a presença de homens uniformizados mostrando a direção a seguir aos recém chegados, freqüentemente de modo bastante impaciente. Entendemos que num segundo momento a multidão está sendo encaminhada, através de uma passarela, para um navio, que não vemos partir, mas que sabemos, assim como os espectadores nova-iorquinos de então, que os levará a grande cidade americana.
É notável a ausência, neste último actuality film, de qualquer plano situado no interior do prédio onde ficava localizado o centro propriamente dito de controle de imigração. O referido prédio só aparece enquanto imponente fachada por detrás do grande fluxo de pessoas que, ao circular ao ar livre, se afastam do imóvel em direção a outro espaço, num primeiro momento não revelado.
Ao observar a trajetória do fluxo de pessoas que circulam nos dois primeiros planos, está claro, para quem conhece a topografia do lugar, que as mesmas estão saindo do edifício. A referida ausência neste pequeno filme, de qualquer plano situado no interior do prédio é particularmente significativa, na medida em que é em função das provações pelas quais passavam, neste espaço interno, os imigrantes (e do temor que lá tinham sentido de serem mandados de volta para o porto de onde tinham partido), que Ellis Island foi denominada, em todas as línguas, de Ilha das lágrimas.
Não dispomos, hoje, de informações precisas a respeito da difusão de Arrival of Immigrants (1906), mas é provável que esta possa ter sido mais abrangente do que a de Immigrants Landing (1903), com a multiplicação, a partir de 1905, dos Nickelodeons, novos espaços de exibição bastante freqüentados por pobres imigrantes recém chegados na América, em função do baixo custo dos ingressos e da flexibilidade dos horários possíveis de freqüentação.
A instalação, em Ellis Island, de uma infra-estrutura e de um corpo diversificado de funcionários especializados, para exercer o controle da entrada de imigrantes, encerrando uma fase anterior de descentralização e inferior organização dos serviços de imigração, relaciona-se com o crescimento vertiginoso da imigração nos EUA nas duas últimas décadas do século XIX, e principalmente nas duas primeiras do século XX.
Estima-se que o maior boom imigratório tenha ocorrido de 1900 a 1914, com a entrada de aproximadamente treze milhões de imigrantes, quantidade superior a de qualquer outro período semelhante na história do país. Até a penúltima década do século XIX, a maior parte das correntes imigratórias era oriunda das regiões nórdicas do Velho Mundo. Agora predominavam indivíduos oriundos dos Bálcãs, dos países do leste e da Europa do Sul, principalmente da Itália.
Na aurora do novo século, a magnitude do novo afluxo, e o seu modo de composição, serviu de alimento a exacerbação dos sentimentos xenófobos arraigados em diversos setores da sociedade e do mundo político norte-americano, desde o inicio do século anterior.
É marcante, na história do cinema norte-americano, a proliferação, no período, na então emergente indústria de filmes de ficção, de enredos nos quais se destacam protagonistas de nacionalidade ou origem italiana, representados como impulsivos, instintivos ou de sangue quente e cujos perfis estereotipados são muitas vezes associados a foras da lei e a criminalidade.
A American Mutoscope and Biograph Company, que produziu em 1906, Arrival of Immigrants, lança, no mesmo ano, um curto melodrama (The Black Hands, 1906, 11 mn), que oferece, em ultima instância, uma visão negativa dos imigrantes e do seu universo em Nova Iorque. Tal visão também se fez presente em curtas dirigidos, nos anos seguintes por D. W. Griffith, nos quais personagens italianos ou oriundi se destacam, como acontece nos filmes In Little Italy (1909), At the Altar (1909), The Italian Barber (1910), ou Italian Blood (1911).
Uma das raras obras, segundo estudos recentes, a oferecer uma representação aparentemente mais compreensiva da experiência do imigrante é The Italian (1914, 74 mn), dirigido por Reginald Barker.
O caso desta obra é emblemático do período de transição em que foi produzido -sob a batuta do célebre Thomas Ince. O italiano do título é Beppo, interpretado por Georges Beban, ator conhecido na época pelas suas caracterizações étnicas, particularmente de personagens de imigrantes italianos.
A primeira parte do filme se desenvolve numa "velha Itália" idealizada. O gondoleiro Beppo é visto em ação em Veneza, e no interior rural onde reside sua amada, Annette, que trabalha com o pai no cultivo da uva, numa rotina diária marcada por ritos religiosos católicos. Beppo é desafiado pelo futuro sogro a garantir a sua filha um adequado sustento e um lar, trama romanesca que visa a despertar a simpatia do público com a combativa e até então sorridente figura do noivo.
Para alcançar o seu objetivo, Beppo emigra para a América. Trabalhando como engraxate numa rua de Nova Iorque, consegue trazer Annette, de quem tem um filho, Tony. Em uma cena da segunda parte, Beppo é inadvertidamente abordado por Corrigan, manda-chuva do bairro, que lhe dá dinheiro para que dê o seu apoio a Casey, candidato a vereador dito "amigo dos trabalhadores". Uma sucessão de desgraças a partir de então se sucedem, contrariando o movimento do que até então parecia se anunciar como uma celebração das oportunidades abertas pela imigração na terra dourada americana.
O rosto de Beppo sofre progressiva e inquietante transformação fisionômica, acentuada por insistentes planos próximos do seu rosto. Tony fica gravemente doente e seu pai busca desesperadamente ganhar mais dinheiro para salva-lo. Entrementes, Beppo é assaltado. É, erroneamente, levado preso, no lugar dos assaltantes. A caminho da prisão, consegue fugazmente se soltar do policial que o levava, para solicitar ajuda a Corrigan, que, casualmente, passava no lugar. O manda chuva o rechaça com violência. Ao sair da prisão, Beppo é informado da morte do filho. Dominado por um espírito de vingança, planeja matar o filho de Corrigan com as suas próprias mãos. Desiste, na ultima hora, e, na penúltima cena, é visto, prostrado junto ao túmulo do Tony.
Na sua busca de conquista de uma larga audiência, o filme articula uma complexa justaposição de códigos. A visão idealizada da velha Itália oferecida na primeira parte do filme, bem como as patéticas cenas da existência de Beppo e Annette em Nova Iorque, sofrendo as agruras da dura realidade dos primórdios da existência de imigrantes pobres na América urbana são representações construídas para suscitar a identificação emocional de um público imigrante, que dialogam com o realismo social também presente em outra categoria de filmes de ficção do período como os ghetto filmes, que no mesmo cenário de vulnerabilidade urbana do Lower East Side de Nova Iorque, envolvem numa grande variedade de melodramas, personagens judeus imigrantes. É notável, por outro lado, que a estória de Beppo esteja emoldurada, no filme, por um prólogo e um epílogo que dialogam com tradições artísticas oitocentistas consideradas nobres, como a literatura e o teatro.
A busca do estabelecimento de tal diálogo deve ser compreendida dentro do esforço de gentrificação da indústria americana de cinema, que almejava adquirir, entre as duas primeiras décadas do século XX, respeitabilidade cultural. Para além das audiências proletárias de imigrantes recentes que afluíam para os Nickelodeon, a nova indústria buscava conquistar um público ascendente de classe média urbana, composto, entre outros, de empregados de escritórios e de algumas categorias de trabalhadores mais prósperos.1
No primeiro plano do prólogo, vemos duas cortinas se abrir, revelando um senhor (Georges Beban) elegantemente vestido localizado no interior de um salão burguês, retirar um livro da estante da biblioteca, cujo titulo é o mesmo do filme. O elegante senhor, depois de folhear brevemente o livro, volta para pagina de inicio do primeiro capítulo, cujas primeiras frases, que aparecem na tela, descrevem uma ação que veremos representada imediatamente depois, quando a diegese efetivamente se inicia.
O epílogo advém logo após a cena na qual vemos Beppo, desconsolado, junto ao tumulo do filme. A elegante figura do leitor do prólogo ressurge, lendo a ultima pagina do livro. Antes que as cortinas se fechem, pontuando o final do filme, aparecem na tela às frases da ultima pagina, que descrevem a cena que acabamos de ver, deixando o personagem presente na tela pensativo. Tal moldura teatral oferece ao espectador de classe média a oportunidade de um distanciamento da dura realidade evocada na diegese.
Apesar do filme de Barker constituir uma representação mais compreensiva da vida dos imigrantes italianos na América do que a da maioria dos filmes do período, seu enredo conduz a um desencorajamento da imigração transatlântica, e também contém, conforme sublinhou Norma Bouchard, ecos da forte ascensão, no período, do repertório clássico de correntes de opinião nativistas.
Tais correntes, contrárias ao que denominavam novos imigrantes, propagavam, entre outras idéias, a de que os povos mediterrâneos eram moralmente inferiores aos europeus do norte. E que a vinda de imigrantes do sul da Europa para a América poderia provocar o declínio da inteligência americana.
Esta visão do mundo foi defendida, no mesmo ano em que o filme foi lançado, no livro significativamente intitulado The Old World in the New pelo então renomado professor Edward Ross, da Universidade de Wisconsin.
Efetivamente, no evoluir da trama, Beppo adquire traços de um outro racializado. Frente à adversidade e a injustiça, o oriundi prontamente adota um comportamento fora da lei, criminal e vingativo. Percebem-se ecos do eugenismo quando a imagem do seu rosto irado toma todo o espaço do quadro.
Considerado no seu conjunto, o filme ressoa a ansiedade da sociedade americana do período, que estava cada vez mais embarcando em políticas legislativas agressivas que visavam regular "o fluxo dos imigrantes indesejáveis em nom de uma imaginada identidade cultural, espiritual e racial cujos ecos ainda hoje podem ser ouvidos."2
Miriam Hansen, Babel and Babylon: spectatorship in American Silent Film, (Cambridge: Harvard University Press, 1991).
Norma Bouchard, "Screening the silent film: Reginald Baker and the resurgence of American nativism." The Cultures of Italian Migration. Diverses Trajectories and Discrete Perspective, ed. Graziella Parati and Anthony Julian Tambory (Madison: Fairlight University Press, 2011), 19.