Ruy Guerra, the ‘travelling filmmaker’
Ruy Guerra (RG) was born on 22/08/1931 in Lourenço Marques (now Maputo), capital of the Portuguese...
Raros cineastas brasileiros assumiram tão radicalmente e levaram tão longe uma vocação transatlântica do seu projeto estético quanto Glauber Rocha (1939-1981). No seu caso em particular, tal vocação se exprimiu em pelo menos três planos, que guardam estreita relação em seu trabalho mas que, para fins de análise, podemos examinar em sucessão: 1) o plano biográfico-factual da sua experiência de artista nômade trabalhando em vários países do espaço atlântico; 2) o plano do universo dramatúrgico e narrativo de seus filmes, que promove de modo crescente a articulação de elementos atlânticos; 3) o plano dos esquemas iconográficos de seu cinema, que mobiliza de modo muito sugestivo a imagem do próprio oceano Atlântico, visto ora do Brasil ora do outro lado (África, Europa) para circunscrever um imaginário propriamente transatlântico.
Ao longo de seu itinerário de cineasta, interrompido pela morte precoce que o colheu muito cedo, aos 42 anos, Glauber passou vários anos no espaço atlântico. Nele, não só circulou intensamente, como também chegou a residir e a fazer filmes em quatro dos cinco continentes que o compõem: na América do Sul de seu país natal, na África, na Europa e na América Central (na Itália, na França, em Cuba e em Portugal).
No Brasil, filmou na Bahia (Pátio, 1958, Barravento, 1961-2, Deus e o Diabo na Terra do Sol, 1963-4, O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, 1968, Jorjamado no cinema, 1978, além de partes de Idade da Terra, 1978-80), no Rio de Janeiro (Terra em Transe, 1966-7, Câncer, 1968, Di, 1976-7, programa Abertura, 1979, Idade da Terra, 1978-80), no Amazonas (Amazonas, Amazonas, 1965-6), no Maranhão (Maranhão 66, 1966) e em Brasília (partes de Idade da Terra). Na África, filmou no Congo-Brazzaville (Der leone have sept cabeças, 1969-70). Na Europa, filmou na Espanha (Cabezas Cortadas, 1970) e na Itália (Claro, 1975), além de participar de um filme coletivo em Portugal (As armas e o povo, 1974-5). Na América Central, o fez em Cuba, com Marcos Medeiros, História do Brasil (1972-4), além de ter finalizado ali o som de Câncer (1972).
Esta breve lista não inclui projetos e experiências que Glauber iniciou em outros países da América Latina ou da África, mas que não chegou a concluir, deixando-os em diferentes estágios de produção. Entre outros exemplos, lembremos as filmagens iniciadas em Santiago do Chile, em maio de 1971 (sob o governo de Allende), de um documentário sobre os exilados brasileiros, com produção de Renzo Rossellini e da TV Nacional do Chile, com Norma Bengell e Zózimo Bulbul no elenco, e título provisório de Definição ou Estrela do Sol, antes que o material se perdesse; ou então as filmagens em super-8, de agosto de 1971, de uma viagem ao Marrocos com Letícia Moreira de Souza e Flora Bildner, mencionadas em algumas publicações sob o título Letícia e Mossa no Marrocos, mas nunca montadas por Glauber; ou ainda o projeto de Idade da Terra, submetido em 1974-5 ao governo mexicano e abortado por este último no estágio do roteiro, antes de ser viabilizado anos mais tarde no Brasil.1
Estas andanças, estadias e trabalhos dão corpo a uma experiência autenticamente transatlântica, comparável àquelas de alguns outros cineastas latino-americanos decisivos em sua geração, e igualmente cosmopolitas, como o chileno Raul Ruiz, os argentinos Fernando Birri e Fernando Solanas ou o moçambicano radicado no Brasil Ruy Guerra. Possibilitada pelas viagens a festivais internacionais (de 1962 em diante), por convites de produtores europeus (em 1969 e 1970), pelo exílio voluntário (de 1971 a 1976) e pela nova saída do Brasil no fim da vida (de meados de 1980 até as vésperas de sua morte, em agosto de 1981), tal experiência foi precedida por uma viva adesão à revolução cubana e atravessada por um diálogo constante com intelectuais e líderes políticos do espaço atlântico, de Frantz Fanon a Che Guevara, de Alberto Moravia e Alejo Carpentier a Gabriel Garcia Marquez, de Darcy Ribeiro ao próprio João Goulart, de Alfredo Guevara a Régis Debray.
O segundo plano em que podemos examinar a vocação transatlântica do trabalho de Glauber ultrapassa suas circunstâncias biográficas e concerne mais propriamente ao seu programa geral de cinema. Profundamente ancorado na experiência histórica brasileira, que sempre foi seu foco principal de atenção, tal programa se expandiu, porém paulatinamente, na direção do mundo atlântico. Atenta aos vínculos estreitos que articularam as respectivas formações históricas dos continentes que a compõem (Américas, Europa e África), a dramaturgia de vários dos seus filmes, assim como seu próprio estilo, integra e chega a misturar elementos, referências e personagens destes continentes. O resultado é uma obra singular que caminhou para um internacionalismo de tônica transatlântica, enriquecido por um verdadeiro diálogo, denso mas soberano, com o trabalho de cineastas exponenciais de países e épocas variados: Luís Buñuel, John Ford, Sergei Eisenstein, Jean Rouch, Pier Paolo Pasolini, Jean-Luc Godard, Jean-Marie Straub & Danièle Huillet, Ousmane Sembene, Carmelo Bene, Miklos Jancso e Robert Kramer, para não falar dos latino-americanos Fernando Birri, Fernando Solanas e Tomas Gutierrez Alea.
Nas posições assumidas por Glauber, tal internacionalismo apareceu sob as perspectivas terceiro-mundista e tricontinental. A pertir de meados da década de 1960, o cineasta foi adotando cada vez mais claramente uma perspectiva terceiro-mundista, já presente em sua intervenção "Cinema Novo e cinema mondiale", escrita em janeiro de 1965 (entre Nova York, Milão e Rio de Janeiro) e lida em Gênova, no 5o Congresso do Instituto Columbianum, intitulado "Terceiro mundo e comunidade mundial". Publicado a posteriori em italiano numa versão concisa,2 o texto interpelava o interlocutor europeu em nome do cinema latino-americano e se aproximava de Frantz Fanon ao denunciar o neo-colonialismo. Na sua versão brasileira, mais bem acabada e publicada com o título "Uma estética da fome",3 Glauber recorre ao vocabulário do Terceiro mundo na introdução e, em sua argumentação, parece reforçar o tom anti-colonialista já presente na versão lida em janeiro. Dois anos mais tarde, seu anticolonialismo ganharia uma formulação ainda mais veemente no artigo "Tricontinental", que trava um diálogo direto com o pensamento de Che Guevara e com a Conferência Tricontinental, ocorrida em Havana em 1966. Numa tradução francesa de Sylvie Pierre, sob o título "Cela s'appelle l'aurore", o artigo é publicado nos Cahiers du cinéma, em 1967, bem antes de ser compilado em a Revolução do Cinema Novo.4 Nele, Glauber invoca a América Latina, a África e a Ásia na luta contra o cinema colonialista, cita Régis Debray, comenta a situação dos cinemas mexicano, argentino e cubano, defende o Cinema Novo brasileiro e refere-se a Godard como um autêntico cineasta tricontinental. Desenhada nestes textos, a luta anticolonialista configura-se esteticamente de modo pleno em Der Leone have sept cabeças, seu filme tricontinental por excelência, mas perdura ao longo dos anos 1970, informa textos e filmes de Glauber do período (como o roteiro La Nascita degli Dei, escrito em 1974, e o longa italiano Claro) e ecoa no modo que passou a ver restrospectivamente sua obra no início dos anos 1980.
Revendo de perto o trajeto resumido acima e confrontando-o aos filmes que o cineasta logrou realizar, podemos sem risco de imprecisão apontar em suas perspectivas internacionalistas e anticolonialistas um caráter eminentemente transatlântico. Com efeito, no exercício de curadoria da própria obra que, poucos meses antes de morrer, propôs à Cinemateca Portuguesa, em 1981, por ocasião de sua última grande retrospectiva cinematográfica ainda em vida, Glauber distinguiu quatro vertentes principais em sua filmografia, representadas por meio da grafia idiossincrática que adotou em seus textos dos últimos anos: "Áfryka" (englobando os filmes Barravento e Der Leone have sept cabeças), "Brazyl Arkayko" (englobando Deus e o Diabo na Terra do Sol e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro), "Amérika Ybéryka" (englobando Terra em Transe e Cabeças Cortadas) e "Brazyl Unyverzal" (englobando Di Cavalcanti e A Idade da Terra). Ainda que não cubra a totalidade de seus filmes e deixe de fora três longas, dentre os quais justamente o cubano História do Brasil e o italiano Claro, esta proposta de autocuradoria articula diretamente, em duas das quatro vertentes, o Brasil a outros pólos do espaço atlântico, a África num caso, e a América Ibérica (hispânica sobretudo) no outro. Além disso, o cineasta explicita numa terceira ("Brazyl Unyverzal") a inscrição do Brasil num contexto civilizatório mais amplo, que tende a recobrir o espaço atlântico, embora vá além dele em alguns aspectos.
Levando a sério esta intuição curatorial de Glauber sobre a própria obra e deixando de lado seus filmes cujo universo é mais estritamente brasileiro (O Pátio, Deus e o Diabo, Maranhão, Câncer, O Dragão, Jorjamado, Abertura), podemos explorar estas três vertentes no conjunto da sua filmografia, alargando porém, por nossa conta, o elenco de filmes subsumidos pelo cineasta a cada uma delas.5
Ao batizar de "África" o par de filmes Barravento e Der Leone, separados por quase dez anos de intervalo, Glauber pretendia explicitar o vínculo estreito que os unia sob o signo da atenção, presente em ambos, às relações entre o Brasil e a África. Dado muito significativo, Barravento é o primeiro longa brasileiro, e Der Leone, o primeiro longa internacional de Glauber. Ora, não é trivial que, aos 22 anos, o cineasta comece a fazer longas no Brasil com um filme que aborda a herança cultural africana na Bahia e, uma década mais tarde, escolha justamente a África para estrear em um longa fora do país.
Em Barravento (cuja realização Glauber assumiu no meio das filmagens), a herança africana aparece como background cultural do drama dos pescadores negros do vilarejo de Buraquinho, às voltas com a exploração do seu trabalho e imersos num sistema de crenças religiosas de matriz afro-brasileira, o candomblé. O filme documenta as crenças daquela comunidade com atenção e empatia ao mostrar vários ritos religiosos num terreiro de candomblé, embora tenda a criticá-las como fonte de alienação por meio dos letreiros iniciais e do protagonista Firmino (Antonio Pitanga). Num dado momento, Firmino invoca a África numa discussão confusa, para contrapor-lhe ao Brasil e rechaçar a escravidão: "Eu, pescador? Isso é vida de índio! Isto aqui não é África, é Brasil! [...] Para mim, Princesa Isabel é ilusão..." (32' da versão em DVD da Versátil). Pouco depois, Aruan (outro personagem central) exorta seus companheiros a enfrentar o dono da rede, que os explora, apontando para o oceano Atlântico em direção à África: "Nós temos que reagir!... Viemos de lá escravos, mas escravidão já acabou" (34'50"). Seja como for, como já demonstrou Ismail Xavier no seu notável estudo Sertão Mar: Glauber Rocha e a estética da fome (2007 [1983], cap. 1, passim), a própria organização narrativa do filme já parece endossar a crença religiosa dos pescadores brasileiros—apesar das críticas que também lhes endereça—de modo que parece assumir parcialmente seu sistema de valores religiosos.
Se, em seu rompante de reação contra a exploração de sua comunidade baiana, Aruan apontava para a África, Der leone atravessa o Atlântico para instalar sua alegoria política anticolonialista, numa espécie de contracampo tardio do filme de 1961. Corroteirizado pelo italiano Gianni Amico, rodado no Congo-Brazzaville em outubro-novembro de 1969, com produção franco-italiana, montado na Itália, no início de 1970, Der leone teve gestação rápida, o que não deve, porém, esconder o horizonte estratégico do projeto, o primeiro de Rocha a resultar num filme autenticamente tricontinental. Inspirado em Che Guevara e Franz Fanon, dedicado a Paulo Emilio Salles Gomes, realizado depois de uma visita fraterna à casa de Ousmane Sembene, em Dakar, dialogando com Godard, Brecht e Eisenstein e respondendo ao mesmo tempo aos filmes africanos de Jean Rouch, Der leone elege a África como palco simbólico de uma ampla frente cinematográfica anticolonialista, defendida pelo cineasta em textos e declarações da época.
Sua trama se passa em um país africano indefinido, no qual vemos o povo negro, adivinhamos a colonização francesa (pelo predomínio desta língua) e observamos paisagens de savana, rios, montanhas, vilarejos e alguns ambientes urbanos. Ali, um governador de traços germânicos e seus aliados externos e internos (um agente americano, um comerciante português, um político negro demagogo) oprimem a população local, em conluio com uma loura chamada Marlene (espécie de alegoria das seduções do colonialismo) e aos olhos de um padre branco extremamente exaltado. Lideradas por um negro chamado Zumbi e um guerrilheiro branco com ares de Che Guevara, as manifestações de resistência dos autóctones ao jugo colonial culminam na captura do americano e do português, que acabam cercados pelo povo, e na crucificação de Marlene pelo padre, antes do confronto final que se anuncia entre o governador e o exército de libertação, subindo armado as montanhas ao som de um canto de guerra. Este fim desenha uma iminente revolução popular anticolonial. Deliberadamente esquemática, a intriga mobiliza personagens que encarnam agentes históricos da colonização africana sem espessura psicológica. Suas sequências quase autônomas alternam-se com cenas de dança tradicional dos autóctones, interrompendo o fio narrativo e afirmando a força das culturas africanas. Fincado na África, o filme também olha para o Brasil, por meio dos personagens revolucionários Samba e Zumbi, que remetem à tradição musical do samba e à figura histórica do escravo brasileiro Zumbi dos Palmares (1655-1695), de modo a sugerir uma continuidade histórica e uma comunidade de horizonte entre as lutas anticolonialistas dos povos do Brasil (desde o período colonial) e do Congo (no século XX). Tanto aqui como lá, uma mesma luta, a um só tempo cultural e política, contra o colonizador europeu, reivindicada pelo cineasta em termos trans-históricos.
Simétricos em sua troca de olhares entre o Brasil e a África, estes dois filmes não esgotam porém a dimensão africana da obra de Glauber. Não bastasse sua atenção permanente ao elemento negro da cultura brasileira (o que nos remete forçosamente à África), outros de seus filmes trazem também vários traços africanos ou afro-atlânticos, que convém assinalar. A começar por Terra em Transe, ritmado pelos cantos rituais Aluê, do candomblé, ouvidos desde a primeira sequência, ilustrando imagens do oceano Atlântico visto do alto, até que a câmera nos mostre o início do continente, uma praia e as montanhas de um país em cujo tumulto mergulharemos em seguida. O país será apresentado no primeiro letreiro depois dos créditos como "Eldorado. País interior. Atlântico", e as imagens do oceano Atlântico banhando as praias do país reaparecerão algumas vezes, ritmando o seu relato, assim como os tais cantos de matriz afro-brasileira, que voltarão em mais cinco ou seis momentos do filme. Terra em Transe revisita, no calor da hora, o período que desembocou no golpe civil-militar de 1964 no Brasil, mas estende as ressonâncias do seu universo simbólico às matrizes africanas da nossa formação cultural, no recurso constante ao canto Aluê e na metáfora religiosa do transe, usada como princípio de interpretação do mundo político, ainda que não vejamos qualquer imagem de um rito afro-brasileiro ao longo do filme. A irrupção dos cantos de candomblé e a metáfora unificadora do transe parecem sugerir que a nossa compreensão da história do Brasil não poderia prescindir dos elementos afro-brasileiros, tomados aqui não tanto como objeto, mas como instrumentos epistêmicos.
Cabezas cortadas traz, por sua vez, uma sequência com músicos negros tocando uma música afro-caribenha (cubana?) numa espécie de estábulo do castelo, ao som da qual Diaz II dança com uma mulher negra, até que um homem branco relata para a câmera o que Francisco de Orellana (1511-1546) encontrou na América—natureza exuberante e mulheres semelhantes às amazonas. A sequência imediatamente posterior, fortemente onírica, mostra Diaz numa praia, observando a chegada de dois homens numa canoa, metralhadoras à mão (guerrilheiros latino-americanos?), a cujos gestos ele reage colocando um relógio grande e sem ponteiros na frente do seu rosto.
Ambientado na Roma de 1975, falado sobretudo em italiano (mas também em francês, inglês e português), reunindo personagens de vários países (Glauber Rocha e Juliet Berto à frente, interpretando seus próprios papéis) e meditando sobre o capitalismo mundial na época, a partir de sua analogia com a crise do Império Romano, Claro traz também dois personagens negros: 1) uma mulher chamada Yvonne, provavelmente afro-americana, que ouve de um soldado americano suas agruras no Vietnã, mas o acusa de ter matado o seu povo, e sobretudo 2) um homem chamado Ganga, que nos remete inevitavelmente à figura histórica de Ganga Zumba (1630-1678), primeiro líder do Quilombo dos Palmares. Num diálogo com Juliet Berto, com música brasileira ao fundo, Ganga diz em italiano que não pode ajudá-la, que está cansado, que viajou, que esteve na África, no Brasil, no Congo, na América (42'). Ela lhe responde, em francês, que ele se tornou o guardião do inferno. E pouco depois acrescenta: "Você levou um monte de chibatada, curvou a espinha diante da besta. Foi derrotado. Mataram os teus irmãos. Violentaram tuas irmãs. Os teus velhos foram liquidados, cortaram cana sob o sol em todos os lugares. Você estava contente de cantar para a besta. A besta era bela, vestida com o ouro que você cavou com as tuas mãos, com a tua pele, com os teus ossos, com a tua dor, Ganga!".
Centrados em artistas brasileiros, os documentários sobre Di Cavalcanti e Jorge Amado acentuam, de todo modo, as relações profundas que as obras de ambos travaram com a cultura popular negra, de matriz afro-brasileira. Di Cavalcanti privilegia o motivo das mulatas pintadas pelo artista, cujo enterro é ilustrado pela canção de Jorge Ben, "Ponta de lança africano", pouco antes de Glauber gritar em over "um Brasil lusitano, africano, indígena, moçarábico!". Jorjamado traz cenas de ritos afro-brasileiros (extraídas da adaptacão de Tenda dos Milagres, por Nelson Pereira dos Santos, em 1977), pinturas de negros na casa do escritor e uma entrevista com o ator negro Antonio Pitanga. A Idade da Terra, enfim, faz de um Cristo negro (interpretado pelo mesmo Antonio Pitanga) um dos protagonistas de seu teatro político-antropológico.
Batizando de "Amérika Ybérika" o par formado por Terra em Transe e Cabezas cortadas, Glauber explicita a retomada do primeiro pelo segundo, bem como o gesto comum a ambos de expansão do universo histórico concernido, do brasileiro para o latino-americano em Terra em Transe, do latino-americano para o mundo ibérico em Cabezas Cortadas. É como se um movimento de progressão se escalonasse em dois tempos, enraizando cada vez mais claramente a formação histórica do Brasil num contexto de irradiação da civilização ibérica, complementando assim a atenção à herança africana, já abordada na vertente "Áfryka".
Em todo caso, o topos ibérico aparece também em outros filmes de Glauber, pelo menos desde o curta Amazonas, Amazonas (1965), aberto por uma locução masculina em over, empostada, declamando em português, sobre paisagens aéreas do rio Amazonas, um texto do conquistador espanhol Francisco de Orellana (que ecoaria em cena já citada de Cabezas Cortadas) sobre sua viagem de 1542 a esta região:
"O Negro encontra o Solimões. Duas águas desembocam numa só. Grandes águas, grande rio que descobri a 22 de junho de 1542 em missão do reino espanhol. Eu, Francisco de Orellana, enfrentei o desconhecido, dei combate a índios de longos cabelos, que lembravam mulheres guerreiras doutras lendas. Vencidos os perigos, batizei a conquista: Amazonas, Amazonas" (40"-1'18").
Depois desta abertura ao som de Villa-Lobos, o filme aborda o presente da região banhada pelo rio, com sua paisagem humana, sua atividade econômica, sua história, seu subdesenvolvimento. Num novo comentário mais adiante, o retrospecto histórico remete à atuação dos europeus e dos caudilhos naquela região, denominada Eldorado:
"A ambição que gerou a conquista, a conquista que gerou o extrativismo onde os caudilhos fixaram suas leis homicidas, o extrativismo que gerou as súbitas fortunas dos aventureiros dos quatro cantos. Era o Eldorado, o esplendor de uma selvagem nobreza dos trópicos, cujos cenários e costumes foram importados de Inglaterra, França e Itália... A borracha do Amazonas dominou o mercado mundial no encontro do século XIX com o século XX. Os ingleses, porém, transportando mudas da seringa para jardins botânicos de Londres, recriaram o produto na Ásia, começaram a concorrência naval. Guerra dos preços, do consumo, consequente queda da exploração. Queda dos reinos, desespero das ambições, orgulho ofendido, falências. A falta de planejamento encerrava mais um ciclo econômico do Brasil passado" (7'03"-8'12").
A atenção aos efeitos da colonização (ibérica) e do neocolonialismo, bem como a invocação de Eldorado reaparecem em Terra em Transe, que se passa num país imaginário da América do Sul, denominado justamente "Eldorado". Falado em português e ambientado no Rio de Janeiro, Terra em Transe recapitula, no calor da hora, o período que desembocou no golpe civil-militar de 1964 no Brasil, mas estende sua alegoria política ao espaço da América Latina (à qual remetem suas referências a nomes e personagens hispano-americanos como Eldorado, Porfírio Diaz, Júlio Fuentes, Fernandez, além das ditaduras de Villaflores, Pancho Morales e "El Redentor"). O filme remete também ao descobrimento do Brasil, ao revisitar (9'54"-11') a cena da Primeira Missa (em que o colonizador português de outrora contracena com seus avatares no presente—um padre e um político conservador). Remete igualmente à violência do Conquistador encarnada no presente por Porfírio Diaz (político autoritário que toma emprestado o nome do ditador mexicano José de la Cruz Porfírio Diaz Mori, 1830-1915, e cujo tratamento lhe confere ressonâncias da monarquia colonial). Há também similitudes entre a formação histórica brasileira e latino-americana (pela mescla de personagens e referências históricas ao Brasil e a países hispano-americanos na trama do filme, que expande assim sua representação do golpe de 1964 no Brasil para o universo mais amplo da história latino-americana) e a dinâmica da exploração neo-colonial encarnada pela multinacional Explint (O Dragão reiterava a alusão a tal dinâmica, ao trazer em seu desfecho uma logo da Shell indicando a lógica internacional que regia aquele mundo mostrado ali no vilarejo baiano de Milagres).
Esta expansão confirma-se e prolonga-se em Cabezas Cortadas. Retomando vários elementos de Terra em Transe, mas deslocando seu referente histórico para o mundo hispano-americano, Cabezas Cortadas é ambientado nas montanhas da Catalunha, na Espanha, onde um ditador latino-americano exilado, Diaz II, vive seu ocaso e acaba sendo assassinado. Falado em espanhol, interpretado basicamente por atores espanhóis (Francisco Rabal à frente do elenco), comentado por canções hispânicas, o filme refere-se ainda ao Eldorado, a Alecrim e à dinastia dos Diaz (remetendo assim a Terra em Transe), mas seu universo situa-se basicamente no mundo hispânico e hispano-americano—ao qual também nos remetia o personagem do guerrilheiro em Der Leone, personagem este claramente inspirado em guerrilheiros latino-americanos, para não dizer em Che Guevara essencialmente, cuja vida e pensamento marcaram fortemente o cinema de Glauber. Em Cabezas Cortadas, a violência da colonização espanhola dna América é diretamente apresentada em algumas longas sequências no miolo do filme. Num primeiro bloco (16'-27'), de caráter atemporal, vemos Diaz II arrancar uma pepita de ouro de um índio andino com a ajuda de cavaleiros mouros que parecem oriundos de séculos anteriores, como se saídos das Cruzadas, antes que seu grupo fosse confrontado por resistentes armados com fuzis, desta vez saídos do século XX e remetendo possivelmente à Guerra Civil espanhola. Após este bloco narrativo, há uma sequência mais onírica (27'-39') que nos mostra o ditador literalmente chafurdando na lama, enquanto Glauber conta em over a violenta história de Eldorado, da descoberta espanhola no século XVI até meados do século XX. Uma moça sedutora vem se deitar com ele na lama, antes de brandir em coreografia sensual uma espada contra guerrilheiros trazidos até ela e amarrados pelo pescoço.
Preparado e feito em Cuba a partir de pesquisa bibliográfica financiada pelo governo cubano e de materiais audiovisuais disponibilizados pelos arquivos do ICAIC, História do Brasil traça, nos 158' da sua última versão (que Glauber não considerava definitiva, e que constitui um de seus filmes menos significativos), um relato de quase quinhentos anos da história brasileira, desde a expansão ultramarina dos países ibéricos até a atualidade brasileira dos anos 1970. O filme traz como primeira imagem um mapa da América do Sul, emoldurada a oeste pelo oceano Pacífico, ao norte pelo "mar de las Antillas" e a leste pelo oceano Atlântico, que ganha na composição da imagem ligeiro destaque em relação aos demais, confirmado na zoom-in que fecha o quadro após alguns segundos. Seu comentário verbal over se inicia com a referência à expansão marítima do capitalismo mercantil ibérico e às rotas de navegação espanhola e portuguesa, até chegar, logo antes do segundo minuto de filme, ao descobrimento da América pelos espanhóis, e do Brasil pelos portugueses. As referências aos descobrimentos são retomadas na cena de Terra em Transe na qual a Primeira Missa no Brasil é estilizada, o que confirma a posteriori seu caráter ibero-americano e reata com a iconografia transatlântica da obra-prima de 1967, antes que várias referências ao universo ibero-americano aparecessem ao longo do filme.
Nos dois filmes europeus posteriores de Glauber, as referências ao Brasil e à América Latina reaparecem, afirmando os laços entre a Europa e as Américas. Em sua participação no documentário português coletivo As armas e o povo (1974-1975), Glauber mergulha em manifestações lusitanas do Primeiro de Maio, circulando por bairros da periferia de Lisboa e interpelando pobres, negros e imigrantes sobre a Revolução dos Cravos, somente uma semana após a sua eclosão. Em suas entrevistas, dentre outras perguntas, o cineasta indaga sobre a independência das colônias africanas e colhe do escritor Ferreira de Castro uma saudação calorosa "aos amigos e camaradas brasileiros, aos quais estou profundamente ligado pelo coração e pelo espírito" (32'). Em Claro, Glauber forma, com sua companheira da época, Juliet Berto, uma dupla de estrangeiros que perambula por Roma, ele na condição de exilado brasileiro (simulando uma língua ameríndia em sua visita gritada ao Forum Romano no início do filme, ou emocionando-se em casa com canções do seu país natal), ela como francesa, vestida com um poncho andino que nos remete ao universo latino-americano.6
Batizado de "Brazyl Unyverzal", o par formado por Di e Idade da Terra promove e examina a circulação de obras artísticas, de sistemas de pensamento e de crenças religiosas no espaço atlântico (e para além dele). No caso de Di, a intenção é reivindicar uma concepção festiva da morte que Glauber toma emprestada dos mexicanos para abordar de modo afirmativo e celebratório o rito funerário cristão do velório e do enterro de seu amigo, Di Cavalcanti, no Rio de Janeiro do final dos anos 1970. O filme pretende também salientar a sua interlocução com artistas e intelectuais internacionais, como Rossellini, Sartre e os surrealistas franceses, além de analisar o sentido de sua obra pictórica no contexto mais amplo da pintura mundial (traçando uma genealogia da obra do brasileiro que iria de Giotto, Cimabue, Michelangelo e Tiziano a Gauguin, Picasso, Rivera e Siqueiros). No caso de Idade da Terra, Glauber pretende postular um horizonte de renovação da civilização ocidental por intermédio de um cristianismo sincrético do Terceiro Mundo, que se traduz na criação não de um, mas de quatro personagens retratando Cristo: um negro, um índio e dois brancos—dos quais um militar e outro guerrilheiro. Ao longo do filme, estes quatro Cristos jamais se encontram, mas interagem alternadamente com os outros personagens, seja um americano chamado John Brahms, agente caricato do imperialismo que chega ao Brasil e circula pelo país distribuindo bravatas, impropérios e violências simbólicas, sejam mulheres brasileiras de feições e perfis variados, sejam representantes comuns do povo, que vemos em ritos e procissões religiosos, situações de trabalho, festas coletivas e aglomerações urbanas.
Tanto em um filme como no outro, o cineasta aposta no poder das trocas culturais para vislumbrar a fonte de energia capaz de renovar uma civilização ocidental que lhe parece decadente. Num horizonte como este, a cultura e a história do Brasil inscrevem-se em um universo mais amplo do destino mundial, para além do que podíamos perceber em Amazonas Amazonas, Terra em Transe e O Dragão, que remetiam ao contexto colonial ou neo-colonial a interpretação da geografia ou da história do Brasil atual. Esta inserção está no coração da dramaturgia de Idade da Terra, e é ali explicitamente reinvindicada pelo cineasta ao final do seu último e longo monólogo over, apelidado por Ismail Xavier7 de Sermão do Planalto:
"O Brasil é um país grande. América Latina, África, não se pode pensar num só país. Temos que multinacionalizar, internacionalizar o mundo dentro de um regime interdemocrático. Com a grande contribuição do Cristianismo e de outras religiões, todas as religiões. O Cristianismo e todas as religiões são as mesmas religiões" (135').
Esta espécie de "multinacionalização interdemocrátic" propugnada sob o signo de um cristianismo renovado no último Glauber, este esboço de uma teoria da cultura pode ser visto como o desaguadouro de uma teoria cristológica que o cineasta vinha formulando em seus textos e exprimindo ou figurando em seus filmes desde meados dos anos 1960, num claro diálogo transatlântico com as cristologias de Pasolini e Buñuel, por ele transformadas em precursoras da sua. O esquema geral aparece, de modo límpido, desde o texto "A moral de um novo Cristo" (1966) e estabelece uma linhagem na qual o cinema de Buñuel prepara o Cristo de Pasolini que, por sua vez, prepara a chegada do Cristo do Terceiro Mundo. Dali por diante, as referências a ele reaparecerão amiúde nos textos, mas também na iconografia dos filmes de Glauber. Não é por acaso que ele abre o Sermão do Planalto invocando Pasolini e o impacto da morte do italiano como um dos motores do seu próprio desejo de filmar a vida do Cristo no Terceiro Mundo. Não é por acaso também que aquele longo monólogo iniciado sob o signo da morte de Pasolini se desenvolve de modo a retraçar nada menos que a história da humanidade, ou mesmo da Terra mencionada no título, revelando assim a escala propriamente cósmica dos esquemas mentais formulados por Glauber—para além do mundo Atlântico, mas nele centrados.
A discussão da vocação transatlântica do cinema de Glauber não estaria completa sem a análise de sua representação sobre o Atlântico (o único oceano presente em seus filmes). De que modo o cineasta mobilizou e significou as imagens deste oceano, tão frequentes em seu cinema, e vez por outra discutidas em sua fortuna crítica? Revendo metodicamente seus filmes, percebemos uma constante atração por ele, verdadeira pulsão oceânica que os atravessa.8 Quase todos trazem de um modo ou de outro imagens do Atlântico,9 incluindo lugares por ele não banhados (o sertão da Bahia em Deus e o Diabo, Roma em Claro, as montanhas de Cadaqués em Cabezas Cortadas). O oceano é neles, antes de mais nada, uma evidência iconográfica.
É o mar de Salvador que emoldura o terraço em que os atores se movem em Pátio. É o de Buraquinho que domina a iconografia e mesmo a dramaturgia de Barravento. O mar (filmado no Rio de Janeiro) aparece como ponto de fuga de Deus e o Diabo, para o qual converge a sua filosofia da história, consumando-se na última cena do filme a profecia que o animou do início ao fim, segundo a qual "o Sertão vai virar mar". É com o Atlântico que se abre também o mundo ficcional de Terra em Transe, inteiramente ritmado por suas imagens. Discreto em Maranhão 66, substituído visualmente pelos rios caudalosos em Amazonas Amazonas (que o menciona porém em seus comentários verbais) e Der leone, ele volta a aparecer em Câncer e em Cabezas Cortadas, mas também em História do Brasil, Claro e Idade da Terra.
Constatada sua onipresença, resta indagar qual o sentido das imagens do mar no cinema de Glauber. Seu alcance semântico parece amplo. Podemos ver o mar como horizonte natural da aventura humana, tal como coreografada em Pátio, numa estilização da experiência amorosa por um casal—cujos corpos contracenam com ele em vários planos, como se se sintonizassem com seu ritmo [Fig. 1-6].
Caberia também indagar qual seria o sentido das representações do mar em História do Brasil, que se inicia por uma exposição dos mares circundantes da América do Sul [Fig. 7], para em seguida retomar imagens do Oceano Atlântico em outros mapas, em gravuras das navegações [Figs. 8 e 10] e em cenas de outras obras das quais o filme de Glauber se reapropria em todo o seu desenrolar. Um dos mapas iniciais [Fig. 9] traça os fluxos marítimos entre as Américas, a África e a Europa, estabelecendo assim a geografia atlântica que circunscreve a história do Brasil.
Como seria de se esperar, o relato das navegações mobiliza, entre outras coisas, a iconografia do mar, das Caravelas e das costas marítimas das quais elas partem ou às quais elas chegam [Figs. 11-14].
Esta evocação das navegações inclui, já no primeiro minuto do filme, um insert da própria cena alegórica da Primeira Missa de Terra em Transe, que evocava a chegada do conquistador ibérico numa praia do continente americano [Fig. 15]. Naquela cena, o conquistador se postava diante de uma enorme cruz [Fig. 17], ladeado por um índio, mas também, anacronicamente, por dois personagens saídos da intriga situada em 1963-1964: um padre progressista e o político de direita Porfírio Diaz, que se inscrevia na mesma linhagem de violência e predação do colonizador, irrompendo como seu avatar contemporâneo. História do Brasil incorpora as imagens daquela cena no exato momento em que seu locutor se refere à descoberta da América por Cristóvão Colombo, em 1492, e à assinatura do Tratado de Tordesilhas, em 1494 [veja-se as legendas das Fig. 16 e 18].
Expansão ultramarina ibérica à parte, a iconografia do mar também aparece em momentos da narração de História do Brasil relacionados a outros tópicos—como um episódio da história política francesa (a dissolução do Diretório por Napoleão Bonaparte, em 1799) [Fig.19] ou a presença das ideias positivistas no Brasil [Fig.20], assim como a partida para a Itália da Força Expedicionária Brasileira (FAB) durante a Segunda Guerra Mundial [Fig. 21]. Ora, se a imagem dos expedicionários brasileiros numa embarcação em pleno mar ilustra sem surpresa a referência do locutor à sua partida para um dos teatros da guerra, qual seria a relação particular entre um episódio da derrocada final da Revolução Francesa, em 1799, e uma imagem atual da Baía da Guanabara [Fig. 19]? Mais do que ilustrar o episódio histórico francês, este mar carioca de dois séculos mais tarde parece representar, ou pelo menos sugerir, conexões entre eventos da história europeia e brasileira. Mais do que um acontecimento, ele representa uma relação histórica operante no espaço atlântico (ou uma interpretação meta-histórica desta relação). Um sentido análogo pode ser desentranhado da gravura de uma batalha naval [Fig. 20], inserida num momento em que o locutor menciona as ideias de Auguste Comte (1798-1857) e sua aclimatação em setores do pensamento social brasileiro. Ali, mais do que ilustrar algum episódio histórico, a imagem naval parece antes representar o fluxo atlântico das ideias, sugerindo que, em meados do século XIX, elas viajavam de barco entre a França e o Brasil.
Em outros filmes, podemos ver o mar também como figuração de transformações propriamente políticas ou sociais, como a destituição da autoridade de Aruan na aldeia de pescadores de Buraquinho, que a tempestade marítima do Barravento ao mesmo tempo impulsiona e anuncia no filme homônimo [Fig. 22 e 23], ou como a revolução no horizonte de Deus e o Diabo, figurada no fim da última sequência, na qual o narrador faz o sertão virar mar num gesto abrupto da montagem [Fig. 24-26], realizando a profecia reiterada ao longo do filme pelo Beato Sebastião e pelo cangaceiro Corisco.
Nestes dois primeiros longas de Glauber, a transformação social ou política decisiva (consumada no primeiro, desejada ou vislumbrada no segundo) acaba sendo figurada pelo mar, dado iconográfico bastante sugestivo. O mar também aparece como espaço simbólico de onde emergem outros gestos ou situações de conotação revolucionária, como numa cena onírica de Cabezas Cortadas na qual dois personagens com aspecto de guerrilheiros desembarcam de canoa numa praia vazia [Fig. 27] e erguem seus fuzis [Fig. 28] diante de um solitário ditador Diaz II, que parece se defender usando como escudo um relógio sem ponteiros [Fig. 29].
Esta cena faz ecoar outras presentes em Der Leone, que podemos analisar como variações fluviais da mesma associação entre mar e revolução. Em duas delas, o congolês Samba chega de canoa à margem de um rio [Fig. 30 e 32] para organizar a resistência armada à opressão colonialista, fazendo circular entre o guerrilheiro Pablo (avatar de Che Guevara) e um líder tradicional a lança simbólica de Zumbi [Fig. 31 e 33], necessária à revolução anticolonial pela qual todos estão lutando.
Ora, que o rio (sucedâneo do mar nesta variante do mesmo motivo) traga um personagem e a lança de outro, cujos nomes (Samba e Zumbi) ecoam como claras ressonâncias à história e à cultura brasileiras; que, vindo do rio, Samba encontre, desamarre e sele um pacto com um guerrilheiro chamado Pablo, parecido com Che Guevara, nada disso é indiferente à nossa discussão. Estes elementos ao mesmo tempo narrativos e iconográficos legitimam a atenção do filme aos fluxos atlânticos fortemente condicionantes da história da África e da América Latina (vítimas do colonialismo europeu, assim como do neo-colonialismo estadunidense), mas que aqui também são a própria condição para sua superação.
Esta situação volta a aparecer numa sequência de Claro, atípica por trazer um parênteses de praia num filme inteiramente rodado em Roma. Em todo caso, embora destoe da iconografia romana preponderante, esta sequência reitera o topos dos fluxos atlânticos, em falas de pelo menos três personagens brancos, que ecoam o que Ganga, um personagem negro africano, já havia contado: "Viajei, estive na África, na América, no Brasil, no Congo. Estou cansado". Com o mar ao fundo, os três outros homens contam experiências vividas na África, na busca pelo Eldorado no Caribe, numa Revolução em Caracas, falam de índios, vislumbram um paraíso perdido etc. O mar neste contexto aparece como um horizonte de disponibilidade para o deslocamento, a viagem e a aventura [Fig. 34-36], em versões modernas e individualizadas das Grandes Navegações de outrora.
Este horizonte de possibilidades reaparece em A Idade da Terra, no qual o mar sugere um ciclo que vai da esperança (em cerimônia de "fechamento do corpo", aparentada a um batismo do Cristo índio por um pai de santo numa praia de Itaparica) ao desencanto (do Cristo militar, que aponta e deplora repetidamente, num canto poluído do mar, a "cloaca do universo", signo do que lhe parece um destino funesto da civilização brasileira), e deste último a uma nova promessa de renascimento da sociedade (sugerida pela regata e pela festa popular que encerram o filme em Salvador). Neste movimento descrito pelo filme, um Cristo surge das águas do Atlântico para seu batismo sincrético [Fig. 37-38] e delas ressurge no fim, a bordo de um barco chamado "Dakar" (capital do Senegal), para uma celebração religiosa coletiva [Fig. 41-42], depois que um outro Cristo a deplorou no miolo do filme [Fig. 39-40].
Extremamente frequentes e significando muitas coisas, as imagens do mar ajudam assim a desenhar e a circunscrever, na iconografia dos filmes de Glauber, um mundo transatlântico, separado de um lado pelo Brasil e pela América Latina e, de outro, pela África e pela Europa. Neles, o oceano Atlântico é visto ora da costa brasileira (em Pátio, Barravento, Deus e o Diabo, Terra em transe, Câncer, Maranhão, Di, Idade da Terra), ora do lado de lá (em Der leone, Cabezas Cortadas e Claro), de modo a delimitar imaginariamente o espaço transatlântico em que se moveu o cinema glauberiano. Assim, aquela simetria continente/ mar (no fim de Deus e o Diabo) e mar/continente (no início de Terra em Transe) pode ser ampliada para o conjunto da obra de Glauber, para uma simetria mais vasta entre o oceano Atlântico visto do Brasil (num horizonte que se expande para a África e a Europa) e visto da África e da Europa (num horizonte que se expande para as Américas e, particularmente, para o Brasil).
Num letreiro do início de Terra em Transe, Glauber qualificou de "atlântico", Eldorado, o país ficcional, alegoria ao mesmo tempo do Brasil e da América Latina. Houve quem interpretasse em sua obra de cineasta um "mito da civilização atlântica", como Raquel Gerber, cujo livro não traz contudo nenhuma determinação neste sentido, tema nunca tematizado em suas páginas, e referido ali apenas em uma breve nota do próprio Glauber ("Mística do Mar Atlântico"), escrita num verão em Salvador, mas não datada nem desenvolvida. De nossa parte, sem extrapolar o que os textos e sobretudo os filmes de Glauber nos permitem avançar, podemos dizer que sua dramaturgia e a iconografia destes últimos dão corpo a um mundo transatlântico, construto da sua imaginação que não carece de lastro histórico, mas que convive em seus esquemas mentais com as noções tradicionais de colonizador e colonizado, Terceiro Mundo, centro e periferia.
Referências a estes projetos podem ser encontradas em Glauber Rocha, Cartas ao Mundo (São Paulo: Companhia das Letras, 1997), 715-6; Alfredo Guevara and Glauber Rocha, Un Sueño compartido (Madrid: Iberautor, 2002), 112, 115-6 e 118; João Carlos Teixeira Gomes, Glauber Rocha, esse vulcão (Madrid: Iberautor, 1997), 273-281.
Terzo Mondo e comunità mondiale - testi delle relazioni presentate e lette ai congressi di Genova (Milano: Columbianum/Marzorati Editore, 1967), 435-6.
Revista Civilização Brasileira 3 (1965): 165-170.
Cahiers du Cinéma 195 (1967): 38-41; Rocha Revolução do Cinema Novo (São Paulo, CosacNaify, 2004 [1981]), 104-9.
Revi os filmes de Glauber nas cópias em DVD lançadas no mercado brasileiro pela parceria Tempo Glauber/Versátil ou, no caso de Cabezas Cortadas e Claro, telecinadas pela Cinemateca Brasileira, em 2002, a partir de suas matrizes. A cópia de As armas e o povo vem de um DVD lançado em 2004 em Portugal, a de História do Brasil vem de uma versão transmitida na tv italiana pela RAI-3, e a de Di circula na Internet em versão que carece de restauro.
Assim como ocorreria em Idade da Terra com um personagem de diabo caracterizado como mexicano e paramentado com um sombrero.
Ismail XAVIER, “Evangelho, terceiro mundo e as irradiações do planalto”, Filme Cultura, n°38-39, (Agosto/Novembro 1981): 69-73.
Esta atração ou pulsão vai muito além dos planos que retratam o mar, ao final de Deus e o Diabo, ou no início de Terra em Transe, objetos de uma página inicial luminosa de Gilda de Mello e Souza, em seu ensaio "Terra em Transe" (publicado no calor da hora, em 1967, e posteriormente recolhido em sua coletânea Exercícios de Leitura (São Paulo: Ed. Duas Cidades, 1980), 187-193, e de uma análise mais recente e mais desenvolvida de Lúcia Nagib, A utopia no Cinema Brasileiro (São Paulo: Cosac Naify, 2006), 25-43.
As exceções são O Dragão, 1968 e Jorjamado.