Glauber Rocha
A dimensão transatlântica do projeto estético do cineasta brasileiro Glauber Rocha será discutida a...
"A terra é circular. O sol é um disco. Onde está a dialética? No mar. Atlântico, mãe. Como eles puderam partir daqui para o mundo desconhecido? Aí, eu chorei de amor pelos navegadores, meus pais. Chorei por tê-los odiado. Chorei por ainda ter mágoa desta história. Mas chorei fundamentalmente diante da poesia do encontro do Tejo com o Atlântico, da poesia da partida para a conquista. Eles o fizeram por medo, também, e talvez tenham chorado diante de todas as belezas, além do mar, Atlântico. Oh paz infinita poder fazer elos de ligação numa história fragmentada. África e América, e novamente Europa e África. Angolas, Jagas, e os povos de Benin, de onde veio a minha mãe. Eu sou atlântica1."
Ao menos em certos idiomas, imaginários e léxicos sentimentais, o termo transatlântico remete de forma mais imediata não a um adjetivo, mas a um substantivo: os navios—primeiro a vela e mais tarde a vapor—que, a partir da virada do século XV para o XVI, transportaram mercadorias, pessoas, artefatos culturais, sonhos, mas também epidemias, armas, normas jurídicas, formas de sujeição. Esse sentido vem sendo relegado a um lugar secundário nos dicionários, talvez porque as grandes embarcações cederam espaço para Boeings 787 e Airbuses A350, encurtando os tempos e reduzindo os custos (mas multiplicando os impactos ambientais e potencializando os riscos sanitários) das viagens. Atores os mais variados seguem, de toda maneira, atribuindo um poder transformador às travessias, seja no plano individual, seja no coletivo. Essa persistência do Atlântico como desafio e como possibilidade, como barreira e como espaço de circulação, convida-nos a perscrutar as construções e reconstruções históricas de um oceano que nada tem de estático ou autoevidente, a despeito de sua aparente fixidez geográfica.
Perspectivas transatlânticas vêm ganhando força no âmbito da historiografia em meio a denúncias do nacionalismo metodológico. Trabalhos voltados a latitudes e arranjos institucionais os mais variados há muito identificaram vínculos estreitos entre a consolidação da história como disciplina acadêmica e a construção de narrativas nacionais, particularmente ao longo do século XIX. Na centúria seguinte, a nação continuaria, e com consequências por vezes catastróficas, funcionando como uma espécie de horizonte incontornável e naturalizado para a escrita da história—o que não deixava de ter justificativas práticas, como o acesso a arquivos, o estabelecimento de comunidades de debate e o domínio de idiomas.
A aliança político-acadêmica entre historiografia e nacionalismo nunca se deu, porém, sem limites, conflitos ou contradições. A própria concepção da história como um processo unificado e cognoscível, que fez parte dos esforços de profissionalização e fundamentou aspirações à cientificidade, devia muito a narrativas com pretensões universais como as esboçadas pelos filósofos das Luzes, mas também a embates com outras formas de habitar o mundo e conceber a experiência temporal, como os que ocorreram ao longo da conquista da América. O estabelecimento de parâmetros e procedimentos padronizados para a historiografia se deu a partir de diálogos entre praticantes da disciplina situados em territórios diversos, revestindo-se do caráter inevitavelmente relacional das construções identitárias e se valendo das dimensões transfronteiriças dos intercâmbios letrados. Parcelas significativas da população seguiram ocupando unidades políticas que não se organizavam como Estados-Nação, a exemplo dos impérios multiétnicos e territorialmente dispersos que persistiram por boa parte do século XX.
As limitações do enquadramento nacional se tornaram mais explícitas quando confrontadas com a aceleração informatizada das trocas materiais e imateriais, os deslocamentos dos eixos geopolíticos no pós-1989, os debates sobre a globalização e o desafio epistemológico e ético de superar o eurocentrismo. Nesse cenário, interrogações renovadas sobre unidades espaciais, escalas de análise e formas de mobilidade vêm resultando em escritas da história crescentemente marcadas por travessias de fronteiras—seja na escolha dos temas, seja na construção das pesquisas, seja nas trajetórias acadêmicas de seus autores.
A história global se consolidou como resposta privilegiada a esses desafios, sobretudo em publicações feitas em inglês e no Hemisfério Norte. Não haveria, contudo, problemas a explorar a partir de outras formas de ordenação geográfica? Ou, para colocar a questão em termos mais propriamente políticos: uma ênfase excessiva no global, seja como escopo, seja como recurso heurístico, não nos exporia ao risco de servir a determinados projetos, em especial à globalização de tipo neoliberal, tão acriticamente quanto certas histórias que se escreveram a serviço da nação?
Em alguns sentidos, o Atlântico precedeu o globo como locus de investimentos historiográficos monumentais. Se a história global adquire fôlego com o colapso da organização geopolítica que prevaleceu durante a Guerra Fria, a história atlântica pode ser associada aos esforços de reconstrução que se seguiram à Segunda Guerra Mundial. Bernard Bailyn sugeriu que o interesse em buscar no oceano certa unidade social, política e cultural encontrou um antecedente importante na Carta do Atlântico negociada por Roosevelt e Churchill. Diante da participação decisiva das tropas estadunidenses—e, em menor medida, latino-americanas, sem esquecer os contingentes mobilizados a partir de uma África ainda amplamente colonizada—nas batalhas travadas em solo europeu, as afinidades e as interdependências das margens atlânticas não apenas ganharam visibilidade, mas também foram percebidas como estratégicas. Produziram-se, assim, representações do Atlântico centradas em uma pretensa herança judaico-cristã compartilhada, em que o eixo setentrional prevalecia e pouca atenção era dedicada a temas como o tráfico escravagista ou a Revolução Haitiana. Nessa conjuntura, o historiador Ross Hoffman, de inclinações católicas e conservadoras, chegou a definir o Atlântico como "o mar interno da civilização ocidental".2
Os "Atlânticos historiográficos" logo se multiplicariam e se diversificariam, sob o impacto de debates específicos da disciplina, notadamente o intuito de transpor para outros corpos de água a análise geohistórica de longa duração que Fernand Braudel situou no Mediterrâneo, ou seguindo estímulos de naturezas variadas, como o esfacelamento de impérios coloniais em meio à construção de projetos pan-africanistas, ou as lutas pelos direitos civis nos Estados Unidos e o consequente interesse no estudo das culturas afro-americanas. O Atlântico se pintou de negro para ressaltar a diáspora africana; de verde para colocar em foco a imigração irlandesa; de vermelho para enfatizar as circulações seja de populações ameríndias, seja de militantes e ideias de esquerda. O oceano foi subdividido em regiões, dinâmicas e cambiantes, como o Atlântico Sul que conectou com alguma intermitência as costas da África e da porção meridional das Américas.
A forma adjetivada "história atlântica", que prevaleceu em meio à proliferação de pesquisas observada a partir dos anos 1990, sugere que essas produções historiográficas procuravam não apenas colocar em foco uma área circunscrita pelas bordas do oceano, mas sobretudo fazer deste uma chave interpretativa. Nunca houve, contudo, um consenso quanto à definição dessa abordagem. Em um esforço cartográfico publicado no início dos anos 2000, David Armitage reconheceu a fluidez dos contornos da história atlântica, a despeito de ela parecer referir-se a um espaço claramente delimitado e a uma cronologia específica, situada entre as grandes navegações e as revoluções de independência que eclodem a partir do final do século XVIII.3 Esse caráter móvel—uma homologia entre o oceano, com suas marés instáveis, e o campo de estudos—constituía um convite ao pluralismo metodológico e à expansão de horizontes, mas trazia riscos de dispersão ou, mais gravemente, de favorecimento de projetos de dominação imperialista.
Potencialidades e perigos semelhantes vêm sendo identificados na história global. Ela é ora entendida como uma forma renovada de promover grandes sínteses, ora pensada a partir de multicêntricas, mas detalhistas, pesquisas de arquivo; ora vista como um processo, um tema de estudos, ora como uma perspectiva, uma metodologia. Sebastian Conrad argumentou que a história global seria mais produtiva como um esforço para levar até a escala planetária a busca por causalidades, de modo a não simplesmente mostrar que determinados fenômenos estavam conectados, mas também por que isso ocorria. Ela seria, assim, um exercício historiográfico inscrito sobretudo na sincronia, voltado à compreensão das simultaneidades que as circulações e as circunstâncias compartilhadas em determinados momentos históricos produzem. Ainda na leitura de Conrad, contudo, a transformação do global em um termo da moda, e mesmo em uma condição sine qua non para a obtenção de financiamentos de pesquisa em determinados cenários acadêmicos, pode ter custos nada desprezíveis: o apagamento de lógicas específicas do passado, a partir de uma ênfase excessiva nas conexões; a fetichização da mobilidade; a negligência de questões ligadas ao poder; a generalização desmedida; o aplainamento das realidades históricas; a exclusão da agência ou a relativização de responsabilidades locais.4
A catástrofe climática que se anuncia vem levando a deslocamentos nas histórias oceânicas, evidenciando suas complexas relações com o cenário global. A necessidade urgente de pensar as águas que circundam os continentes como um único ecossistema sublinha uma interdependência e uma circulação contínuas, que nos provocam a pensar tanto a integração quanto as batalhas, as divisões, as competições entre diferentes áreas. Isso se tem traduzido em esforços para descentrar o Mediterrâneo e o Atlântico, que constituíram até aqui os focos preferenciais de atenção historiográfica. Os estudos sobre o espaço atlântico vêm, com isso, procurando caminhos alternativos àqueles que marcaram seu momento triunfante, sobretudo na historiografia estadunidense, quando os trabalhos se concentraram no comércio de pessoas escravizadas—e, consequentemente, no período que vai do século XV ao XIX—ou no Atlântico Norte, frequentemente tomado como representativo de todo o oceano, em um conveniente alinhamento a determinados projetos de hegemonia. Até mesmo a visão do Atlântico como espaço por excelência em que circularam ideais ilustrados e fervilharam revoluções e projetos de liberdade vem sendo relativizada a partir de investigações que colocam em foco dinâmicas que tiveram como cenário o Índico e o Pacífico.5
Interrogando-se sobre as relações entre as partes e o todo em meio aos percursos historiográficos transfronteiriços, Sergio Serulnikov sugeriu que perspectivas relacionais como as histórias conectadas e o olhar transnacional tiveram na América Latina uma ressonância maior que aquela alcançada por abordagens globalizantes ou universalistas. Segundo ele, longe de representar uma insuficiência ou um "atraso" das historiografias latino-americanas, essa constatação aponta para uma escolha consciente, já que a região não se sentiria representada nem pelos recortes espaciais nem pelas preferências temáticas das formas dominantes de história global, centradas em eixos euroasiáticos e pautadas pelo impacto da ascensão econômica e geopolítica da China.6 O mercado historiográfico desigual delineado por Serulnikov nos leva a refletir sobre como as crescentes inquietudes em torno de escopos geográficos e escalas de análise podem ser, acima de tudo, sinais de que nos encontramos em pleno momento de reimaginação conceitual do espaço, das formas de o organizar e dos modos de o habitar—o que inevitavelmente implica reconfigurações das relações de poder.
No texto em que delineou, ainda no início dos anos 2000, três concepções distintas (mas potencialmente complementares) da história atlântica, David Armitage adotou uma terminologia que pode causar mal-entendidos: ele qualificou como "circumatlântica" a história transnacional do mundo atlântico, aquela que pensa as bordas do oceano como uma região particular de intercâmbio, circulação e transmissão; e como "transatlântica" a perspectiva voltada à história internacional da região, concebida sobretudo em termos comparativos entre distintos espaços nacionais.7 Ao fazê-lo, o historiador parece ter retirado do seu horizonte certas possibilidades abertas por diversas propostas marcadas pelo prefixo "trans"—que carrega justamente as ideias de travessia, mudança, chegada ao outro lado de uma fronteira qualquer.
A história transnacional constitui a mais estabelecida dessas abordagens. Em um debate promovido em 2006 pela American Historical Review, sugeriu-se que perspectivas transnacionais permitem pensar como os processos históricos são construídos no movimento entre diferentes espaços; enfocar conexões que transcendem territórios politicamente estabelecidos, a partir de redes, instituições e ideias; tomar a interconexão da história humana como um ponto de partida para o estudo da experiência temporal. Em contraste com o global, o olhar transnacional teria os benefícios de ser mais maleável e permitir a análise de espaços circunscritos, associados a ações específicas.8
Uma das principais e talvez mais óbvias limitações do olhar transnacional está inscrita no próprio termo: ele não romperia com a nação, continuaria pressupondo sua existência, ainda que se situe sobretudo na escala das dinâmicas que não se restringem aos limites traçados pelas políticas estatais. Mais ainda, o termo seria inadequado, ou mesmo abertamente anacrônico, para tratar de períodos anteriores a meados do século XIX. A partir dessas críticas, a ideia de translocal foi proposta como uma alternativa. Mais uma vez, porém, a expressão foi acusada de insuficiências, sobretudo por sugerir um vínculo forte com escalas micro, nem sempre satisfatórias para a pesquisa histórica.
Outros pesquisadores vêm insistindo no conceito de transregional como uma alternativa preferível. A grande vantagem dessa proposta seria o caráter absolutamente vago, indefinido, do conceito de região. As abordagens transregionais promoveriam, assim, reflexões sobre as próprias unidades geográficas, concebendo-as como resultantes de processos históricos complexos, que envolvem construções conceituais, elaborações de vocabulários, disputas pelo poder. O olhar transregional traria à tona, portanto, a historicidade das categorias de imaginação espacial e o caráter político das lutas por sua definição.
Escritas de histórias transatlânticas podem entrecruzar ou transitar por essas possibilidades, sobretudo caso se proponham a tomar a variação de escalas como um princípio metodológico. O olhar transnacional se faz imprescindível para pensar o período que vai de meados do século XIX até, pelo menos, o final do século XX (e temos contundentes indícios das persistências da nação para além deste marco). Já a perspectiva translocal permite colocar em foco dinâmicas como as vidas das cidades portuárias, em suas especificidades e semelhanças—e cabe lembrar que tais espaços urbanos frequentemente compartilham mais entre si que com territórios do interior de seus respectivos países. Além de propiciar indagações sobre a própria definição do espaço atlântico e suas flutuações diacrônicas, uma abordagem transregional permite avaliar suas subdivisões e laços com outros sistemas marítimos ou oceânicos, e mesmo com terras mais afastadas das costas.
Como histórias oceânicas—interessadas não apenas no que se passa na chegada às margens, mas também nas travessias, no que ocorre sobre e abaixo das águas—, olhares transatlânticos podem ainda propiciar aproximações transtemporais. O trânsito entre temporalidades permite, inclusive, colocar em questão e desnaturalizar esforços de construção de esferas de influência ou afirmações de unidades tidas como estáveis. A necessidade de manejar longuíssimas escalas de tempo suscitada pela hipótese do antropoceno traz novos sentidos para os oceanos como "horizonte de expectativa (no sentido mais literal) e espaço de imaginação". Abrem-se, assim, possibilidades para uma "recalibragem de ampla escala dos nossos sensos da temporalidade e das subjetividades humanas e terrestres, valorizando ao mesmo tempo panoramas sobre o futuro do tempo, na historiografia e para além dela".9
Todas essas movimentações historiográficas encontram algumas de suas condições de possibilidade nos mecanismos informáticos, particularmente na digitalização massiva de documentos tratados com recursos que permitem buscas de texto. Os meios digitais alteram as formas de comunicação com públicos diversos, aceleram colaborações dispersas no espaço e, mais decisivamente, permitem realizar achados arquivísticos com custos materiais reduzidos, e mesmo sem saber de antemão onde se deve procurar. Eles limitam, ao mesmo tempo, a vivência da pesquisa e formas de conhecimento que somente podem emergir do estranhamento ocasionado pela presença física em território estrangeiro ou pelo contato duradouro com a materialidade dos vestígios. O avanço desigual das políticas de digitalização pode, por outro lado, reafirmar assimetrias entre variados territórios e levar à sobrevalorização de determinados sujeitos históricos, notadamente daqueles que tinham acesso às publicações impressas.
Em uma conjuntura em que os principais eixos geopolíticos e comerciais se desviam para outros domínios oceânicos, particularmente para o Pacífico, o Atlântico talvez persista como quadro de análise relevante sobretudo no âmbito da cultura. Suas águas e suas margens podem, literal e metaforicamente, ser vistas como cenários de processos de transculturação. Essa noção, forjada pelo polígrafo cubano Fernando Ortiz nos anos 1940, procurou confrontar categorias então em voga nas ciências sociais, particularmente a de aculturação, carregada de etnocentrismo em sua presunção implícita de que um dos polos seria o "autêntico". Ortiz emprega o conceito com sentidos distintos ao longo de sua obra, por vezes se desviando das teorizações explícitas nas análises empíricas. De qualquer maneira, esse autor trouxe para o centro de suas preocupações o caráter bilateral, instável, fluido, transformador, processual, contraditório das dinâmicas culturais10—e, com isso, abriu possibilidades profícuas para análises transfronteiriças.
Como sugeriu Edward Said,11 os territórios sobrepostos e as histórias entrelaçadas que se forjaram ao longo de sucessivos contatos entre distintas partes do mundo, e particularmente em decorrência da violência colonial (ou neocolonial), tornam fúteis quaisquer esforços para separar o "lá" e o "cá", o "nós" e os "outros". Se a dimensão da cultura é parte fundamental do estabelecimento e da legitimação de projetos imperiais, é também por meio dela que se constroem literaturas e outros repertórios de resistência.
Atlantique: o oceano figura, sem qualquer qualificação, no título do longa-metragem de estreia da diretora franco-senegalesa Mati Diop. Vencedor do Grande Prêmio do Festival de Cannes em 2019, o filme situa nas periferias de Dakar o romance brutalmente interrompido entre Ada, prometida em casamento para um herdeiro de uma família abastada que passa boa parte do ano na Itália, e Souleiman, trabalhador da construção civil. Muitas das tensões da trama se articulam em torno de uma torre em construção às margens do Atlântico, cuja forma algo futurista parece evocar uma caravela. Sem receberem seus salários há meses, os jovens pedreiros que erguiam o luxuoso empreendimento imobiliário se lançam às águas salgadas, em uma embarcação precária revirada pelas ondas muito antes de atingir a Espanha onde esperava atracar.
Diop constrói um Atlântico que é ponto de fuga, em todos os sentidos do termo: espaço de imensidão incomensurável em que a câmera se perde para compor imagens poéticas, esperança (invariavelmente frustrada) de uma vida materialmente mais digna, horizonte de contemplação e fonte de um sempre incompleto alívio para as personagens. As histórias de dor compartilhadas pelos—sobretudo pelas—que ficam e pelos que não conseguem chegar assombram o filme, levando-o a uma desconcertante resolução fantasmagórica, congruente com o luto inconcluso de quem não pode enterrar seus mortos.
Luanda, Lisboa, Paraíso: o título do segundo romance da escritora luso-angolana Djaimilia Pereira de Almeida compõe uma cartografia multifocal do espaço atlântico, um périplo que conecta a inicialmente ainda colonial cidade africana, a capital de um Império Português em decomposição e um bairro popular que apenas por uma cruel ironia pode ser associado aos motivos edênicos que lhe dão nome. Vencedor do prêmio Oceanos, dedicado à produção literária lusófona e que desde 2019 conta com apoio institucional da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), o livro acompanha o deslocamento de Cartola e Aquiles, pai e filho, até Lisboa. Nascido em Luanda em meio à guerra que culminaria com a independência de Angola, o menino tinha uma alegórica deformação no calcanhar, que deveria ser solucionada no início da adolescência, com cirurgias realizáveis somente na metrópole. Glória, esposa de Cartola e mãe de Aquiles, carregava as sequelas de um parto difícil, e se vê impossibilitada de os acompanhar. Imobilizada em seu próprio corpo, ela entrecorta a narrativa com mensagens crescentemente melancólicas dirigidas a um cada vez mais distante companheiro no outro lado do oceano.
O Atlântico é, aqui, uma cesura, barreira destinada a para sempre apartar uma família, em uma travessia fadada a permanecer incompleta. Ou, nos termos de uma resenha do livro publicada no Brasil, Luanda, Lisboa, Paraíso coloca em cena "espaços entrelaçados por uma temporalidade traumática que ecoa ainda hoje", expõe Cartola e Aquiles ao "desencontro entre o desejo de serem reconhecidos como cidadãos e a dura realidade vivida em uma pátria que os renega", e faz do regresso um "horizonte impossível".
Não é casual que tanto o filme de Mati Diop quanto o romance de Djaimilia Pereira de Almeida se construam em torno de histórias de migração, que tenham protagonistas negros e que encontrem parcelas significativas de sua força dramática nas (im)possibilidades de circulações atlânticas que fazem de uma nunca verdadeiramente alcançável Europa tanto tragédia quanto farsa. Ada, Souleiman, Cartola, Aquiles e Glória encarnam traços que Paul Gilroy12 atribuiu aos habitantes do Atlântico negro: vivendo simultaneamente dentro e fora da modernidade ocidental, denunciam as incongruências e contradições desse projeto, ao mesmo tempo em que forjam produções culturais, formas de luta política, memórias.
Trata-se, igualmente, de elaborações estéticas que nos recordam a importância de pensar as dinâmicas transfronteiriças como fenômenos que promovem não apenas conexões e trânsitos, mas também desacoplamentos e imobilidades—como sugeriu Jeremy Adelman, ao refletir criticamente sobre a história global, em um cenário marcado pelo fortalecimento de projetos nacionalistas de extrema direita que, paradoxalmente, articulam-se a partir de redes multicêntricas de comunicação. É preciso, assim, problematizar a imagem dos "fluxos", recorrente sobretudo nos estudos da globalização, que deixa subentender processos naturais, plenamente simétricos, homeostáticos. Essa metáfora liquefeita tende a tirar de foco ações concretas e circunstâncias materiais de que dependem as circulações, sujeitos e trabalhos que as constroem, linhas de força que as atravessam.
No capítulo adicional que redigiu para a segunda edição de seu Imperial Eyes,13 publicada em 2008, Mary Louise Pratt propôs que, no mundo contemporâneo, os grandes responsáveis pelos fenômenos de transculturação, os principais negociadores da sempre tensa experiência de estar na "zona de contato", os artífices e as personagens centrais de suas transfigurações narrativas, seriam os migrantes. Homens miseráveis, como Souleiman, Cartola e Aquiles; mulheres que suportam as dores da distância, como Ada e Glória. Sujeitos que nos recordam, simultaneamente, os altos custos humanos e o poder transformador das travessias atlânticas—ainda que os aviões widebody que hoje sobrevoam os oceanos sejam microcosmos móveis bastante distintos dos navios que Paul Gilroy tomou como unidades de fermentação cultural.
Pela própria aceleração que promove, o motor a jato, mais ainda que a máquina a vapor o havia feito em meados do século XIX, desloca os espaços de interação e impacta suas temporalidades. Há boas razões para duvidar de que os aeroportos desempenhem hoje papéis de transmutação intelectual e agitação política análogos aos de seus antecessores navais, embora eles certamente conservem muitos dos temores e dos mecanismos de controle que povoam as cidades portuárias. O filme de Diop e o romance de Almeida permitem pensar que o Atlântico segue, no convulsionado início do século XXI, provocando as sensações de "inquietante estranheza" que foram tão pulsantes na produção poética contemporânea à ascensão dos fascismos. O oceano continua a nos desafiar, assim, como "espaço sem lei", "fora do alcance da lei", "mundo sem solo estável", mas que não deixa de ser, como "espaço do terror e da soberania irrestrita, do estado de exceção", regido pelas normas e racionalizações de uma violência que não é aleatória.14
Mesmo que guardem certa proximidade com as redes transatlânticas de comunicação que o telégrafo começou a tecer há quase dois séculos, os ambientes virtuais cristalizam novos códigos culturais, com suas ilusões de sincronicidade e de abolição das fronteiras, suas sedutoras promessas de viagens a terras distantes sem que se precise sair do lugar. As divisões do território e as barreiras são, contudo, dramaticamente reafirmadas a todo momento—inclusive pela inacessibilidade do espaço aéreo a muitos daqueles que buscam alternativas em lugares que lhes negam a cidadania. Quando recebeu o prêmio Holberg, concedido pelo parlamento norueguês, Gilroy explicou suas reticências perante perspectivas pós-humanistas trazendo à tona a humanidade gritante de travessias inconclusas como a de Souleiman: "Estou acima de tudo interessado nas pessoas que estão na água, e como as tiramos de lá para um lugar seguro e protegido".
Desde suas etapas mais remotas, a globalização atirou pessoas às águas e fez com que, quando sobreviviam, terminassem muito longe de casa, frequentemente sem qualquer possibilidade de retorno, habitando precariamente as costas atlânticas, índicas, pacíficas, antárticas, mediterrâneas, bálticas...
Ao teorizar sobre um uso do prefixo "trans" bastante distinto dos que têm marcado as denúncias do nacionalismo metodológico, Susan Stryker sugeriu que solidariedades insuspeitas podem emergir das lutas empreendidas por indivíduos que, como ela, estilizam suas existências e seus corpos para desafiar a matriz dominante das relações entre sexo, gênero e desejo. Mesmo que aparentemente nada una sujeitos transgêneros e migrantes que se deslocam às e nas margens dos sistemas de vigilância de fronteiras, Stryker mostrou como esses grupos compartilham a agonística busca por documentos que lhes permitam existir legalmente e acessar direitos e serviços. Tais embates podem levar a questionamentos das próprias bases da cidadania e do exercício do poder, sobretudo na medida em que desnaturalizam, rearticulam e explicitam a arbitrariedade e o caráter excludente de expectativas normativas dirigidas a corpos, papéis sociais e subjetividades.15
As convergências entre os estudos transgênero, as análises de movimentos migratórios e as reflexões sobre questões raciais se aprofundam, portanto, em torno do interesse comum em analisar as formas corporificadas da diferença e as hierarquias que delas decorrem. Ao se valerem da concepção do gênero como performatividade proposta por Judith Butler, tanto Susan Stryker quanto Paul Gilroy abrem chaves teóricas profícuas para pensarmos sobre as mobilidades e as travessias. Delineiam-se, assim, concepções das identidades como inerentemente instáveis, sempre inacabadas e impuras, fazendo-se e refazendo-se constantemente, a partir de mesclas variadas e com "fontes" e "origens" nunca plenamente reconhecíveis.
Em suas possibilidades teóricas e políticas mais radicais, os estudos transgênero promovem operações de resgate de conhecimentos subjugados, no duplo sentido que Michel Foucault atribuiu a esse tipo de procedimento: o de escavar, com as ferramentas da erudição histórica, elementos que foram soterrados com a passagem do tempo; o de recuperar formas de saber que foram consideradas insuficientemente teóricas, conceituais ou sofisticadas. Ainda segundo Stryker, esse duplo esforço permitiria capturar, para uso no presente, vestígios a partir dos quais se narrariam novas histórias—e é significativo que ela atribua à história transgênero um potencial de crítica a determinados discursos exaltadores da globalização. A provocação a "contar além de dois" no que diz respeito às formas de vivenciar a diferença sexual tensionaria as projeções de um mundo crescente e inexoravelmente integrado, fadado a se tornar um, unificado, "plano". Os estudos transgênero convidariam, nesse sentido, a questionar os binarismos que pautaram as ideologias eurocêntricas hegemônicas da modernidade e a reimaginar as condições da vida política.
Perspectivas como as de Stryker e Gilroy podem ser aproximadas de histórias culturais transatlânticas que colocam em foco processos pouco visitados, como os intercâmbios entre África e América Latina, ou o impacto de produções caribenhas, subsaarianas ou sul-americanas na Europa ou nos Estados Unidos—ainda que visões dominantes nos façam duvidar da relevância ou mesmo da existência de tais trocas. Abrem-se, dessa forma, possibilidades para levar a sério os atravessamentos tanto nos processos históricos quanto nas perspectivas e nas categorias de análise. Esses usos teoricamente orientados do prefixo trans propiciam diálogos com a proposta de Edward Baring para que deixemos de conceber o contexto como um lugar, por definição fixo e estático, para o pensar como um arquivo. Interpretado nesta chave, o contexto não estaria simplesmente dado, mas seria um conjunto de recursos, mais ou menos ativo a depender das circunstâncias (porém nunca completamente perdido). Cada intérprete poderia mobilizar contextos variados de acordo com seus interesses e demais condicionantes de sua prática discursiva, em processos interespaciais e intertemporais de comunicação.16
Maria Beatriz Nascimento fez do Atlântico um arquivo bastante peculiar, chegando a empregar o oceano como um adjetivo para definir a si própria. Nascida em Sergipe em 1942, ela percorreu ainda na primeira infância a costa brasileira, rumo a um Rio de Janeiro que atraía cada vez mais famílias numerosas e com poucos recursos como a sua. Nascimento se formou em História em 1971 e logo começou a atuar em grupos de estudos e de conscientização sobre questões raciais. Mais tarde, em meio a suas investigações sobre quilombos, a historiadora se deslocou até Angola e Senegal. Suas travessias oceânicas foram evocadas em Ôrí, documentário sobre movimentos negros e religiões de matriz africana lançado em 1989, com direção de Raquel Gerber, trilha sonora do percussionista Naná Vasconcelos e textos de Nascimento. A experiência de narrar uma produção audiovisual alimentou as reflexões da historiadora sobre a "transatlanticidade", conceito a respeito do qual deixou escritos incompletos e fragmentários e que se insinua em alguns de seus poemas. Em Ôri, ela afirmou: "O que é a civilização africana e americana? É um grande transatlântico. Ela não é a civilização atlântica, ela é transatlântica".
Com suas possibilidades de inserção pública limitadas pelo fato de ser mulher e negra, bem como por ter ousado atuar como intelectual e militante em plena ditadura militar, Beatriz Nascimento foi assassinada em 1995 pelo companheiro de uma amiga que ela tentava defender de agressões domésticas. Sua trajetória nos recorda que os modos de habitar as margens do Atlântico e de atravessar a extensão oceânica são muitos e não podem ser dissociados de experiências de violência, nem de instâncias de criação cultural.
Bethânia Gomes, filha de Nascimento com o arquiteto e artista caboverdiano Djosa Gomes, construiu um percurso talvez ainda mais transatlântico que o de sua mãe: foi primeira bailarina e hoje atua como instrutora do Harlem Dance Theatre, em Nova York. A biblioteca do Arquivo Nacional, instituição onde a historiadora atuou como estagiária e que hoje conserva seu acervo pessoal, foi batizada em homenagem a ela após uma votação online realizada em 2016. Em 2020, uma reflexão de Beatriz Nascimento sobre como a história do Brasil "foi escrita por mãos brancas", registrada no documentário O negro da Senzala ao Soul (TV Cultura de São Paulo, 1977), foi apropriada pelo compositor pernambucano Zé Manoel na conclusão de uma peça instrumental de piano. No ano seguinte, um trecho da mesma fala seria sampleado em "A caminho de Palmares", faixa de "Rocinha", trabalho do produtor carioca Mbé descrito como "uma pesquisa por fósseis tecnológicos [...] utilizados como ferramenta de comunicação, com o objetivo de construir um presente-futuro". Também em 2021, a historiadora foi representada em Corte seco, do artista Paulo Nazareth, série de esculturas que incide no debate sobre quais deveriam ser as figuras consideradas dignas de glorificação no espaço público. A recente recuperação dos trabalhos de Nascimento nos ambientes universitários, em que jovens feministas negras têm assumido protagonismo, mostra como as travessias que nos antecederam se ressignificam com as circunstâncias de cada sucessivo presente.
Ainda há, enfim, muito a dizer sobre a dialética que a historiadora brasileira localizou no oceano, fazendo dele um espaço tanto de conquista e de sujeição quanto de proliferação de contraculturas da modernidade. É fundamentalmente pelo Atlântico (ainda que um Atlântico desmaterializado em bits e pixels) que circulam hoje protestos clamando pela derrubada de monumentos às navegações e de estátuas de mercadores de pessoas escravizadas. As muitas e tão frequentemente dolorosas histórias que aportam (e se veem impossibilitadas de aportar) em suas margens seguem levando a novos deslocamentos, voluntários e forçados, literais e metafóricos, construtivos e destrutivos. Nem sempre essas histórias podem ser adequadamente representadas no âmbito de narrativas globalizantes—mesmo que os múltiplos Atlânticos que coexistiram ou se sucederam no tempo jamais tenham sido ilhas. Eles tampouco foram "mares internos" de uma unidade harmônica, unívoca, atemporal.
Narração em off de Beatriz Nascimento no documentário Ôrí, 1989.
Citado em Bernard Baylin, Atlantic History. Concept and Contours (Cambridge, Londres: Harvard University Press, 2005), 12.
David Armitage, "Three concepts of Atlantic History," in The British Atlantic World, ed. David Armitage, Michael Braddick (Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2002), 11-27.
Sebastian Conrad, What is global history? (Princeton: Princeton University Press, 2016), 223-235.
David Armitage, Alison Bashford, Sujit Sivasundaram, eds., Oceanic Histories (Cambridge: Cambridge University Press, 2018). Baseio-me, particularmente, na introdução dos organizadores (1-27) e no capítulo de Armitage sobre o Atlântico (85-110), que revisa e expande as três concepções propostas em 2002.
Sergio Serulnikov, "El secreto del mundo: sobre historias globales y locales en América Latina," História da Historiografia 13, no. 32 (2020): 147-184.
A terceira concepção seria "cisatlântica", voltada ao estudo de histórias nacionais, regionais ou locais a partir de seus vínculos com o mundo atlântico. Armitage, "Three concepts."
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Armitage, Bashford, Sivasundaram, Oceanic Histories, 24.
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